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Ter fome no Brasil é um escândalo

Por Ladislau Dowbor

Do total de terras agricultáveis (225 milhões) e do que efetivamente usamos para cultivo (63 milhões) restam 160 milhões de hectares de solo agrícola parado ou radicalmente subutilizado com a chamada pecuária extensiva.  Trata-se de uma área equivalente a 5 vezes o território da Itália. O Brasil, junto com as savanas africanas, apresenta a maior extensão de solo agrícola parado do mundo. Além disso, o país tem as maiores reservas de água doce. E 60 milhões de pessoas adultas subutilizadas em termos de trabalho. Acabar com o escândalo da fome no Brasil não é um desafio técnico ou de falta de recursos, mas de organização política e social. Continue lendo Ter fome no Brasil é um escândalo

A fome dentro do atual contexto global

Por Hugo Ramiro Melgar-Quiñonez

Dizem metaforicamente que todos nós estamos no mesmo barco no meio de uma tempestade. Estamos no meio de uma tempestade, mas não estamos de modo algum no mesmo barco. Na verdade, centenas de milhões de indivíduos estão se afogando sem nenhum barco à vista para resgatá-los. Assim, quando a pandemia de covid-19 estiver sob controle, o que ainda é incerto, voltar ao que consideramos “normal” significa apenas continuar com o aumento da fome, da marginalização e da desigualdade social. Um sistema alimentar global que não cumpre sua função principal requer transformações urgentes e profundas em sua abordagem, basicamente requer erradicar sua natureza predatória para finalmente ser capaz de erradicar a fome e a desnutrição. Continue lendo A fome dentro do atual contexto global

A fome continua presente

Por Walter Belik

Na Guerra Fria o uso da fome como arma de dissuasão se disseminou e os Estados Unidos fizeram uso de boicotes alimentares inúmeras vezes: contra Cuba em 1962, seguindo com embargos contra a antiga União Soviética em 1973 e 1980 e, mais recentemente, contra a Venezuela (2017) e o Irã (2018). Os dois últimos são casos clássicos de geração de crises artificiais visando a derrubada de governos, mas existem outros exemplos provocados “de forma natural”, pelas chamadas leis da economia. Continue lendo A fome continua presente

O legado de Josué de Castro sobre a “maior calamidade social”

Por Camille Bropp

Nos anos 1990, o geógrafo Manuel Correia de Andrade afirmou que se os conselhos do pesquisador pernambucano tivessem sido acolhidos, o Brasil teria vencido a fome. O agravamento desse problema social, porém, sugere que as raízes do livro Geografia da fome, lançado há exatos 75 anos, estão vivas, como resultado da descontinuidade das políticas de combate à desigualdade social e o baque da pandemia de covid-19. Com o retorno da insegurança alimentar ao patamar do início do século XXI, o pensamento de Castro ressurge nas discussões acadêmicas.

Imagem:  Instituto de Nutrição Josué de Castro/UFRJ Continue lendo O legado de Josué de Castro sobre a “maior calamidade social”

Capitalismo e fome

Por Plínio de Arruda Sampaio Júnior

O problema não é a existência de um excedente populacional insustentável, como apregoam as teorias de inspiração malthusiana muito em voga nos meios reacionários. Não existem dificuldades materiais insuperáveis que expliquem a fome. Sabe-se perfeitamente que há muito tempo a capacidade de produção de alimentos é mais do que suficiente para satisfazer toda população mundial. Hoje, ela é mais do que o dobro da necessária. Continue lendo Capitalismo e fome

O pescado e a segurança alimentar

Por Juliana Schober Gonçalves Lima

Apesar da elevada qualidade nutricional do pescado, mecanismos que orientam os modos de produção e comercialização podem impedir que esse alimento seja amplamente consumido, sobretudo pelas populações que mais precisam, que são aquelas de baixo poder aquisitivo e subnutridas. Uma estimativa recente mostra que antes da pandemia de covid-19, quase 690 milhões de pessoas no mundo, ou seja, cerca de 8,9% da população global, estavam subnutridos (conhecido como “SOFI” report, 2020). Esse número elevado de subnutridos demanda estratégias eficazes de combate à desnutrição e o pescado tem um papel muito relevante nesse contexto. Continue lendo O pescado e a segurança alimentar

Pesquisadores estudam uso da cannabis medicinal para alívio da dor crônica

Por Eliane Comoli

Imagem: Manuel Alvarez/Pixabay
 

Dores crônicas são terrivelmente debilitantes. De acordo com a Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (SBED) 37% da população brasileira, cerca de 60 milhões de pessoas, relatam sentir dor de forma crônica. Um dos tratamentos promissores é o uso de cannabis medicinal. Neste mês o plenário da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que libera o cultivo da cannabis para fins medicinais e industriais.

A Organização das Nações Unidas (ONU) retirou a Cannabis sativa da lista de drogas mais perigosas em dezembro de 2020, reconhecendo seus efeitos terapêuticos. Atualmente a substância é usada como tratamento em várias patologias neurodegenerativas e dor crônica, com aprovação da Organização Mundial da Saúde (OMS). “A mudança de classificação foi um importante passo para novas possibilidades de pesquisas controladas em universidades e grupos multicêntricos para que a cannabis seja mais utilizada e beneficie pacientes”, diz Maria Teresa Jacob, médica anestesiologista, especialista em cannabis medicinal para dor crônica pela Universidade do Colorado e membro da International Association for Cannabinoid Medicines (IACM) e da Sociedade Internacional para Estudo da Dor (IASP).

Os mecanismos moleculares e os efeitos analgésicos do canabidiol – um dos componentes da cannabis – em dores crônicas e aplicações clínicas estão descritos em publicação recente da revista International Journal of Molecular Science. Além disso, os efeitos da cannabis na dor de cabeça e enxaqueca foram publicados na revista The Journal of Pain também há pouco tempo.

“Cerca de 5% da população mundial sofre de dor crônica. Além de ser uma questão de saúde pública, é uma questão econômica porque tira a pessoa do trabalho”, comenta Guilherme de Araújo Lucas, neurofisiologista da dor do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP-USP). Outra doença crônica muito frequente na população, afetando cerca de 20-25% das mulheres, é a enxaqueca. “Sem dúvida a enxaqueca é bem debilitante e incapacitante, perde-se muito a qualidade de vida, compromete a atividade profissional, o lazer, os estudos, e os relacionamentos social e familiar”, comenta José Geraldo Speciali, neurologista especialista em cefaleia e enxaqueca, professor aposentado do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP-USP.

Dor é uma sensação que surge quando há ameaça de dano aos tecidos. Senti-la é fundamental para manter a integridade do organismo. É, portanto, algo bom, embora a sensação seja desagradável. “A dor aguda é um sistema construído para avisar que algo está errado e que alguma providência deve ser tomada para não danificar o organismo naquele momento. É um sistema que se liga e desliga, para não sentir dor o tempo inteiro”, explica Guilherme. Quando esse sistema se mantém ligado por horas, dias ou meses nas doenças inflamatórias, provoca dor crônica. “Doenças que lesionam direta e exclusivamente o sistema nervoso fazem com que o sistema de dor fique continuamente ativo – o que chamamos de dor neuropática. A doença inicial é curada e a dor crônica passa a ser uma doença”, diz.

A dor não é apenas uma experiência sensorial. É também emocional e social, dependente de contexto e de natureza multidimensional. Pode ser influenciada por idade, gênero, cultura, etnia, condição socioeconômica, aprendizado e memória, função cognitiva e estados emocionais. “A sensação da dor é um componente sensorial que permite ao cérebro identificar a qualidade, localização e duração dela. A percepção é um componente afetivo emocional que permite a interpretação que cada um dá para aquele estímulo doloroso, o quão desagradável é – e que pode ser diferente para cada um”, comenta o pesquisador. Áreas cerebrais responsáveis pelo componente afetivo emocional interagem com circuitos de memória e de avaliação emocional e isso faz com que a dor seja reconhecida como mais ou menos intensa.

Cannabis medicinal no tratamento de dor crônica

A dor crônica prejudica a qualidade de vida e é muito difícil de ser tratada. Mesmo com o uso de antidepressivos e anticonvulsivantes, o tratamento não oferece uma resposta adequada. “A cannabis medicinal ajuda muito no tratamento porque controla melhor os estímulos neuropáticos, já que os receptores canabinóides estão amplamente distribuídos no corpo – por isso gera uma resposta muito boa na dor crônica”, explica Maria Teresa. 

Estudos mostram a presença de receptores canabinóides no sistema límbico (regulador das emoções), no hipocampo (relacionado às memórias) e na medula espinhal. A cannabis tem ação direta no mecanismo central de dor, bem como ação na parte emocional – o que ajuda muito. “A cannabis tira a parte emocional do sofrimento relacionado à dor”, esclarece Maria Teresa. 

O enorme preconceito e tabu em relação à substância está associado à maconha fumada em uso recreativo. Porém, na versão medicinal, a própria cepa da planta é diferente. As dosagens dos componentes são bem mais baixas, dentro de limites seguros, principalmente do THC, que é o composto psicoativo. A cannabis tem cerca de 500 substâncias ativas, como os canabinóides, terpenos e flavonoides, que funcionam como potencializadores do canabidiol e THC, o tetrahidrocanabinol, que foi o primeiro princípio ativo descoberto, na década de 1950.

A cannabis medicinal oferece menos efeitos adversos e pode ser usada com outros medicamentos para tratamento de dor crônica, aumentando a eficácia e, em alguns casos, diminuindo as doses desses outros fármacos, com consequente melhoria da qualidade de vida do paciente. “Não existe nenhuma contraindicação, nenhum caso de adição descrito e nenhuma complicação fatal. É uma medicação segura para usar em idosos com mais de 90 anos e crianças, inclusive”, argumenta Maria Teresa. Entretanto, é imprescindível que o médico conheça a interação da cannabis com outros remédios, pois ela pode potencializar ou inibir a ação deles quando em associação.

Dosagens específicas são recomendadas conforme a necessidade, os antecedentes e o perfil de cada paciente. As opções disponíveis no Brasil são via oral, tópica e íntima, adquiridas por importação com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mediante prescrição médica. “Os produtos importados apresentam análises bem detalhadas da concentração às substâncias presentes. É uma segurança muito grande para a prescrição”, finaliza Maria Teresa. 

Eliane Comoli é bióloga, mestre e doutora em neurociência pela USP, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e cursou especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.