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Pesquisa analisa estratégias de saúde para atender bolivianos no Bom Retiro
Por Patrícia Santos
27/07/2015
O bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo, tem sua história marcada pela presença de imigrantes. Entre eles, milhares de bolivianos que vieram em busca de trabalho na indústria de confecção, principalmente a partir da década de 1980. Hoje, o tamanho dessa população não é claro. O censo de 2010 indica a presença de 9,4 mil bolivianos no município, mas as estimativas, incluindo aqueles em situação irregular, apontam até 200 mil pessoas. 

Quando se trata das questões de saúde, a invisibilidade estatística dessa população é um problema. A Estratégia de Saúde da Família (ESF), que define o modelo de atendimento básico da população pelo SUS no Brasil, é organizada com base em uma abrangência territorial e populacional. Esses limites objetivam formar um vínculo com a população atendida e, ao mesmo tempo, ajudam a definir prioridades e metas a serem cumpridas pelos profissionais. 

Para acompanhar a população boliviana no Bom Retiro, as equipes de saúde da família locais tiveram que ir além do esquema programático da ESF. Estratégias específicas foram necessárias para lidar com esses imigrantes que, além subestimados numericamente, mudam-se com frequência, e muitos vivem e trabalham em condições precárias. 

A experiência é relatada em estudo de autoria de Marcia Ernani de Aguiar e André Mota, respectivamente doutoranda e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. A análise é centrada na Unidade de Saúde da Família do Bom Retiro, gerenciada pela Secretaria Municipal de Saúde, em parceria com a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A pesquisa foi feita com base em entrevistas com profissionais de saúde sobre suas percepções e atendimento às necessidades dessa população; e com bolivianos, sobre a vida no bairro e a relação com a Unidade de Saúde da Família local. 

Os autores relatam que, devido às mudanças de endereço frequentes em busca de novas colocações nas oficinas de costura, acompanhamentos como pré-natal ou de tratamento da tuberculose, por exemplo, acabavam se perdendo. Para lidar com esse problema, os agentes comunitários de saúde trocavam informação sobre os novos endereços entre colegas, ou com parentes e amigos dos pacientes, e entravam em contato com essas pessoas. Assim, era possível manter o atendimento no Bom Retiro, mesmo que o paciente estivesse em outra região. 

Um ponto que chama a atenção no estudo é a necessidade de repensar a ideia de família, considerando a dinâmica das relações dos indivíduos em sua comunidade. Como os cadastros dos bolivianos são feitos nas oficinas de costura, foi possível observar que a definição de família não é aquela descrita nas normas da ESF. Uma vez que eles residem onde trabalham, convivem com conterrâneos com quem não têm laços de consanguinidade, porém estabelecem laços afetivos próximos. Além disso, a USF deve levar em conta os processos de trabalho e os riscos para a saúde. Por morarem no local onde trabalham, chegam a passar 15 horas seguidas nas mesmas funções, parando exclusivamente para comer, segundo os autores. 

Entre outras estratégias adotadas no bairro pelas equipes de Saúde da Família, foi necessário melhorar a comunicação com a população, já que o idioma era uma barreira capaz de comprometer a adesão às orientações de saúde. Aguiar e Mota relatam que os bolivianos têm mais de 26 línguas, que se subdividem em 127 dialetos e, por isso, foram contratados agentes comunitários de saúde bolivianos e uma cartilha foi feita para orientar os profissionais de saúde. A medida “permitiu uma maior aproximação da realidade vivida nessas oficinas e resultou num outro entendimento de muitas queixas feitas com frequência pelos bolivianos, sobretudo dores musculares de toda ordem, frutos de longas horas de trabalho nas máquinas de costura”, observam os autores. 

Houve também ações com emissoras de rádio bolivianas, que só podem ser ouvidas no centro da cidade. Segundo a pesquisa, nas oficinas de costura, é comum o rádio permanecer sintonizado o tempo todo nesses veículos. 

Iniciativas como essas, para atender características de cada comunidade, podem ser adotadas por outras equipes. Aguiar e Mota destacam a importância de programas de saúde amplos considerarem as particularidades locais das comunidades. “Apesar de a gestão do programa, no que tange a sua organização, ter alto grau de normatividade na sua implementação, com uma regulamentação definida pelo Ministério da Saúde, é no dia a dia que a equipe se defronta com as mais diversas realidades em seus territórios e pode identificar que aquela normatização é insuficiente, fazendo uso de saber gerado por um olhar mais integral, propondo variadas estratégias para melhorar a interação entre os serviços e os usuários”, analisam os autores. 

O estudo foi desenvolvido como parte do mestrado de Marcia Ernani de Aguiar no Departamento de Medicina Preventiva, na USP, e continua, atualmente, como pesquisa de doutorado, sendo que ambos os projetos analisam também os imigrantes coreanos. 

A pesquisadora, que também foi médica da família no Bom Retiro entre 2001 e 2009, ressalta que as mudanças necessárias são a expansão da equipe e a aproximação da gestão pública da realidade encontrada: “as normas programáticas existem, mas se a equipe estiver apropriada do território e tiver uma proposta de ação, terá liberdade para novas estratégias. Mas há um paradoxo nos documentos da ESF, falar dessa liberdade, de se apropriar do território, de conseguir identificar os cuidados particulares, tudo isso está dito. O problema é quando você vai organizar o processo de trabalho, e dependendo da gestão pública que está fazendo a parceria nesse processo, isso pode ser mais ou menos livre”, afirma.