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Editorial
As designações da morte no Cafundó*
Por Carlos Vogt
10/11/2014
O Cafundó, comunidade negra localizada no município de Salto de Pirapora, perto de Sorocaba, no estado de São Paulo, tem uma característica cultural que tem sido objeto de atenção de estudiosos e de jornalistas desde a sua “descoberta” em 1978.

Peter Fry e eu nos dedicamos durante alguns anos a pesquisas na comunidade e em, 1996, publicamos, com a colaboração de Robert Slenes, o livro Cafundó – A África no Brasil, cuja segunda edição foi recentemente lançada pela Editora da Unicamp.

A singularidade do Cafundó se deve, em especial, ao fato de que os seus habitantes, além de falantes do português, utilizam também um vocabulário de cerca de 140 palavras de origem africana, quimbundo sobretudo, com uma função que eles próprios reconhecem como de língua secreta e a que dão o nome de falange, ou cupópia.

Dada a parcimônia do vocabulário, para falar na cupópia, o recurso a metáforas e perífrases é constante e sistemático, fazendo com que a maioria das palavras tenha
significados múltiplos.

A grande exceção a esse fenômeno de generalizada homonímia se encontra nas palavras usadas para falar de sofrimento, doença e morte.

Mafambura e cachapura são os vocábulos que designam formas diferentes de doença: a que vem por feitiço, de fora, e a que vem naturalmente, de dentro. Em correlação com estas duas formas de sofrimento, há também duas maneiras de morrer: morrer de mafambura é cuipar e morrer de cachapura é cuendar pra cojenga carunga. O termo cuiparsignifica também “matar” e é utilizado ainda quando a causa da morte é a violência física e não apenas a espiritual do feitiço.

O vocabulário da cupópia tem mais um verbo nesse campo semântico. Trata-se de muiombar, formado, provavelmente, por derivação, a partir do substantivo muiombo (defunto) significando “morrer”, no sentido da morte em si, da morte biológica, e constituindo o termo médio dos três pares de oposição que estão representados na figura do triângulo abaixo:
http://web.labjor.unicamp.br/comciencia/img/report.jpg   

O termo muiombar, desse modo, se emprega para designação do termo médio das oposições de sentido e também como designação da categoria geral do campo semântico da morte no vocabulário da língua africana do Cafundó, formado, como foi dito, pelos três pares de oposição acima representados.

O esquema, a seguir, sistematiza esse jogo de palavras, sentidos e conceitos na cupópia:

Sofrimento

Causa

Sofrimento

Sofrimento

cachapura

natural

remédio e (maiembe)

cuendar pra conjenga
carunga

mafambura

feitiço
(matuara)

remédio e
reza (cutaro)

cuipar

 

violência

 

cuipar

 
No Cafundó, como no país, em geral, as pessoas recorrem, seguindo um paradigma “técnico e científico”, aos médicos e farmacêuticos e, complementarmente, não necessariamente nesta ordem, seguindo agora um paradigma “místico”, às rezas, contrafeitiços, garrafadas etc, de modo que essa complementaridade de atitudes diante do sofrimento e da morte parece ser análoga à que existe entre o uso da “língua africana” e o uso do português pela comunidade.

Na oposição e complementaridade de seus traços de “africanidade” e “caipiridade”, o Cafundó é parte do Brasil rural e talvez metáfora das grandes contradições que caracterizam o Brasil contemporâneo.

Entre os sentidos que as expressões muiombar, cuipar e cuendar pra conjenga carunga podem ter na cupópia, talvez os mais adequados sejam aqueles que, de modo simples e direto, traduzem essas expressões do português: morrer, morrer de morte matada e morrer de morte morrida.     

* Este texto constitui-se, basicamente, do Cap. 5, do livro. VOGT. Carlos; FRY, Peter. Cafundó - A África no Brasil. 1ª ed. Campinas: São Paulo:  Editora da Unicamp e Companhia das Letras, 1996, 2ª. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.  (Com a colaboração de Robert Slenes).