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Entrevistas
Paulo Markun
O jornalista analisa semelhanças e diferenças da cultura política no Brasil entre o período de ditadura militar e os tempos atuais e valoriza o processo democrático
Roberto Takata
10/04/2015
 Paulo Markun é jornalista, com mais de 40 anos de profissão. Comandou vários programas, como o Roda Viva da TV Cultura e Retrovisor, no Canal Brasil. Entre 2007 e 2010 foi presidente da mantenedora da TV Cultura, a Fundação Padre Anchieta. É autor de 13 livros, entre eles Meu querido Vlado, no qual apresenta, a partir de uma perspectiva pessoal, a trajetória do jornalista Vladimir Herzog, morto durante interrogatório no DOI-Codi em 1975. Sua obra mais recente é Brado retumbante, lançado ao final do ano passado, em que narra, em dois volumes – “Na lei ou na marra” e “Farol alto sobre as diretas” –, os acontecimentos de 1964 a 1984, no período da ditadura civil-militar brasileira.

À ComCiência, o jornalista concedeu uma entrevista por telefone, analisando as similaridades e as diferenças da cultura política do brasileiro entre os eventos que antecederam a instalação do regime militar e o momento atual de intensas manifestações de insatisfação política e econômica. Ressaltou também as diferenças fundamentais de cenário nacional e internacional entre os períodos e a dificuldade dos parlamentares brasileiros promoverem uma reforma política, que não se coaduna com os interesses deles próprios.

Em Brado retumbante, você usa muito a expressão “na lei ou na marra” para caracterizar alguns episódios da época da ditadura militar no Brasil. Essa expressão poderia ser generalizada para caracterizar toda a história da República?

Em grande parte da história do Brasil, eu acho que essa ideia prevalece. Segmentos ou setores que não conseguiam fazer valer sua vontade pela força da democracia, buscavam resolver o problema de outra maneira. E isso, de alguma forma, foi sintetizado no episódio de 1962, no congresso de camponeses, por Francisco Julião, e eu acho que é uma boa metáfora para outros exemplos de distorção do modelo democrático. Aparentemente, nos últimos anos isso se resolveu, pelo menos até agora nós estamos vivendo o mais longo período de respeito ao processo democrático. Mas mesmo assim, volta e meia surgem tentativas de dizer que “bom, a democracia não é capaz de resolver todos os problemas, então vamos achar uma solução à margem da democracia”. Naquele período dos anos 1960, isso tinha um pano de fundo que era a chamada Guerra Fria, que hoje não existe mais. Houve, penso que no mundo há, uma valorização do sistema democrático, ainda que isso seja insuficiente para resolver tudo.

O fato de o ambiente de hoje não ser o da Guerra Fria pode ter mudado essa concepção de “na lei ou na marra”?

Eu espero, mas acho que é mais do que isso. Nós estamos vivendo um período de fortalecimento ou, ao menos, de consolidação das instituições. Se de um lado você vê instituições como o próprio Congresso Nacional com sua credibilidade abalada, de outro você tem uma atuação mais intensa do judiciário, você tem o Ministério Público como uma instituição nova, que só teve relevância no Brasil a partir de 1988. E ele pressupõe, primeiro, uma Constituição que seja seguida por todo mundo. O Ministério Público é criado, basicamente, para defender os interesses difusos, aqueles que não têm uma defesa mais consistente. Então, acho que isso vai levando a um avanço. Mas, ainda assim, se você olha no período histórico do Brasil, é um período ainda pequeno para que essas instituições estejam consolidadas. Aí tem todas outras discussões que os antropólogos e os sociólogos, volta e meia, mencionam, que é o fato de que ainda é uma sociedade que está se estruturando, e está superando questões muito antigas, como a questão da desigualdade, que vem da herança escravagista, uma certa desmoralização do trabalho, tudo isso é um processo tortuoso. Mas o ingrediente de não ter mais um conflito internacional pesa significativamente porque você não tem mais a pressão da chamada Guerra Fria para influenciar nesse cenário.

Então estamos vivendo um período de amadurecimento das instituições?

Tortuoso. Não é uma linha traçada com toda lógica e compreensão de que as coisas acontecem. Mas eu, nos dias em que sou otimista, acho que estamos avançando, mas, em outras ocasiões, você vê o distanciamento, principalmente do parlamento em relação aos seus representados, muito grande. Não que o executivo seja muito melhor, mas ele, de alguma forma, parece que muda mais efetivamente ao longo do tempo. A gente supõe, digamos, que a mudança processada no executivo vai resultar em mudanças efetivas na sociedade; porque o papel do legislativo não é suficientemente considerado, e vivemos em uma sociedade em que você tem, por exemplo, entre outras coisas, uma Constituição que foi feita para ser parlamentarista e um regime presidencialista. Isso gera, muitas vezes, esse conflito que nos faz depositar todas as fichas na eleição do governador, do prefeito, do presidente da República, quando, na verdade, boa parte das possibilidades de atuação desses governantes é restringida e controlada por um parlamento sobre o qual, aparentemente, a decisão do eleitor parece menos eficiente, pelas regras eleitorais, financiamento de campanha, enfim, de toda essa discussão que volta e meia ressurge.

Esse descasamento entre uma Constituição parlamentarista e um regime presidencialista estaria na gênese do chamado presidencialismo de coalização?

Creio que sim. Acho que é isso que expressa essa questão. Você precisa construir essa maioria no Congresso, e essa maioria se processa não necessariamente por alianças programáticas, ideológicas, mas pela força que o executivo tem e pelos interesses que o parlamento opera. Tenho a impressão de que estamos vivendo os últimos momentos desse cenário. O que virá pela frente eu não sei dizer, se vai ser uma evolução harmônica e tranquila do processo ou se vamos ter algum tipo de “soluço” aí nesses próximos tempos. Mas o fato é que a impressão que dá é que esse modelo está se esgotando, não é? Mas ele vem sendo praticado desde a volta da democracia. Você não teve modificações radicais; nem mesmo a mudança do PSDB para o PT foi tão radical assim. Para mim, eles são assemelhados em muitas coisas, eu tenho a ilusão de que se eles se juntassem, talvez o resultado pudesse ser melhor do que essa disputa que hoje parece ser terrível. E o que nós estamos vivendo neste exato momento do segundo mandato da presidente Dilma é isso, que ela adotou parte das premissas daquelas que foram derrotadas na eleição.

A superação dessa situação passa pela necessidade de uma reforma política?

Sim, mas a questão é qual será a reforma política possível desenvolvida por atores que são parlamentares que pensam primeiro nos seus interesses imediatos e não naquilo que eles deveriam representar para a sociedade. E, em segundo lugar, se você perguntar numa estação do metrô às seis da tarde o que o cara pensa sobre a reforma política, o grande público não tem a menor ideia. E, mais, se você juntar três cientistas políticos, você vai encontrar cinco alternativas e várias posições: um acha que a questão é facilitar o surgimento de novos partidos, outro que quer dificultar, um que pensa que é financiamento público, outro diz que não é, um que é o voto distrital misto, outro que é o voto distrital com lista, sem lista... Enfim, é um cardápio que não tem um consenso, e isso cai num parlamento cujo interesse de mudar a regra do jogo é próximo de zero. Porque essa mudança implicaria necessariamente numa renovação e muito provavelmente na não continuidade desses representantes como parlamentares. Então, volta e meia, esse assunto ressurge, ele é apresentado como a solução mágica para todos os problemas e nada acontece.

E o que você acha da ideia de uma constituinte, proposta justamente como uma tentativa de superar essa questão dos interesses dos parlamentares de agora?

É, talvez fosse o caminho. A questão é que isso demanda uma mobilização da sociedade que não assisto. Tivemos em 2013 aqueles episódios aparentemente inexplicáveis, para mim, pelo menos, é difícil compreender o que aconteceu efetivamente ali, naquele processo. E dali não resultou nada. E, de lá para cá, você tem agora outro momento em que tem uma insatisfação em relação ao governo, em particular à presidente, à corrupção... É um segmento da sociedade que se mobiliza, mas também dá a impressão de que não vai levar à coisa nenhuma.

Se a população tivesse um maior conhecimento a respeito da reforma política e dos processos políticos, você acha que ela seria mais efetiva na cobrança por mudanças?

Não sei lhe dizer porque eu acho que, na verdade, o eleitorado se mobiliza por questões bastante específicas. Ele escolhe seus candidatos, principalmente ao executivo, de uma maneira razoavelmente racional, mas quando ele vai pensar em um deputado, um senador ou um vereador, esse mesmo processo não acontece. Os parlamentos estão cada vez mais distanciados do público. Como mudar isso é um processo complicado, não tem uma fórmula mágica que mude da noite para o dia. De todo modo, nós somos, dos países dos BRICS, a única grande democracia, ou a mais estável delas. E isso já é um avanço. Agora, é insuficiente diante das complexidades dos problemas que estão colocados.

Há, entre os brasileiros, consenso suficiente para se trabalhar na superação dessa crise política?

Eu diria que a maioria dos brasileiros ainda está distanciada desse debate. Mesmo com todas as manifestações recentes, a grande massa não está envolvida. Não estava representada nem pelas manifestações do último dia 13 de março, nem pelas manifestações do dia 15 de março. Embora tenham sido muito expressivas, principalmente aquelas últimas do dia 15. Foram grandes manifestações, mas isso não está colocado. Há uma insatisfação enorme na sociedade e tem a ver com a mudança do cenário econômico, com esse escândalo de corrupção, com a desmoralização da principal empresa brasileira... Enfim, estamos só no começo do processo. Mas o que vai acontecer nesses seis a oito meses do ano é difícil saber, mas vamos viver momentos tumultuados.

Você diria que os momentos atuais são mais tumultuados do que em 1964?

Olha, eu não vivi 1964, eu tinha 12 anos... Eu acho que é parecido. Com diferenças, como já mencionei. Por exemplo, você tinha um cenário internacional em que qualquer movimento aqui no Brasil era estratégico e decisivo e, portanto, não poderia acontecer. Isso não está acontecendo agora, o governo atual não ameaça a democracia e os valores ocidentais e cristãos, nada disso. O do Jango também não ameaçava, mas se apresentava isso como um fantasma. E você tinha  forças para acelerar esse processo para promover uma intervenção civil ou militar. Hoje é diferente esse cenário. Mas que estamos vivendo um momento caótico, estamos sim.

O grau de maturidade de nossas instituições é o suficiente para barrar qualquer tentativa de solução “na marra”?

Espero. Costumo dizer que não tenho bola de cristal, mas espero que sim.

Mas ainda existe essa cultura de buscar solução “na marra”? Nos protestos havia plaquinhas pedindo “intervenção militar”, mesmo que em minoria...

Elas ainda não são significativas do ponto de vista numérico. Elas são só uma excrescência e um absurdo que só a democracia permite. Costumo dizer isto: na democracia você pode pedir a volta da ditadura, na ditadura você não pode pedir a democracia. Essa é a diferença entre os dois regimes. Eu sou a favor daquele em que você pode até mesmo falar em volta da intervenção militar, e tudo porque você vive em uma democracia. Isso que a gente está vivendo neste momento. Se as pessoas não valorizam isso, o passo seguinte pode ser “bom, então vamos partir para outro processo”.

Você acha que falta uma atuação maior da mídia e dos educadores para esclarecer à população sobre o que houve no passado?

Eu acho que conhecer o passado é fundamental, ainda que dele a gente não extraia nenhuma lição. No caso do golpe militar, do tempo da ditadura, a gente extrai uma porção de lições. Uma delas, que acabou de acontecer, foi a Comissão da Verdade, mesmo assim os resultados efetivos foram pouco divulgados. Como jornalista eu procuro contribuir na medida do possível e refletir sobre o passado. Pensar sobre ele é uma das coisas que me interessa fazer, mas não acho que é só isso que resolve. Acho que é assumir a compreensão de que a democracia, o respeito aos direitos humanos, a igualdade, o voto, o direito de um homem, tudo isso é importante. E isso tem que ser uma permanente preocupação da sociedade. Nem sempre é.

Mas esses valores são refletidos na discussão que há na mídia?

Eu acho que de maneira ainda insuficiente. Mas também quem sou eu para dizer o que a mídia tem que fazer. Não tenho nenhum tipo de pretensão nesse sentido.