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Artigo
Diálogos entre a vida e morte nos filmes de zumbis: aproximações e disrupções
Por Paula Gomes
10/11/2014
“O único mito moderno é o mito dos zumbis” (2010: 445), anunciaram Gilles Deleuze e Félix Guattari em 1972. Esta ideia adquire novo fôlego atualmente, um momento marcado pela presença quase ubíqua do mito do zumbi nas mais variadas instâncias significativas do cenário cultural global. Mas, se considerarmos apenas a trajetória da representação cinematográfica dessas criaturas, podemos observar uma produção bastante extensa e heterogênea, que se inicia logo nas primeiras décadas do século 20. Desde as primeiras aparições do zumbi nos cinemas até a sua quase onipresença em todas as mídias nos dias atuais, muitas mudanças podem ser observadas nessas criaturas. Neste artigo iremos tratar especificamente de uma delas. A natureza da relação estabelecida entre os personagens e os zumbis sempre se caracterizou pela noção de proibição: não era possível estabelecer qualquer tipo de vínculo entre eles além da abjeção que essas criaturas causavam aos vivos. No entanto, podemos observar um movimento recente de diluição dessas fronteiras em histórias de zumbis contemporâneas que seguem explorando diferentes possibilidades de diálogo entre esses dois tipos de personagens.

Quando assistimos aos primeiros filmes de zumbis realizados nos Estados Unidos nas décadas de 1930 e 1940, é bastante perceptível que nessas histórias a relação entre os zumbis e os humanos é marcada pela ideia de impedimento, de impossibilidade de interação afetiva. Podemos observar isto muito claramente em Zumbi branco (Victor Halperin, 1932) e A morta-viva (Jacques Tourneur, 1943). Estes filmes são ambientados no Caribe, e suas tramas giram em torno do mito do zumbi haitiano, figura da cultura do Haiti que pode ser descrita como um indivíduo que, por meio de feitiços, morre e retorna à vida para servir a um mestre (1). As tramas giravam em torno de personagens norte-americanos que abandonavam seus territórios familiares com destino a uma ilha do Caribe que, no decorrer dos filmes, revelava-se um local perigoso, regido por forças sobrenaturais, de modo que o espaço era bipartido simbolicamente entre o domínio da racionalidade (os Estados Unidos) e o espaço dominado pelo sobrenatural e numinoso (o Caribe). A entrada dos norte-americanos no espaço caribenho é representada como um movimento transgressor que coloca em risco suas vidas, e a retaliação se materializa por meio da ameaça de que as personagens norte-americanas femininas sejam transformadas em zumbis.

Segundo o mito haitiano, a transformação de um indivíduo em zumbi corresponde a um “roubo” de sua alma e, deste modo, resulta na impossibilidade de estabelecer qualquer vínculo afetivo com outra pessoa. No entanto, nesses filmes, a transformação de uma personagem feminina em um zumbi também representava a ameaça de que ela pudesse ser possuída sexual e simbolicamente por um caribenho. A premissa de que uma mulher branca pudesse se tornar um zumbi sob o domínio de um caribenho era particularmente assustadora nesse período, na medida em que simbolizava o temor norte-americano em relação ao contato com essa cultura, e com a miscigenação racial, de modo que “o verdadeiro horror desses filmes estava centrado da possibilidade de um ocidental se tornar dominado, subjugado, e efetivamente ‘colonizado’ por um nativo pagão” (Bishop, 2008: 141).

Essa situação se evidencia ainda mais nesses filmes quando observamos que as norte-americanas efetivamente se transformam em zumbis no decorrer das tramas, mas o seu contato com o caribenho não se efetiva, sugerindo que a transposição das barreiras entre a vida e a morte estaria mais próxima de ser aceita do que a diluição das barreiras que separavam os norte-americanos e os caribenhos. Esta representação, no entanto, também precisa ser entendida como parte integrante da estratégia discursiva dos Estados Unidos, que legitimava a colonização e intervenção econômica no Haiti (1915-1934), cuja estruturação é apontada por Frantz Fanon:

O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não é o suficiente para o colonizador delimitar fisicamente o espaço do nativo com a ajuda de um exército ou força policial. Para mostrar o perfil totalitário da exploração colonial, o colonizador retrata o nativo como uma espécie de quintessência do mal (Fanon, 1963: 41).

A partir da segunda metade do século 20, os zumbis dos filmes norte-americanos gradualmente perdem a herança caribenha e passam por diversas experimentações, sendo relacionados com alienígenas, pessoas contaminadas por experiências atômicas, e até mesmo com comunistas, refletindo as ansiedades norte-americanas da década de 1950, até estabilizarem-se como os famosos mortos-vivos que se alimentam de carne humana. A primeira aparição destes remonta ao filme A noite dos mortos-vivos (1968)deGeorge A. Romero, cuja narrativa segue um grupo que se abriga em uma casa relativamente afastada da cidade para tentar sobreviver a uma epidemia que estaria trazendo os mortos de volta à vida, investindo-os do desejo de se alimentar dos vivos. Deste modo, vemos que nesse período os filmes de zumbis norte-americanos voltam-se para seu próprio território, discutindo, por meio de sua estrutura espacial, os rumos da sociedade norte-americana da época. Muitos outros cineastas se apropriaram dessa mesma fórmula para criar suas próprias histórias de zumbis durante toda a segunda metade do século 20.

Nesses filmes a tentativa de proximidade entre humanos e zumbis sempre gerava consequências catastróficas: a cena em que uma criança de transforma em um zumbi e mata seus próprios pais em A noite dos mortos-vivos é icônica. No entanto, o que mais chama a atenção é a total falta de relação entre os próprios humanos, na medida em que é o comportamento violento e antissocial destes que acaba transformando o interior dos abrigos em espaços tão ou mais contaminados do que o lado externo, povoado por zumbis. Muitos filmes exploraram esse comportamento agressivo dos sobreviventes para desenvolver críticas ao militarismo, ao racismo, ao territorialismo, ao modelo patriarcal, entre outras questões sociais do período. No entanto, talvez a maior crítica social desses filmes esteja relacionada a um comportamento que o autor Kim Paffenroth chama de “individualismo autoconfiante” norte-americano, caracterizado por uma profunda desconfiança em relação ao governo e aos seus especialistas, ao endeusamento de armas de fogo e de automóveis, e à mística da figura do lobo solitário. O autor reflete que todas essas características juntas talvez pudessem dar uma vantagem a essa sociedade no início de uma tragédia, mas logo a incapacidade de um comportamento solidário e comunitário iria levar a população ao declínio, como de fato ocorre com os sobreviventes da casa de campo em A noite dos mortos-vivos, e em outros tantos filmes de zumbis desse período:

Considerando o cenário de uma invasão zumbi, ou qualquer conflito civil ou desastre natural, os cidadãos norte-americanos, individualistas autoconfiantes, profundamente desconfiados em relação ao governo, aos intelectuais, armados com um número de armas de fogo que os europeus consideram incompreensível entre as nações “civilizadas”, provavelmente passariam melhor do que outras pessoas de outros países. Nós iriamos todos nos trancar em nossas casas individuais e começaríamos a atirar. Ou, melhor ainda, nós todos usaríamos a outra máquina intrinsecamente americana: o automóvel, para dirigir por aí e atirar em zumbis. Nós iriamos provavelmente ganhar certa vantagem sobre os zumbis a curto prazo em algumas regiões, como é mostrado em A noite dos mortos-vivos e Despertar dos mortos. Mas na medida em que a crise continuaria, a não ser que o nosso individualismo desse lugar a sentimentos de confiança, solidariedade e comunidade, nós estaríamos condenados no momento em que nossos estoques de munição e comida começassem a acabar e nós começássemos a lutar contra nós mesmos. Notícias sobre o furação Katrina em que as pessoas começaram a pilhar e a atirar nos funcionários de resgate, atrapalhando-os, infelizmente confirmam isso. Nosso mito americano do lobo solitário, o cara durão que resolve todos os seus problemas com seus punhos, ou mais frequentemente, com suas armas, não é muito realista ou útil no mundo real; se a compaixão pela comunidade e a ajuda ao próximo é posta de lado, pode-se dizer que é um caminho direto para a perdição (Paffenroth, 2006: 21).

Os filmes de zumbis subsequentes de George Romero lidam intensamente com essa situação de deterioração da humanidade dos sobreviventes, que ocorre em paralelo a outro movimento, o da “humanização” dos zumbis. Essa dinâmica fica bem evidente no terceiro filme de zumbis de Romero, Dia dos mortos (1985), no qual um zumbi chamado Bub é, de certa forma, “adestrado” por um cientista, que vislumbra na experiência a possibilidade de neutralizar a epidemia de zumbis. O condicionamento mostra sinais de sucesso, mas acaba frustrado, pois, ironicamente, o comportamento dos cientistas e militares do bunker militar onde os experimentos são realizados não consegue ser civilizado o bastante para servir de exemplo ao zumbi: os militares hostilizam Bub, e o cientista apresenta comportamentos éticos bastante controversos. Ao final do filme, o zumbi adestrado demonstra mais solidariedade e humanidade do que os militares e cientistas do bunker, quando lamenta intensamente a morte de seu mestre. No quarto filme de zumbis de Romero, Terra dos mortos (2005); não há outra tentativa de adestrar os zumbis, mas estes são representados de forma muito mais humanizada do que os sobreviventes, revelando-se as verdadeiras vítimas desse conflito entre humanos e zumbis, invertendo assim o eixo de polarização inicial entre vítimas e monstros.

Esta desintegração social e afetiva também é bastante problematizada no filme inglês I zombie: the chronicles of pain (Andrew Parkinson, 1998), uma história melancólica sobre o conflito de um homem que lentamente se transforma em um zumbi e por isso precisa se isolar de todos, dentre eles, de sua namorada. No entanto, as cenas do início do filme nos mostram um profundo desgaste no relacionamento dos dois, de modo que a transformação do namorado em zumbi e o seu afastamento forçado parecem evidenciar mais uma consequência do que um incidente trágico.

No entanto, se observamos a produção atual de histórias do gênero, podemos observar que a noção de impedimento no relacionamento entre os zumbis e os humanos vem se diluindo, visando à construção de várias formas de relacionamento entre os dois tipos de personagens. No aclamado seriado francês Les revenants (Canal+, 2012) vemos um grupo de pessoas que, inexplicavelmente, retornam à vida, e tentam reconstruir, ou reformular, seus laços afetivos com seus amigos, namorados e familiares. A série norte-americana Resurrection (ABC, 2014) também possui uma trama semelhante. Já o seriado inglês In the flesh (BBC Three, 2013) centra-se na história de Kieren Walker, um adolescente que comete suicídio, e após retornar dos mortos como um zumbi, consegue ser reinserido na sociedade graças ao desenvolvimento de uma droga que reverte o estado de zumbificação, de modo que todos os zumbis passam a ser chamados de “sobreviventes da síndrome de falecimento parcial”. Sua reinserção, no entanto, gera tensões e processos de intolerância e exclusão. O fato de Kierem ser gay – e este ser o motivo de seu suicídio – também levanta, nessa série, a questão específica de identidade sexual. Outra produção que trata da questão da identidade sexual por meio da interação entre um zumbi homossexual e a sociedade é o filme Otto; or, up with dead people (2008) de Bruce La Bruce(2). Estas obras, ao sobreporem as tensões disruptivas da morte e da sexualidade, potencializam imensamente a intensidade desta discussão.

Outra forma de uso político da relação entre vivos e mortos é abordada em Candidado maldito (Homecoming, Joe Dante, 2005) episódio da série televisiva Masters of horror (Showtime, 2005) no qual soldados mortos nos conflitos do Oriente Médio ressuscitam na época das eleições para evitar que George W. Bush se reeleja. O contato que se estabelece entre os dois tipos de personagens funciona como uma espécie de ensinamento, que é transmitido dos zumbis para os cidadãos norte-americanos, visando à construção de uma identidade nacional mais positiva. Essa interação construtiva não ocorria em filmes de Romero, ou em filmes de cineastas inspirados pelo diretor, como em Dead of night (Bob Clark, 1972), por exemplo, um filme que conta a história de Andy, um soldado do Vietnã que é trazido de volta dos mortos por meio de orações de sua mãe, mas precisa se alimentar dos vivos para evitar que seu corpo se decomponha. Um filme, portanto, de contornos muito mais niilistas do que Candidato maldito.

Já no filme satírico canadense Fido – o mascote (Andrew Currie , 2006) os zumbis são reinseridos na sociedade após o desenvolvimento de um colar que os tornam dóceis, de modo que podem ser utilizados para as mais variadas funções. O filme conta a história do casal Bill e Helen, que adquire o zumbi Fido e este se torna o melhor amigo de seu filho Timmy. No decorrer do filme, a personalidade de Fido acaba se sobrepondo a de outros personagens, culminando em um final em que Helen e Timmy descobrem-se mais contentes ao lado do zumbi do que de Bill.

As tensões relacionadas aos relacionamentos amorosos também estão sendo tratadas em livros e filmes que adotam a perspectiva do zumbi em suas tramas. Para sanar a falta de densidade psicológica dos zumbis, condição que os tornariam protagonistas literários fracos, os livros inserem complexidade cognitiva a esses monstros. Alguns livros estão se tornando bastantes populares ao combinar em suas tramas zumbis com densidade psicológica e romance, como Warm bodies (2010) de Isaac Marion, adaptado para o cinema com o título em português de Meu namorado é um zumbi (Jonathan Levine, 2013); e o romance de humor negro Breathers: a zombie's lament (2009) de S.G. Browne, que atualmente também está sendo adaptado para os cinemas.

Certamente seria necessário desenvolver uma análise mais delongada das obras contemporâneas que apontamos, mas uma hipótese inicial seria a de que esta diluição das barreiras comunicativas entre zumbis e humanos parece estar sendo utilizada em dois principais tipos de tramas: (1) histórias que exploram questões políticas, como críticas nacionais (Candidato maldito), e políticas de identidade de minorias sociais (In the flesh; Otto); (2) e histórias que exploram questões afetivas (Les revenants; Meu namorado é um zumbi). Estes dois movimentos também podem ser encontrados de forma associada, como ocorre em muitos capítulos de In the flesh, que mesclam conteúdo crítico político com temas e questões afetivas.

Neste sentido, é interessante observar que os zumbis sempre parecem dizer muito sobre os vivos, mas, diante da impossibilidade destes escutarem o que eles tinham a dizer sobre a intolerância com outras culturas (zumbi haitiano), ou dentro de sua própria sociedade (zumbi romeriano), o zumbi contemporâneo parece ter aprendido a se comunicar melhor, para garantir que seu recado seja enfim entendido.

Paula Gomes é formada em rádio e TV pela Unesp e mestre em imagem e som pela Universidade Federal de São Carlos. paulagomesrtv@gmail.com

Notas:
1 – A principal referência destes filmes sobre o zumbi haitiano é advinda da literatura de viagem de antropólogos e exploradores que retratavam a região e seus costumes pelo viés do exótico, como The magic island (1929) de William Seabrook, e Tell my horse (1938) de Zora Neale Hurston.
2 – Bruce la Bruce também lançou em 2010 o controverso L.A Zombie. O filme também contém a temática gay, mas é menos político e possui mais cenas de sexploitation do que Otto.

REFERÊNCIAS
Bishop, K. W.” The sub-subaltern monster: imperialist hegemony and the cinematic voodoo zombie”. In: The Journal of American Culture, vol.3,1 nº.2, 2008, p.141–152.
Deleuze, G. e Guattari, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010.
Fanon, F. The wretched of the earth. New York: Grove Press, 1963.
Hurston, Z. N. Tell my horse: voodoo and life in Haiti and Jamaica. New York: HarperCollins, 2008.
Paffenroth, K. Gospel of the living dead: George Romero's visions of hell on earth. Texas: Baylor University Press, 2006.
Russell, J. O livro dos mortos. São Paulo: Leya Cult, 2010.
Seabrook, W. B. The magic island. New York: Paragon House, 1989.