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Bioética para todos
Por Bianca Lucchesi Targhetta
23/10/2015
“Bioética é uma nova ciência ética que combina humildade,
 responsabilidade, competência interdisciplinar e intercultural
 e que potencializa o senso de humanidade.” 
Van Rensselaer Potter


Não é incomum que a palavra bioética desperte reações de desagrado e descontentamento nos ouvintes. Tema controverso, pode se tornar menos atrativo se abordado de maneira morosa e cansativa em ambientes acadêmicos. Mas não foi o que aconteceu em palestra proferida pelo médico e professor Flávio César de Sá no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, no dia 21 de setembro. Em clima descontraído e repleto de narrativas e fatos curiosos sobre a história da ciência e da bioética, de Sá, professor e médico infectologista da Faculdade de Ciências Médicas e membro do Centro Interdisciplinar de Bioética da Unicamp, mostrou que a bioética é para todos.


O professor iniciou sua fala recapitulando os paradigmas de outras eras até chegar nos dias de hoje, com a pós-modernidade. Para ele, o paradigma da atualidade é o ego. “Em uma sociedade egocêntrica, somos nossa própria medida”, explica. A linha de raciocínio para mudar esse paradigma passa por deslocar o olhar do indivíduo sobre ele mesmo e colocá-lo no outro, segundo ele. Para que isso fosse possível, uma série de deslocamentos do pensamento ocorridos em séculos anteriores se mostraram fundamentais. Tais mudanças não foram aceitas facilmente e encontraram muitos opositores, principalmente em instituições como a igreja.

A primeira mudança, realizada por Nicolau Copérnico e Galileu Galilei, foi o deslocamento do centro do universo: admitiu-se que a Terra girava em torno do Sol e não o contrário. A segunda provocou o deslocamento do centro da criação, com a teoria evolutiva de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, que propôs que todas as espécies teriam surgido de um ancestral comum. A terceira e última se originou a partir das ideias de Sigmund Freud sobre não ser real a imagem que se tem de si mesmo, deslocando o indivíduo de seu próprio centro.

Essas transformações não aconteceram sozinhas, mas andaram lado a lado com as mudanças no campo científico, segundo o professor. A ciência passava a explicar fenômenos e tomava o lugar da igreja como a grande salvadora da humanidade com suas descobertas e explicações sobre fenômenos naturais, doenças, curas e medicamentos que melhoravam a qualidade de vida das pessoas. As expectativas criadas sobre a ciência se tornaram cada vez maiores e até certa medida eram correspondidas. Esse relacionamento corria bastante bem até a manhã de 6 de agosto de 1945, quando a bomba Little Boy foi lançada sobre a cidade de Hiroshima. O horror se repetiu no dia 9 do mesmo mês, com o lançamento da bomba Fat Man sobre Nagasaki. Nesse momento, a humanidade percebeu quão cruel poderia ser consigo mesma utilizando a ciência como ferramenta.

Com o fim da 2ª Guerra Mundial e o julgamento dos médicos nazistas, o que ficou conhecido como Processos de Guerra de Nüremberg, a criação de um código de ética em pesquisas com humanos se mostrou necessária. Em 1947, foi criado o Código de Nüremberg, composto por 10 artigos. Segundo de Sá, ele era bastante claro quanto às premissas éticas que propunha, mas, inicialmente, não foi suficiente para ter força de lei em alguns países. Apenas no ano de 1964, com a Declaração de Helsinque, os princípios ali descritos passaram a ser tomados como regulamentação da ética em pesquisas com humanos.

O professor relata que, mesmo assim, uma série de más condutas éticas e experimentações ilegais foram descobertas e escandalizaram a sociedade na década de 1960. Alguns dos escândalos mais conhecidos são o de Tuskegee (Alabama), onde uma população de negros sifilíticos permaneceu duas décadas sem tratamento para avaliar a evolução da doença, e o de Willowbrook State School (Nova Iorque), escola onde crianças com atraso mental foram usadas como cobaias para estudar a transmissão da hepatite B.

Breve histórico da bioética

De Sá afirma que foi em meio a esse cenário que a bioética surgiu como disciplina reguladora das ciências médicas e biomédicas e se desenvolveu rapidamente após sua criação. Ela se caracteriza por ser interdisciplinar, multiprofissional, intercultural, aberta ao diálogo, por lutar contra as desigualdades e buscar um consenso mínimo de convivência. O termo ganhou importância em 1971, com a publicação do livro Bioethics: bridge to the future, escrito por Van Rensselaer Potter. Em 1978, o Relatório Belmont é produzido a partir de preocupações com a proteção de sujeitos humanos envolvidos em pesquisas biomédicas e comportamentais nos Estados Unidos. A partir deste relatório, Tom Beauchamp e James Childress publicam conjuntamente, em 1979, um livro sobre princípios bioéticos (Principles of Biomedical Ethics), dando origem à bioética principialista, que tem como princípios básicos a autonomia, a beneficência, a não-maleficência e a justiça. A ideia se consagrou e passou a ser referência na solução de dilemas e conflitos bioéticos.

Apenas no ano de 1992, conforme resgata o professor, foi criada a Associação Internacional de Bioética com o objetivo de reunir profissionais da área e facilitar a interação e discussão entre as partes. Logo em seguida, em 1995, é criada a Sociedade Brasileira de Bioética. Além dela, pensa-se na criação de um Conselho Nacional de Bioética, de maneira a criar espaços de diálogo e negociação entre partes interessadas.

Nesse sentido, o Brasil sempre se mostrou pioneiro, segundo de Sá. Foi esse pioneirismo que regeu o 6º Congresso Mundial de Bioética em Brasília, em 2002, diz ele. O tema escolhido – “Bioética, Poder e Injustiça” – aproxima a bioética da saúde pública e agenda social, ampliando o conceito da disciplina para além do campo biomédico. A posição de liderança do Brasil, com o apoio das nações latino-americanas, africanas e da Índia, levou à inclusão dos campos sanitário, social e ambiental na ampliação do texto da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco em 2005. As nações desenvolvidas insistiam para que a bioética estivesse restrita à biomedicina e biotecnologia. A ampliação transforma a agenda da bioética para o século XXI e democratiza a sua abrangência, tornando-se fundamental para os países em desenvolvimento, conforme aponta o professor.

Bioética como novo paradigma da pós-modernidade

De Sá falou também sobre medicalização e mercantilização da medicina. Quando perguntado sobre as frequentes violências obstétricas e ginecológicas sofridas pelas mulheres, o professor afirma que isso é reflexo não apenas da sociedade machista em que vivemos, mas também oriunda de um sistema médico paternalista que não respeita escolhas individuais. Explica também que nos últimos 50 anos existe a crença de que as soluções tecnológicas são melhores, sejam elas cirúrgicas ou medicamentosas. A medicina se torna um mercado, onde serviços são vendidos e as escolhas são mediadas pela medicalização. Para ele, o caminho para reverter esse quadro é melhorar a formação ético-humanista dos profissionais da saúde. Formar profissionais que sejam acolhedores e especialistas e que gastem mais tempo se relacionando e conhecendo os pacientes. Outro ponto importante é melhorar a qualidade das informações que chegam aos pacientes, dando-lhes autonomia para fazer escolhas conscientes.

Com relação aos direitos dos animais, o professor informa que a preocupação com o seu bem-estar vem desde o início do século XX e tem se tornado cada vez mais forte. De Sá informa que atualmente existem discussões questionando a validade do modelo animal para pesquisas e que há uma proposta para que sejam banidas as experiências com primatas e mamíferos e outra que visa igualar primatas a humanos em questões de direitos.

De acordo com o professor, o papel da bioética é incomodar e gerar discussões sobre temas polêmicos como o aborto e a morte, por exemplo. Ele reforça a ideia de que a disciplina deve ter um olhar menos moralista e mais pró-diálogo na tentativa de encontrar consensos dentro das divergências, pois acredita que há possibilidade de crescimento na dúvida.

De Sá finaliza reafirmando a importância da bioética para todos, mas em especial para os comunicadores de ciência, uma vez que eles devem estar preocupados em transformar a sociedade por meio dos , buscando reportar a verdade e fazendo denúncias de más práticas na ciência. Ele diz acreditar que a bioética surgirá como o novo paradigma de nosso tempo, tornando-o mais humanizado, biocêntrico, ecológico e igualitário.


Para saber mais:

Associação Internacional de Bioética

Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, Unesco, 2005

Pessini, L. e Barchifontaine, C.P. "Bioética: do principialismo à busca de uma perspectiva latino-americana". In: Costa, S.I.; Garrafa, V. e Oselka, G. (Orgs.). Iniciação à bioética. Conselho Federal de Medicina, 1998.

Matéria sobre bioética na RTV Unicamp

Sociedade Brasileira de Bioética