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Artigo
Biografias impossíveis: escrever encontros entre artes e ciências
Por Susana Dias e Carolina Cantarino
10/07/2014
Os estudos biográficos desenham retratos comuns para os encontros entre artes e ciências. Ora nos encontramos com personagens como Leonardo da Vinci, que se tornou um ícone do casamento entre artes e ciências, cujas criações remetem à ideia de híbridos de arte-ciência que revelam afinidades. Picasso e Einstein, cujas obras sugerem confluências e correspondências entre o cubismo e a teoria da relatividade e mobilizam a busca de provas de encontros reais entre os dois gênios. Também encontramos artistas que são considerados ilustradores de ciências, como Remedios Varo que produzia pinturas para livros e revistas científicas e de divulgação. Conhecemos, ainda, cientistas que desenham, pintam, tocam instrumentos, cantam etc, e as influências que tais habilidades e experiências proporcionam em suas obras. Ficamos sabendo da paixão que certos artistas têm por ciência desde a infância, como Walmor Corrêa, cujo fascínio pela biologia teria motivado suas experimentações com ferramentas e métodos científicos. Assim como temos acesso aos relatos de artistas sobre os impactos dos eventos científicos e tecnológicos em suas vidas e obras, como na autobiografia de Kandinsky, em que ele diz como se sentiu quando a possibilidade de quebra do núcleo do átomo foi anunciada pela comunidade científica: “Esta descoberta me surpreendeu com um impacto fantástico, comparável ao fim do mundo. Em um piscar de olhos, os poderosos arcos da ciência quebraram diante de mim. Todas as coisas se tornam moscas, sem força ou certeza” (Asthon, 2002, p. 15).

Entre os efeitos que a biografia produz na divulgação científica e cultural e que nos interessa problematizar, está a de capturar esse objeto “arte-ciência”. Uma captura que nos apresenta as conexões entre artes e ciências como já dadas, como sempre tendo existido , sendo a separação algo artificial, feita apenas para fins de conhecimento, fins didáticos e/ou científicos. Uma separação que marcaria o pensamento moderno e ocidental e que precisaria ser superada. Caberia à divulgação científica e cultural resgatar tais experiências e descrevê-las. Apresentar os dizeres de artistas e cientistas, de artistas-cientistas, escrever sobre suas vidas e contextos de criação. Não estariam as perspectivas biográficas, centradas na história de vida dos sujeitos e no tempo cronológico, arquivando a pergunta “o que pode o encontro entre arte e ciência?” Haveriam outros modos de escrever encontros entre artes e ciências? O que potencializariam?

Insistir na pergunta... O que pode um encontro entre artes e ciências? Deixá-la suspensa, de maneira que possamos passar suavemente pelas respostas mais frequentes e abrir instantes, mesmo que efêmeros, em que fulgurem outros possíveis. Vontades de neutralizar o poder conclusivo e de destino final das palavras que convocam as forças dos sujeitos para dizer de artes e ciências. Ensaiar aberturas para uma experimentação com forças distintas, advindas de uma pequena ignorância, de um saber menor, de uma certa inocência, que para nós se constitui como condição de existência da divulgação científica e cultural como espaço-tempo de efetiva participação pública nos sistemas de ciências, artes e tecnologias.

Fazer da escrita uma espécie de laboratório-ateliê no qual se ensaiam cruzamentos criativos, entrelaçamento de potências e enredamentos múltiplos entre artes e ciências e... Explorar materiais, procedimentos, conceitos e forças para compor outros corpos, independentes dos encontros entre artes e ciências já mapeados, de potências já diagnosticadas. Corpos estranhos, alienígenas, ciborgues... Corpos que podem surgir de um lugar qualquer. Cuja vida não foi dada a viver. Indisciplinados. Sem destino determinado. Que desafiam os regimes perceptivos. Potencializam o funcionamento maquínico de palavras-imagens-sons, dando a ver o que pode o encontro entre artes e ciências: politizar a escrita, politizar a divulgação científica e a participação pública.

Preferir não escrever sobre para poder escrever com artes e ciências. Pensar com o cinema, como nos provoca Charles Feitosa (2013) ao propor um deslocamento das perspectivas mais comuns, que explicitam criticamente o lugar do cinema no contexto das transformações tecnológicas, políticas e estéticas (pensar sobre o cinema), ou que tratam as obras cinematográficas como suportes e ilustrações de correntes e argumentos (pensar através do cinema) (2013, pp. 11-23). Proposta que o filósofo faz ao apresentar o segundo livro do cineclube e ciclo de conferências “Ciência em Foco”. Um projeto que busca privilegiar o encontro entre cinema e pensamento como criação e não como reconhecimento, esquematismo e ordenação. Trata-se de expandir a Terra, de “ativar um terreno não-separado da vida, do tempo, dos afetos e das práticas cotidianas” diz Gabriel Cid (2013, p. 30), coordenador do “Ciência em Foco”. Abrindo espaços para a invenção de encontros ainda não existentes entre artes, filosofias e ciências humanas, que contribuam com a invenção de um cinema e uma ciência potenciais.

Trata-se de restituir as forças do dizer e do escrever. A escrita pensada e experimentada como um combate, não contra as ciências e a favor das artes, não contra o jornalismo e a favor da literatura, mas uma escrita que investe num combate entre Si, como nos propõe Deleuze (1997). “O combate-entre é o processo pelo qual uma força se enriquece ao se apossar de outras forças somando-se a elas num novo conjunto, num devir” (p.170). Combate que nos parece fundamental tendo em vista que o nosso contato com as ciências acontece por meio de escritas (feita de palavras, imagens, sons, signos, sintaxes) geradas pelo cinema, pela literatura, pelo teatro, pelas revistas e jornais, pelos museus e livros didáticos. Um combate que torna a escrita um problema de povo, de vida.

Como faz Jacques Rancière (2012), em O espectador emancipado, ao transformar os atos de narrar e traduzir num problema para pensar as relações entre arte e política. O filósofo afirma que uma comunidade emancipada é uma comunidade de narradores e tradutores. Tal afirmativa desenha-se no decorrer do livro como um gesto de suspensão das possibilidades já dadas aos atos de narrar e traduzir com as artes. Pois narrar não é relatar as sequências de um fato observado e vivido, separar fatos de interpretações, opor uma explicação científica ou filosófica à narrativa dos fatos ou propor uma escrita que se funda numa verdade essencial a ser revelada e aprendida. Narrar é inserir um dissenso no continuum sensível, é neutralizar o acordo perceptivo que cria um mundo homogêneo. Narrar é multiplicar mundos.

Traduzir, para o filósofo, também não é produzir um novo texto em uma língua já existente, adaptá-lo a uma gramática já definida, “é preciso inventar um idioma próprio à tradução, com o risco de que seja ininteligível a todos que perguntem o sentido da história, a realidade que a explicava e a lição que ela dava/impunha” (p. 24). A afirmativa de Rancière lança os atos de narrar e traduzir para fora de suas delimitações, convocando o nascimento de novos possíveis. Dizer sim à constituição de uma comunidade de narradores e tradutores é dar um corpo distinto à escrita, à arte e às ciências, forçando sua saída do corpo do narrador e tradutor. Um sim à vida, capaz de libertar um tempo distinto: a hora da estrela, de Clarice Lispector (1998). Um tempo em que a potência da escrita, com palavras, imagens e sons, surge como potência de criação.


Matéria de jornal criada em 2011 pela aluna Sheyla Cristina Smanioto,
em seu projeto de iniciação científica desenvolvido junto ao grupo multidão no Labjor-Unicamp,
com bolsas SAE-Unicamp e Fapesp .

Em nosso grupo de pesquisa – multiTÃO: prolifer-artes subvertendo ciências e educações (CNPq)¹ – temos investido, desde 2006, na criação de artefatos (vídeos, instalações, peças teatrais, blogs, jogos, ciclos de documentários etc.) que apostam em encontros entre artes e ciências e filosofias e... Entretanto, temos nos interrogado acerca do que pode esse encontro (essa partícula “e”), sobre a insistência de colocar artes e ciências na divulgação científica sob o signo da junção. Junção pensada, sobretudo na divulgação científica e cultural, como reunião, fusão, coincidência, confluência e convergência entre artes e ciências. Formas de resolver as dualidades, de acabar com as distâncias entre ciências e públicos (Dias, Rodrigues, 2013).

Os signos, diz Gilles Deleuze numa entrevista, “reenviam aos modos de vida, às possibilidades de existência, são sintomas de uma vida em jorro ou vazia” (Bellour; Ewald, 1991, p.17). Mais do que fazer um diagnóstico dos signos, este filósofo nos convida a experimentar com os signos as potências do pensar, “ porque estes nos colocam na boca um estranho sabor de paradoxo, um intenso desassossego, a impressão de uma grande farsa no ar, a sensação, enfim, de que perdemos de repente o chão” (Nascimento, 2007, p.4).

Em vez de meio de comunicação de informações e conhecimentos a serem desvelados, insistimos em pensar a divulgação científica como a criação de condições de possibilidade para a invenção de novos sentidos. Ao estudar as imagens, palavras e sons que circulam nas mídias associadas à divulgação das ciências e investigar as potencialidades das experimentações nas interfaces entre ciências, artes, filosofias, comunicações e educações, o multiTÃO deseja restituir à divulgação suas forças políticas para que ela possa efetuar algo que não está dado: uma divulgação científica que torne imagens, palavras e sons em tempos e espaços de experimentos, criando outras possibilidades de narrar e traduzir as ciências e as artes, tornando-as nem uma, nem outra: tornando-as todo um novo mundo possível (DELEUZE, 2007).


Imagens congeladas do vídeo Cores secas em imagens da ciência da aluna Fernanda Pestana,
parte de seu projeto de iniciação científica desenvolvido junto ao grupo multidão no Labjor-Unicamp
com bolsa Fapesp. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=5QVz2L2ljHo

Experimentações que se propõem a extrair forças das artes e ciências, em vez de se deter unicamente nos seus conteúdos ou formatos, num engajamento com os materiais (Ingold, 2012; 2011) que não se restringe às suas propriedades e qualidades físicas, às diferenças de grau, ao estado de coisas, já que “... em um mundo onde há vida, a relação essencial se dá não entre matéria e forma, substância e atributos, mas entre materiais e forças” (Ingold, 2012, p. 26). Experimentações que convocam, por exemplo, as forças de futuro da ficção científica, extraindo dela, em vez do conteúdo da narrativa, seu esforço por diferir do mundo já dado, através de suas apostas no desreconhecimento e deslocamento que, segundo Phillip K. Dick (1995), compõem a ficção científica, ao transformar o mundo naquilo que ele não é.

Investimos em encontros entre pesquisadores e artistas que nos possibilitem potentes pensamentos com artes e ciências como disjunções inclusivas. Propomo-nos que o escrever-pesquisar se dê num plano de experimentações capazes de abrir frestas nos conhecimentos-pensamentos no campo da divulgação, comunicação e divulgação científicas, que se deslocam dos encaixes, semelhanças, complementaridades, e se movimentam por traições, contaminações, roubos e hackerismos. Modos como temos imaginado que as conexões de artes e ciências possam ressecar a política representacional (subtraindo seus poderes) que atravessa de modo predominante de funcionamento de imagens, palavras e sons na divulgação científica.

Os projetos de pesquisa e divulgação científica que temos desenvolvido no grupo de pesquisa multiTÃO têm sido pensados/inventados na busca por criar possibilidades de participação intensa do público na produção de conhecimentos, pensamentos, sensações ligados às ciências, trabalhando especialmente com biotecnologias (células-tronco, transgênicos, reprodução assistida e clonagem) e mudanças climáticas. Temas, assuntos, conceitos, explicações, soluções, esperanças, polêmicas, riscos, medos, denúncias, disputas amplamente espalhadas pelas mais diversas mídias e que expõem a violenta participação das tecnociências na constituição das subjetividades contemporâneas.

Como “antes de ser o exercício de uma competência, o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação” (Rancière, 1995. p.7), servimo-nos dos mais diversos materiais, obras, autores, conceitos. Sem preconceito de estilo, de época. Não apenas artistas e obras consagrados, nem artistas que trabalham com ciências, ou cientistas que também são artistas. Sem obedecer a classificações e hierarquizações em gêneros que seriam considerados privilegiados para tratar do impacto das ciências na sociedade, como a literatura e como cinema de ficção científica. Apostamos em artefatos que expõem acontecimentos inefetuáveis em um estado de coisas e nos corpos. Artefatos que nos dão a ver seres-objetos impossíveis, que não existem, que não têm correspondência com mundo dissecado e fixado como real, mas que insistem e, nessa insistência, afirmam uma nova existência, paradoxal, por vir.

Pensamos artes e ciências enquanto forças que preferimos lançar em alianças imprevistas em vez de parentescos já definidos de antemão. Alianças que relacionam para alterar, para transformar, para fazer com que artes e ciências saiam dos seus lugares pré-determinados e fixos, dos arranjos disciplinares, homeostáticos e conservadores que funcionam como futureshock absorbers (Eshun, 1998), prendendo artes e ciências às suas condições de produção; retendo-as enquanto expressões de um contexto social e histórico; fixando-as em geografias e localizações dadas e determinadas, atribuindo-as a autores e grupos... De quais maneiras podemos pensar a relação entre vida, ciências, artes e política que não seja o seu aprisionamento e redução em relação à vida e contexto dos sujeitos, autores, artistas e cientistas? De quais modos podemos nos aproximar da imensidão de mundos que povoam, habitam os objetos, as coisas, os corpos, as imagens, palavras e sons sem projetar sobre eles as formas já conhecidas, as falas repetidas, as vidas já vividas?

Susana Dias é pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo e docente do Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural.

Carolina Cantarino é docente da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp e do Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural.

Bibliografia

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Bellour, Raymond; Ewald, François. Signos e acontecimentos. In: Dossiê Deleuze. Carlos Henrique Escobar (org). Rio de Janeiro: Holon Editorial, 1991, pp. 9-30.
Deleuze, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
Deleuze, Gilles. Lógica do sentido . São Paulo: Perspectiva, 2007.
Dias, Susana; Rodrigues, Carolina Cantarino. Leitura: Teoria & Prática. Transes. E se artes e ciências? E se … e …?. Vol. 30, N. 59, 2012. Disponível em: http://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/22
Dick, Philip K. "My definition of science fiction" In: The shifting realities of Philip K. Dick: Selected literary and philosophical writings. Nova York: Pantheon Books, 1995, p. 99.
Eshun, Kodwo. More Brilliant Than the Sun: Adventures In Sonic Fiction. London: Quartet Books, 1998.
Feitosa, Charles. Prefácio – Reaprendendo a ver o visível e o invisível. In: Garcia, Gabriel Cid (Org.) Ciência em foco: pensar o cinema v.2. Rio de Janeiro: casa da Ciência da UFRJ: Garamond, 2013. Pp. 11-24.
Garcia, Gabriel Cid. Apresentação – O cinema e a experiência do real. In: Garcia, Gabriel Cid (Org.) Ciência em foco: pensar o cinema v.2. Rio de Janeiro: casa da Ciência da UFRJ: Garamond, 2013.
Ingold, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes antropológicos, Porto Alegre , v. 18, n. 37, junho 2012 .
Lispector, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Nascimento, Roberto Duarte Santana. Signos deleuzeanos da diferença e as aporias do eu em Proust. Anais. XIX Encontro de Psicologia de Assis, ago. de 2006, Unesp, Assis, SP. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/encontrosdepsicologia/anais/ Acesso em: out. 2007.
Rancière, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
Rancière, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora Vilanova, Lígia Vassalo e Eloísa de Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: ED34, 1995.

Notas:

1-http://multitaocorrespondan.wix.com/multitao