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Reportagem
Refazendo as contas: felicidade na economia
Por Janaína Quitério e Patrícia Santos
10/09/2014

Felicidade como direito? Sim, há, no Brasil, um Projeto de Emenda à Constituição – a PEC 10/2010, apelidada de PEC da Felicidade – que propõe alterar o artigo 6º da Constituição Federal com a finalidade de “incluir o direito à busca da felicidade por cada indivíduo e pela sociedade, mediante a dotação pelo Estado e pela própria sociedade das adequadas condições de exercício desse direito”. A proposta, apesar de aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado no final de 2010, aguarda tramitação, mas coloca em evidência que a busca pela felicidade e pelo bem-estar coletivo já se consolidou como temática quando o assunto é desenvolvimento social – e também econômico.

Trata-se de uma tendência mundial que vem se fortalecendo nos últimos anos. Na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, realizada em 2012 no Rio de Janeiro, os chefes de Estado discutiram novos modelos de indicadores de desenvolvimento que fossem capazes de incorporar avaliações de custos ambientais e sociais. “Precisamos de um novo paradigma econômico que reconheça a paridade entre os três pilares do desenvolvimento sustentável. O bem-estar social, econômico e ambiental são indivisíveis”, discursou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, durante o encontro. Na ocasião, José Mujica, presidente do Uruguai, também usou seu discurso para criticar o atual estímulo ao consumo em detrimento do bem-estar e da felicidade das populações.

O que está em cheque é, sobretudo, a incapacidade do PIB (Produto Interno Bruto) em refletir o bem-estar em cada nação. Criado na década de 1930 por Simon Kuznets (Nobel de Economia de 1971) e Richard Stone (Nobel de Economia em 1984), o índice leva em conta a soma monetária de todos os bens e serviços produzidos durante um período específico. Nos países o PIB é, em geral, usado para direcionar investimentos, definir orçamentos governamentais e como indicador para o Banco Mundial. No Brasil, ele é calculado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) desde 1990 e serve como base, por exemplo, para o reajuste anual do salário mínimo.

Mas, para Ladislau Dowbor, doutor em ciências econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia e professor de economia da PUC-São Paulo, fazer o cálculo de desenvolvimento de um país usando apenas o PIB não faz sentido quando o objetivo for melhorar a qualidade de vida da população. “A composição do PIB é muito enganadora. Ele mede a intensidade de uso dos recursos, e não os resultados. Ao se construir hospitais de luxo, por exemplo, não importa se a população continua doente: haverá melhora no PIB”, diz. Dowbor cita também o aumento da criminalidade como um fator de elevação do PIB, uma vez que obriga as pessoas a gastar com medidas de segurança. Mas o resultado disso para a sociedade não é positivo.

Assim, esse parâmetro não é capaz de indicar o benefício das riquezas geradas para a sociedade, não considera a distribuição de renda, nem o quanto se reverte em qualidade de vida. Nos anos de 1970 e 1980, o PIB passou a ser colocado em questão por novos pensadores da economia. O próprio Kuznets já havia alertado que “o bem-estar de uma nação dificilmente pode ser inferido a partir da medida da renda nacional”.

PIB x FIB

O Butão se tornou o caso mais emblemático do uso de novos parâmetros para medir o desenvolvimento levando em consideração a felicidade da população. O pequeno país asiático de 725 mil habitantes que fica no Himalaia, entre a China e a Índia, foi pioneiro ao criar o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) nos anos de 1970. Karma Ura, atual presidente do Center for Bhutan Studies, avaliou recentemente que os caminhos que levam ao crescimento econômico e à redução da pobreza são diferentes. A visão de curto prazo para o crescimento impede que a sociedade olhe para as gerações futuras e respeite o trabalho das gerações passadas. Ura afirmou que indicadores alternativos, como o de felicidade, podem levar a um futuro mais próspero para a humanidade.

Essa necessidade de buscar alternativas ao PIB como balizador do desenvolvimento foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que adotou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado em 1993 pelo economista Mahbub ul Haq, com a colaboração de Amartya Sen (Nobel de Economia de 1998). O IDH, que passou a ser usado no Relatório do Desenvolvimento Humano, coordenado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), leva em conta parâmetros como educação, renda e longevidade.

O índice abrange aspectos importantes da qualidade de vida, mas tem a fragilidade de não permitir comparações entre níveis menores, como bairros de uma grande cidade, ou questões subjetivas, como requerem os defensores da economia da felicidade. Andrea Bolzon, coordenadora do Relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil, explica que o IDH serve como alerta para uma primeira análise das localidades, enquanto outros índices e variáveis complementam esse estudo e permitem compreender mais profundamente a realidade local.

O próprio Pnud desenvolve índices complementares ao IDH, como o Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD), o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), o Índice de Desigualdade de Gênero (IDG), entre outros. Além disso, no Brasil, o site Atlas do Desenvolvimento Humano Municipal – projeto realizado pelo Pnud Brasil em parceria com Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a Fundação João Pinheiro – disponibiliza o IDH-M (IDH adaptado ao nível municipal) e mais de 200 indicadores para complementar a análise da região pesquisada.

“Em 2013, foi a primeira vez que todos os 5.565 municípios brasileiros foram avaliados. Com esse documento, temos uma visão mais ampla sobre as necessidades locais, porque não se ficou apenas nos três eixos do IDH. Foram apresentados outros indicadores para ajudar os prefeitos a administrar as suas respectivas cidades”, avalia Ladislau Dowbor. Para ele, a iniciativa do IDH-M, que ele considera o documento mais consistente em termos de parâmetros de bem-estar produzido no país, permitirá políticas públicas efetivas para a população: “Agora é necessário generalizar o acesso aos dados. Não basta elaborar o indicador; ele precisa ser traduzido de forma fácil”, incentiva.

Ainda assim, no Pnud e na ONU permanece a discussão sobre outras maneiras de se medir o desenvolvimento de um país, além do aspecto econômico e considerando que o desenvolvimento sustentável está diretamente vinculado com a ideia de bem-estar e felicidade. Uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2011 incitou os governos a darem mais importância à felicidade e ao bem-estar na elaboração de políticas públicas para alcançar e medir o desenvolvimento econômico e social. Em reforço a essa ideia, em 2012, foi publicado o primeiro Relatório Mundial da Felicidade, acompanhado pelo Pnud. No mesmo ano, um conjunto de diretrizes internacionais foi lançado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para medir o bem-estar.

A medida da felicidade no Brasil

O professor de finanças da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e doutor em administração pela FEA-USP Wesley Mendes da Silva fala no advento da terceira geração de parâmetros de desenvolvimento nacional. “A primeira métrica foi o PIB. A segunda, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), e a terceira são as métricas de progresso nacional, onde se leva em consideração a satisfação da população com suas condições de vida”.

Mendes coordena, desde 2011, um projeto conduzido pela FGV que busca elaborar uma metodologia para avaliar o bem-estar no país. Intitulado Well-Being Brazil (WWB), o índice de bem-estar brasileiro não tem o objetivo de comparar o Brasil com outros países, nem de substituir métricas e indicadores objetivos, como o PIB e o IDH, mas, segundo Mendes, analisar 68 questões, organizadas em dez grupos, com vistas a mensurar, de forma inédita no país, o nível de felicidade e de bem-estar subjetivo da população partindo de seu anseio em saúde, educação, segurança, poder público, meio ambiente, transporte e mobilidade, família, vida profissional e financeira, consumo e redes de relacionamento.

O primeiro relatório, de 60 páginas, foi publicado em janeiro deste ano e traz a pesquisa feita em campo com 786 residentes na cidade de São Paulo. Os resultados foram apresentados para o presidente da Câmara Municipal e para o prefeito da cidade, Fernando Haddad. “Nossa intenção era coletar as impressões da população sobre o seu bem-estar para que os formadores de políticas públicas tomassem conhecimento sobre esses anseios. Neste ano de eleições, é possível que as informações possam ter influenciado na elaboração de propostas”, explica Mendes.

As próximas fases, que já têm financiamento privado, acontecerão no Rio de Janeiro e em Brasília. “Nosso benchmark é o usado pela prefeitura de Londres, o London Ward Well-Being Scores, que ganhou força nas Olimpíadas de 2012. Trata-se de métricas mais sofisticadas para monitorar o desempenho do governo, para além das existentes. Com essa pesquisa, o padrão de avaliação não será mais a quantidade de escolas construídas, mas a qualidade do serviço entregue por elas”, avalia.

Outro projeto brasileiro para medir a qualidade de vida vem sendo estudado, desde 2004, por pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Qualidade de Vida da Universidade Mackenzie. Hoje o grupo desenvolve um índice que considera "suficientemente robusto” para sinalizar prioridades para políticas públicas e se diferenciar em relação a outros parâmetros. Ele também mede a qualidade de vida, mas a partir de dados objetivos (tal como o IDH). Ao mesmo tempo, considera as desigualdades locais e regionais a partir de diferentes dimensões (diferentemente do IDH).

Para isso, o Índice Multidimensional de Qualidade de Vida para os Municípios (MIQL-M) analisa seis dimensões: renda; educação; sobrevivência (saúde); habitação; infraestrutura e meio ambiente; e acesso à informação. Os microdados dos censos demográficos de 2000 e 2010, do IBGE são a base para o levantamento feito em 2013. A partir dessa base de dados é possível reproduzir o índice em qualquer lugar do país onde o censo é feito.

Na mira dos críticos

Bem-estar é algo desejado por qualquer ser humano e, mesmo com o reconhecimento amplo na economia e na política sobre sua importância para o progresso social, continua em questão quais meios podem quantificar esse conceito subjetivo e, principalmente, como traduzir os números em propostas práticas para melhorar a vida das pessoas.

Vladimir Fernandes Maciel, professor de economia e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Qualidade de Vida na Universidade Mackenzie, analisa que os índices para questões subjetivas ainda são vistos como curiosidade no campo econômico em geral. Eles não fazem parte dos livros da área. Mesmo assim, estão evoluindo na forma como são construídos e nas possibilidades de uso, quando antes tinham aplicações muito locais. Uma das dificuldades é metodológica, segundo o professor, já que analisar questões subjetivas exige maior tempo e custos com entrevistas em campo conduzidas por profissionais com preparo específico.

Maciel afirma que os índices de felicidade e bem-estar têm uma contribuição para a reflexão e discussão que vai além de governos, políticas públicas e propõem pensar um sentido para a vida. A ideia se aproxima das origens desses parâmetros quando foram criados no Butão. Como autocrítica de um economista, o professor lembra que a utilidade dos dados levantados é fundamental. “Nesse mundo de profusão de índices, é preciso transformá-los em algo para embasar políticas públicas”. Para o professor, esses índices devem ser ferramentas que a imprensa e a sociedade compreendam, de modo que possam se basear e ter como parâmetro para cobrar ações de quem está no poder.