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Reportagem
Conflitos religiosos surgem da incapacidade de lidar com a diferença
Por Carolina Medeiros e Simone Caixeta de Andrade
10/06/2014

No último dia 25 de maio, diversos jornais no Brasil exibiam matérias sobre a sentença dada a Meriam Ibrahim, uma sudanesa de 27 anos, condenada a receber 100 chibatas antes de ser levada à forca por um tribunal de Cartum (capital do Sudão) por adultério e apostasia, ou seja, renuncia à sua fé. Isso porque Meriam é filha de pai mulçumano e mãe cristã; e depois do sumiço do pai (quando ela tinha 5 anos), a jovem foi criada dentro da religião cristã. Anos depois se casou com um cristão, o que pelas leis mulçumanas configura o adultério. Esse ato repudiado por muitos, dá forma ao que os especialistas em estudos sobre religião chamam de intolerância religiosa.

Ao longo de toda a história da humanidade, muitos são os exemplos de intolerância religiosa, envolvendo as mais variadas religiões. Os conflitos na Irlanda, que desde o século XVII colocam em lados opostos católicos e protestantes, vitimaram um grande número de pessoas, principalmente no final dos anos 1960. A guerra entre israelenses, judeus, e palestinos, muçulmanos, desde que, em 1947, a ONU aprovou a divisão da Palestina em um Estado árabe e outro judeu, também tem sido sangrenta e parece que nunca terá fim.

Embora a religião não seja o único fator gerador desses conflitos, não deixa de ser um relevante componente, e, afinal, o que faz com que se ataque, muitas vezes de forma violenta, o diferente, o que não possui a mesma crença?

Não aceitar e/ou lidar com a diferença religiosa do outro, não estabelecendo alteridade, fere o pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende do outro, segundo observa Roseli Fischmann, doutora em filosofia e história da educação. Para ela, “a crença e a não crença é irresistível, por isso não pode ser questionada, e a liberdade de crença está colocada junto com a liberdade de consciência, caracterizando uma questão de foro íntimo”.

No Brasil, a liberdade de consciência e de crença está assegurada pela Constituição, em seu artigo V , garantindo o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e às suas liturgias. Outra garantia é dada pelos direitos universais , que prevê que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião”. Nesse âmbito estão asseguradas inclusive a liberdade de mudar de religião ou crença, e a liberdade de manifestar essa religião, seja por meio do ensino, prática ou pelo culto. Isso pode se dar isoladamente, coletivamente, em locais públicos ou particulares, como consta no Artigo XVII.

Vagner Gonçalves da Silva, em seu livro Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, define que “a tolerância religiosa pode conviver com a discriminação religiosa e que esta pode ocorrer, não importa se com mais ou menos frequência, num contexto de liberdade religiosa. A liberdade religiosa pressupõe as liberdades de culto, de crença, de pensamento, de consciência e de expressão, liberdades que são essenciais para o funcionamento da democracia”.

Silva afirma que “os casos de intolerância, antes apenas episódicos e sem grandes repercussões, hoje se avolumaram e saíram da esfera das relações cotidianas menos visíveis para ganhar visibilidade pública, conforme atestam as frequentes notícias de jornais que o registram em inúmeros pontos do Brasil”.

Há notícias de que grupos de religiões afro-brasileiras tenham sido expulsos de comunidades no Rio de Janeiro, por traficantes que se intitulam neopetencostais. Em maio, um juiz federal, Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal, emitiu uma sentença considerando que os cultos de origem africana não constituem religião, o que causou um grande mal-estar que o fez voltar atrás. Um dos questionamentos surgidos à época era sobre a legitimidade de um juiz federal determinar o que é e o que não é religião.

O Estado laico e a neutralidade

De acordo com Fischmann, a intolerância religiosa está diretamente ligada a questões históricas e políticas e envolve cada grupo religioso em sua relação com a missão (missão Dei, de Deus). Ela afirma ainda que aspectos relevantes da identidade individual e coletiva podem significar ruptura com a situação anterior e também uso de força ou constrangimento psicológico, trazendo a necessidade democrática de garantia de plena liberdade de consciência, de crença e de culto. Essa liberdade é garantida pela Constituição mas, por vezes, o que se observa é certa confusão entre religião e Estado, embora o país se autodefina como um Estado laico.

De acordo com Aurenea Maria de Oliveira, doutora em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a nossa laicidade nunca se firmou, porque a própria ideia de laicização é frágil, posto que recai numa separação entre espaço público e privado que, pelo menos em nosso país, até o presente momento ainda não vingou. Para a socióloga “um dos elementos utilizados para agregar diferenças culturais entre nós foi a religião, especificamente a católica, assim fica difícil falar de laicidade no Estado brasileiro”. No Brasil o espaço público sempre foi um espaço muito religioso. Assim como se tem uma exaltação às festas juninas, que celebram santos da religião católica, com direito a mudanças no calendário escolar e político, é comum encontrar crucifixos nas paredes em espaços públicos.

Outra questão que sustenta a dificuldade em manter a ideia de Estado laico no Brasil é o ensino religioso, comum nas escolas do país. Segundo Aurenea, que coordenou o grupo de estudos “Religiões, identidades e diálogo", e buscou observar perspectivas intolerantes ou não que envolvem o ensino religioso, esse é um tema dos mais complexos tendo em vista que a disciplina de ensino religioso se constituiu no Brasil a partir de uma identidade catequética, proselitista e católica. Para ela “essa identidade cultural ainda é muito forte e arraigada, o que dificulta entender o ensino religioso como um espaço de debate acerca da diversidade religiosa e do fenômeno religioso, que deve ser entendido como fenômeno social e cultural e não como verdade absoluta”, afirma (leia aqui mais sobre o tema).

A intolerância é muito fácil de surgir, por isso o espaço público laico é importante. Para entender essa intolerância é necessário compreender o papel que a missão religiosa tem para o indivíduo e como essa missão é interpretada. “Central no interior de algumas comunidades religiosas, definir qual a missão que tem determinada igreja e seus membros, em determinado momento, pode se constituir em ocasião de conflitos e embates. Semelhantes conflitos não se dão exclusivamente no interior de cada grupo religioso, mas podem, com facilidade, ocupar a sociedade mais ampla e mesmo direcionar-se ao Estado. Caberia, assim, perguntar qual a relação do tema da missão com o Estado e, em particular, do Estado laico” afirma Fischmann em seu artigo sobre o tema missão e Estado Laico.

Roseli Fischmann explica que nas situações de intolerância a pessoa esquece que é só humana, extrapolando a própria ética. “O perigo está em determinar quem pode e quem não pode viver, quem merece e não merece existir. Um exemplo foi o genocídio durante o nazismo, direcionado aos judeus, ciganos e negros, que se estendeu a outros grupos sociais, gerando uma situação infindável”, afirma.

Justiça para crime de discriminação

Ana Paula Mendes Miranda, antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) acredita que a intolerância funcione como uma categoria política, diferenciando-se da categoria jurídica de discriminação. Ela explica que no caso de uma pessoa ser acusada e condenada em situações de intolerância religiosa seria na verdade condenada por discriminação, não por intolerância, segundo o Código Penal Brasileiro (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm ), que determina que “a intolerância é um ato do comportamento da sociedade que naturaliza uma desigualdade de direito”.

O Grupo de Estudos da Religião na Metrópole, que foi criado na busca de defesa das expulsões e situações de intolerância e constrangimento causados nas comunidades do Rio de Janeiro, propõe a criação de uma delegacia especializada em crimes contra a religião. O grupo defende a aplicação da Lei 7.719/89 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm ), que determina a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.