A virtualização das academias: como o exercício físico a distância ganha adeptos

Por Daniel Pompeu e Samuel Ribeiro dos Santos Neto

Especialistas diferenciam modalidades e discutem o futuro das tecnologias na educação física

Na década de 1980, eram febre as fitas VHS que estrelavam a atriz Jane Fonda em sessões guiadas de exercício físico. O principal apelo era a facilidade: exercícios de baixo impacto que poderiam ser praticados por qualquer um no conforto de seu lar. Hoje, a modalidade ganhou novos contornos tecnológicos. Vídeos em redes sociais, influenciadores digitais fitness e aplicativos com inteligência artificial disputam um público que se exercita mesmo sem sair de casa.

Essas práticas despertaram o debate sobre os riscos e efetividade de se praticar exercício mediado pela tecnologia e de que forma isso pode afetar o profissional de educação física. A pandemia da covid-19, que trouxe a necessidade de isolamento social para a rotina das pessoas, colocou esse processo em evidência de diferentes formas.

A mudança de cenário motivou um grupo de pesquisadoras da Universidade Federal do Ceará (UFC) a tentar entender se a prática de exercício físico durante o isolamento estava refletindo em mais ou menos bem-estar emocional para as pessoas. “A percepção do aumento do uso de tecnologias pelas pessoas para se manterem ativas durante a quarentena foi um dos pontapés iniciais da nossa pesquisa”, explica Lívia Gomes Viana-Meireles, orientadora do estudo.

Os dados foram coletados por meio de um questionário aplicado entre os dias 31 de março de 2 de abril, respondido por 592 pessoas de todas as regiões e que estavam em isolamento a cerca de 15 dias. A análise das respostas foi feita em conjunto com pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e resultou em um artigo que ainda se encontra em fase de pré-publicação.

O estudo apontou que as pessoas que não praticavam atividade física antes, mas iniciaram abruptamente alguma prática durante a quarentena, apresentaram piora nos índices de bem-estar. A piora esteve associada também à adoção de ferramentas tecnológicas para práticas pouco personalizadas e sem monitoramento por professor (como vídeos do Youtube ou no Instagram). “Esses treinos não são individualizados para a realidade daquela pessoa”, afirma Viana-Meireles. “Não tem ninguém para corrigir os movimentos e controlar a intensidade, então há uma grande possibilidade de ela não se sentir tão bem ou tão capaz de praticar atividade física”.

A pesquisa também apontou que, antes da pandemia, apenas 4% dos respondentes usavam ferramentas tecnológicas para se exercitar, mas esse número aumentou para 60% durante o isolamento social. Apesar dos aspectos negativos associados a alguns usos da tecnologia, a pesquisadora ressalta que isso não significa dizer que o exercício no isolamento faça mal à saúde. “Atividade física na quarentena faz bem, desde que não mude drasticamente os hábitos anteriores e que a prática seja relacionada com a realidade de cada um”, explica, ressaltando a importância dos treinos personalizados e da supervisão por profissional de educação física.

“Os profissionais estão tendo que usar a tecnologia a seu favor para fazer atendimentos online com tanta qualidade quanto os presenciais”, afirma Viana-Meireles. Apesar da reabertura de academias e parques em algumas cidades e da retomada das rotinas habituais por parte da população, é possível que o período pós-pandemia traga mudanças em relação aos hábitos de atividade física dos brasileiros, com mais adesão às práticas domiciliares e mais uso das tecnologias.

A chegada ao Brasil de empresas de aulas online como a Magic Fitness, conhecida como a Uber dos personal trainers, pode ser um sinal de que os tempos estão mudando. O governo federal também tem ensaiado a implantação de um programa – o Brasil em movimento – para conectar profissionais da educação física e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) através de um aplicativo para smartphones. Ainda em fase de discussões, o Ministério da Saúde realizou um encontro com empresas de tecnologia no final do ano passado, buscando soluções e propostas para o desenvolvimento da plataforma.

A proposta sofreu críticas do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), entidade associada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e que reúne pesquisadores da área. Em carta, o CBCE criticou a falta de transparência sobre como o governo pretende tornar o serviço acessível a brasileiros sem acesso a smartphones – atendendo ao caráter universal do SUS -, a remuneração de equipes de saúde pelo serviço, se as atividades físicas ofertadas levarão em conta o caráter particular dos beneficiários, entre outros pontos.

Personal trainer virtual

São muitas as tecnologias já em uso que têm mudado a cara do exercício físico. Além das bolhas fitness das redes sociais, elas estão nos jogos eletrônicos de movimento, em aplicativos e nos itens vestíveis largamente utilizados por atletas profissionais e amadores, como smartwatches ou smartbands, que coletam dados vitais e de desempenho durante as atividades. Para Braulio Nogueira de Oliveira, doutorando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que estuda esse contexto, a chegada dessas tecnologias se deu de maneira rápida e o momento que vivemos é de experimentação. “São tecnologias que foram fortemente difundidas no Brasil, mas ainda são pouco estudadas”, comenta.

O objeto da pesquisa de Oliveira é o Freeletics, aplicativo de exercícios que funciona como um personal trainer virtual e faz a prescrição de treinos por meio de inteligência artificial. Já em fase de conclusão, o estudo tenta entender como essa tecnologia tem influenciado os hábitos e as tomadas de decisões dos usuários. Um dos desdobramentos que o pesquisador aponta é a chamada datificação de si, que é o modo pelo qual os comportamentos e informações do usuário (como frequência cardíaca, geolocalização e desempenho) se convertem em dados para alimentar a inteligência do aplicativo.

“Ao mesmo tempo que o argumento é proporcionar ao usuário liberdade, por exemplo, de não precisar se deslocar à academia ou de poder treinar só com o peso do corpo, para obter essa liberdade ele precisa se prender a esses dados de rastreamento”, explica Oliveira.

O aplicativo está ligado a um fenômeno de espetacularização fitness nas redes sociais, com compartilhamentos de fotos, dados de exercício e uso de hashtags, o que também contribui para uma geração massiva de dados. A gamificação é outra característica do recurso: o usuário precisa lidar com rankings, desafios e sistemas de pontuação. Ao alcance das mãos, esse “personal trainer” está presente 24h, o que segundo o pesquisador pode contribuir para potencializar a culpabilização do usuário em relação ao seu desempenho.

Aplicativos como esse e demais recursos tecnológicos têm mudado o cenário do exercício físico e da própria atuação profissional na área. “As vantagens e riscos da tecnologia dependem muito do prisma de quem observa. Há tanto olhares entusiastas como olhares mais críticos”, comenta Oliveira.

Regulamentação da profissão

De acordo com Jorge Steinhilber, presidente do Conselho Federal de Educação Física (Confef), o processo de mediação tecnológica e midiática da educação física tem de ser encarado com ressalvas. “Precisamos entender qual a diferença entre eu me apresentar, me filmar e jogar na rede social o que eu estou fazendo e a outra coisa é eu estar orientando uma atividade”, ressalta.

Para Steinhilber, influenciadores digitais e blogueiros que propõe rotinas de exercício físico oferecem riscos ao público quando exercem de forma irregular o ofício de profissional da educação física. Ele explica que nestes casos o Confef e os conselhos regionais de educação física podem realizar denúncias contra esses influenciadores. 

O presidente do Confef reconhece, entretanto, que as ferramentas digitais utilizadas para mediação de orientação de atividade física vieram para ficar e ganham cada vez mais adeptos. Mesmo assim, ressalta que essas práticas devem ser feitas de forma individualizada, com acompanhamento frequente por parte do profissional, para evitar riscos. “É como no caso da telemedicina. Hoje você liga para o médico e ele te atende virtualmente. Mesmo assim, estou sendo atendido por um médico. Não estou simplesmente ligando uma televisão e ouvindo um profissional falando sobre qualquer coisa”, compara Steinhilber.

Apesar das transformações causadas pelas novas tecnologias, com ecos da chamada “uberização” do trabalho, Steinhilber não acredita que o processo acarretará em uma precarização do serviço prestado pelo profissional da educação física. “Nós temos uma forma de proibir e coibir que pessoas que não são qualificadas possam atuar nesse segmento. Então acho que a precarização é quase impossível”, diz.

Ele se refere à aplicação da Lei 9.696 de 1998, que regulamenta a profissão de educação física e institui os conselhos da área. Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal  retomou o julgamento que pode resultar no entendimento de partes da lei como inconstitucionais, acarretando em uma possível dissolução do Confef e conselhos regionais. Quatro ministros votaram a favor da inconstitucionalidade. O ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo e não há previsão de nova retomada do julgamento.

Daniel Pompeu é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência (Fapesp).

Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência (Fapesp).