REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Ciência, linguagem e literatura - Carlos Vogt
Reportagens
Os sentidos das narrativas: autores e pensadores que se tornaram líderes espirituais
Cristiane Delfina
Ciência com humor
Carolina Medeiros e Juliana Passos
Relatos de viagem como forma de comunicação científica
Valdir Lamim-Guedes
Doutor das palavras: medicina e ciência romanceadas por Moacyr Scliar
Janaína Quitério
A divulgação científica no contexto escolar
Michele Gonçalves e Tatiana Venancio
Artigos
Um decálogo para a narrativa de divulgacão científica (SciCom Narratives)
Aquiles Negrete Yankelevich
Tudo é ficção científica
Luciano Levin
O realismo da especulação
Alfredo Suppia
Biografias impossíveis: escrever encontros entre artes e ciências
Susana Dias e Carolina Cantarino
Arte e ciência: labirintos que se encontram
Gabriela Frías Villegas
Resenha
Como representar o indefinido?
Gabrielle Adabo
Entrevista
Michael John Gorman
Entrevistado por Simone Caixeta de Andrade
Poema
Tabuleiro
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Os sentidos das narrativas: autores e pensadores que se tornaram líderes espirituais
Por Cristiane Delfina
10/07/2014

"Não seria a própria religião, olhando desde uma perspectiva filosófica e antropológica, uma forma de ficção? Os relatos extraordinários que perpassam a Bíblia, de Gênesis até Apocalipse, passando pela ressurreição de Cristo e sua ascensão, não seriam, na mesma perspectiva, belos textos de ficção científica? Quase podemos perguntar: o que não é ficção científica na religião?", sugere Julio Cézar Adam, doutor em teologia pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e atualmente professor da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, no artigo "Da ficção científica para a ficção religiosa: ideias para pensar o cinema de ficção científica como o culto da religião vivida", publicado na revista Horizontes, do programa de pós-graduação em ciências da religião da PUC-Minas.

Nesse texto, o autor trata de filmes de ficção científica como experiências religiosas, definindo religião como todo exercício humano de transcender e transpor os limites do tempo e do espaço através da imaginação, na busca de sentido, de valor, de contato, de esperança, para que a vida seja suportável e viável. Antes de mais nada, vale ressaltar que o autor trata da experiência religiosa em si, sem apontar nenhuma crença específica ou questionar a veracidade do que se prega. Para ele, a experiência religiosa reflete a evolução humana, já que tira a confiança do homem nas leis da natureza e a transporta para a ideia, para o imaginário, para a ficção, construindo a imagem do mundo ao invés de nele somente sobreviver.

A experiência de imersão no cinema, que se assemelha, como Adam aponta, à de culto, talvez passe antes pela imersão no texto e na ordem da narrativa, pelo conforto e convencimento encontrados em seus argumentos. Mas para Alan Myatt, PhD em teologia e religião pela Universidade de Denver, no Colorado, nos Estados Unidos, e leitor ávido de autores como Isaac Asimov (Eu-robô e O homem bicentenário), apesar de os mistérios do mundo serem apresentadas tanto na ficção quanto na religião, somente a segunda pode trazer respostas a anseios reais enfrentados pelos homens.

"A ficção científica é escrita conscientemente como ficção, quer dizer, os autores sabem muito bem que não estão fazendo descrição sobre a natureza do mundo. Por outro lado, estão trabalhado com conceitos religiosos ou filosóficos que muitas vezes tocam nas questões de verdades. As religiões tipicamente abordam as questões com a intenção de responder e falar alguma coisa de verdade sobre o que é a natureza de Deus e do Universo. O ser humano é sozinho no universo? Qual o propósito na vida? O que eu entendo é que a ficção científica levanta dúvidas, abre caminhos para a gente pensar além de nossos horizontes, mas ela não dá as respostas, embora seja muito comum autores, através de seus livros de ficção, apresentarem seu próprio pensamento, sua própria interpretação do mundo", avalia.

Segundo Myatt, quando os autores dos evangelhos descreveram a vida de Jesus, eles estavam relatando fatos históricos, acreditavam estar registrando verdades em relação às quais se posicionaram como testemunhas oculares. Sendo assim, a Bíblia, por exemplo, precisa ser analisada como documento histórico, e não como literatura de ficção. Apesar de alguns historiadores não aceitarem os registros como fatos reais, Myatt, que possui graduação em história pela Vanderbilt University, nos Estados Unidos, e tem experiência em análise de documentos históricos, está convencido da veracidade dos relatos sobre a vida e a importância de Jesus.

“O que temos que entender é que, muitas vezes, filósofos e teólogos chegam a conclusões não por causa da evidência em si, mas porque eles já têm filosofias, pressupostos que vão determinar as interpretações. Religião, na sua essência, é nossa tentativa de responder às questões últimas, finais. Nesse sentido, todas as questões, todas as filosofias são religiosas”, defende Myatt.

Da ficção para a doutrinação

Em 1957, Ayn Rand, roteirista russa que ficara famosa em 1943 com o livro A nascente, alcançava o auge de sua carreira como autora, publicando A revolta do Atlas, romance que se passa nos Estados Unidos sob um regime igualitário, em que pessoas talentosas e competentes não possuem abertura para exercer e explorar suas capacidades com autonomia e são constantemente “podadas" ou manipuladas pelo governo em prol de um coletivismo que sustenta também pessoas corruptas, preguiçosas e improdutivas. Misteriosamente, os indivíduos racionais, criativos e empreendedores começam a sumir um por um, levando o país a uma crise cultural e econômica.

Crítica clara ao comunismo, a história foi lida e aclamada por milhões de pessoas nos Estados Unidos, vendendo cerca de 800 mil livros por ano e conquistando principalmente membros da elite conservadora americana, como membros do Partido Republicano, entre eles o ex-presidente Ronald Reagan, o candidato a vice-presidente em 2012 Paul Ryan e os espíritos criativos e empreendedores do Vale do Silício, na Califórnia, que se identificaram com os "incompreendidos" personagens da ficção.

Para o jornalista americano Jeff Walker, autor do livro Ayn Rand cult, a autora russa já arquitetava a institucionalização de um culto e não somente de uma filosofia; e se antes conseguia plantar suas ideias nos roteiros para a grande experiência de "culto  cinematográfico”, fundou nos anos 1960 o Objetivismo, formalmente instituído como um sistema filosófico (não reconhecido pela academia), defensor do livre mercado e do individualismo ou egoísmo. Walker sente-se impelido a posicionar o trabalho de Rand como culto, para direcionar sua postura mais para uma visão religiosa ateísta que propriamente filosófica e político-econômica.

"Não penso que o Objetivismo é uma doutrina neutra que, por um golpe de sorte, tornou-se a doutrina de um culto. Eu mostro muitos aspectos de que os pensamentos de Rand conduziam a isso. Quanto mais eu via, mais eu percebia que este não era só o fenômeno de um culto clássico, como os escritos de Rand após 1943 não poderiam ser totalmente compreendidos se não fossem lidos como de uma líder formando, consolidando e espalhando seu culto”, explica.

Ciência e cientologia.

Ao primeiro contato, o leitor pode pensar que o movimento religioso conhecido como cientologia esteja relacionado à ciência e a seu caráter empirista, metodológico e lógico, mas uma das características apresentadas no site brasileiro da religião fundada por Lafayette Ron Hubbard em 1952 é que "nada, em cientologia, é verdade para si, a não ser que o tenha observado, e é verdade de acordo com a sua observação”. Considerando-se o princípio da ciência como a busca por verdades universais e sistemáticas, talvez o que se aplique nessa religião seja a busca pelas verdades empíricas próprias de cada indivíduo, e, por isso, reportagens em sites como Cientonetica e revistas como SuperInteressante, trazem informações sobre o uso de detectores de mentira chamados de eletropsicômetros, em sessões entre o fiel e uma espécie de auditor.

Inicialmente autor de histórias de ficção-científica, como Battlefield Earth e Fear, envolvendo invasões alienígenas e escravização de seres humanos, Hubbard também escreveu roteiros para o cinema, e, em 1950, partiu para a escrita de livros de autoajuda e desenvolveu um sistema que chamou de dianética – uma ciência da mente que mostra como ela funciona –, fundando a Igreja da Cientologia, que viria a aplicar os princípios de seu livro. A nova religião atraiu seguidores influentes e famosos, geralmente pessoas com muito dinheiro e que poderiam arcar com as despesas de aperfeiçoamento nos métodos de Hubbard, os quais só poderiam ser revelados a fiéis em estágios mais avançados de dedicação. Algumas revelações, ao vazarem para a mídia, geraram polêmicas acerca da seriedade da religião, pois traziam elementos muito semelhantes aos contos escritos pelo autor, sem fundamentação histórica ou científica, e foram vistas como histórias de ficção.

A religião da ciência é o positivismo

Para Auguste Comte, um dos fundadores da sociologia e principal filósofo do positivismo, o conforto e as respostas encontradas na imagem de Deus, na realidade, só poderiam vir da ciência. Segundo o artigo "O positivismo e sua influência no Brasil", de Rosélia Maria de Sousa Santos e José Ozildo dos Santos, "Comte tentou unir a filosofia à ciência biológica e médica, bem como à religião. Com o positivismo, a fé cristã seria substituída pela fé na ciência, ao mesmo tempo em que a Igreja Católica seria substituída pela Igreja Positivista”.

O positivismo consolidou-se como filosofia na França durante o século XIX, e teve grande influência na Europa sobre vários setores, como educação, arte e literatura, por valorizar a razão sobre a tradição num momento de grandes transformações, com as Revoluções Industrial e Francesa. Os avanços da tecnologia na indústria e na economia e ideiais libertários e anti-tradicionalistas se propagavam pelo mundo.

Conforme afirmam os autores do artigo, "o positivismo somente aceita como realidade fatos que possam ser observados, transformados em leis que forneçam o conhecimento objetivo dos dados e que permitam a previsão de novos fatos, criando a dimensão da neutralidade da ciência". Segundo eles, Comte propunha uma ordem política e social baseada nas leis naturais, na síntese invariável da matemática e no conhecimento científico como determinante da moral humana, sem abertura para a crença em um ou mais deuses ou qualquer evento metafísico. "Comte achava que a filosofia positiva deveria buscar aplicações políticas e fundou uma nova religião, afirmando que era possível planejar o desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos a partir dos referenciais das ciências exatas e biológicas", afirmam. A Religião da Humanidade, como chamou Comte, trata da cultura sistemática dos sentimentos, pregando a seguinte "regra": "O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim". Para Augusto Comte, a palavra religião – do latim religare, que significa “religar” – é o mais bem composto dos termos humanos, significando ligar o interior pelo amor e religá-lo ao exterior pela fé. Sua finalidade suprema é o aperfeiçoamento moral do homem, individual ou coletivamente, atingindo sucessivamente o lar, a pátria e a sociedade maior.

Culto, religião, filosofia, ciência, imaginação. Cada um desses termos evoca um comportamento social e um uso de nossa inteligência que constitui e organiza nossa vida em sociedade. Discursos e narrativas, intencionais ou não, são registrados em papéis e memórias digitais, mas nas mentes de cada um, talvez não exista necessariamente uma divisão tão clara entre nossas experiências. Somos movidos, distraídos e envolvidos por palavras, acreditando no que queremos, mas principalmente, vivendo com o que conseguimos acreditar.