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Artigo
Sagan, pensamento científico e cultura democrática
Por Danilo Albergaria
10/04/2015
As chamadas democracias modernas – das experiências incipientes às mais longevas e profundas tradições políticas – nunca deixaram de ter imperfeições comprometedoras e, ironicamente, continuam pouco democráticas, com sinais de piora. Dentre os problemas que limitam ou inviabilizam uma experiência democrática digna do nome, o desequilíbrio na produção, circulação e acesso à informação e ao conhecimento há muito tempo é objeto da atenção de pensadores que se dedicaram a atenuar a concentração de poder e universalizar, de fato, a cidadania. Para atacar o problema, pelo menos desde John Dewey (1859 - 1952) intelectuais e cientistas de diferentes áreas têm estabelecido vínculos estreitos entre o sucesso do projeto de uma sociedade democrática e a ampla disseminação de um ethos científico e de uma maneira científica de pensar. Um eloquente defensor dessa visão foi o astrônomo estadunidense Carl Sagan (1934 - 1996), um dos mais conhecidos e bem sucedidos divulgadores da ciência do século XX.

A obra de divulgação de Sagan é um exemplo dos esforços dos pensadores humanistas em utilizar a comunicação do discurso científico e metacientífico para incrementar a cultura política com valores democráticos. O mundo assombrado pelos demônios (publicado em 1996), seu livro mais abertamente político e um dos mais conhecidos no Brasil, pode ser definido como um guia de aplicação da racionalidade científica para iniciantes.

À moda de intelectuais públicos como Noam Chomsky, que tenta inocular no público estadunidense a capacidade de “defesa pessoal intelectual” contra estruturas de poder que controlam a circulação e o acesso à informação, Sagan mostra acreditar que intelectuais e cientistas podem e devem desempenhar função de democratização do saber e do poder. Acredita, também, que ciência e democracia têm valores concordantes, ou mesmo indistinguíveis. Que a ciência dá certo em parte porque possui valores democráticos, e que a democracia só pode dar certo, especialmente numa era tecnocientífica, se os cidadãos souberem pensar cientificamente. Tenta evitar que se perpetue o desastroso arranjo das sociedades modernas: baseadas no conhecimento científico a que a esmagadora maioria da população não tem acesso e não faz ideia de como é produzido.

Tudo isso compõe parte fundamental de sua visão, que também pode ser exemplificada pelo seguinte trecho:

Tanto a ciência como a democracia encorajam opiniões não convencionais e debate vigoroso. Ambas requerem raciocínio adequado, argumentos coerentes, padrões rigorosos de evidência e honestidade. A ciência é um meio de desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer. ... Se formos fiéis a seus valores, ela pode nos dizer quando estamos sendo enganados. Ela fornece a correção de nossos erros no meio do caminho (Sagan, 2006, p. 59).

Previsivelmente, ganha perceptíveis contornos políticos uma divulgação científica que tem como objetivo não somente o de anunciar os resultados e conteúdos das ciências, mas também o de propagar pela sociedade aquilo que é comumente chamado de pensamento científico. Assume-se que a ciência, baseada na aplicação sistemática do ceticismo e na abertura à crítica, é a melhor forma de separar o joio do trigo na tarefa de estabelecer conhecimento válido sobre o mundo. O papel que esse modo de pensar científico desempenharia no aprofundamento dos valores democráticos na cultura política é claro: “a ideia da aplicação democrática do ceticismo é que todos deveriam ter as ferramentas essenciais para avaliar efetiva e construtivamente as alegações de quem se diz possuidor do conhecimento” (Sagan, 2006, p. 100).

A ciência como guia. Mas que ciência?

Embora mantivessem a confiança num progresso social e político capaz de ser impulsionado pelo pensamento científico, o que humanistas como Dewey tinham em mente como guia tem pouco a ver com a imagem cientificista de uma ciência neutra, canalizadora de um conhecimento objetivo, puro, livre de valores. Ao contrário, tratava-se de uma ciência profundamente relacionada com o processo de transformação da sociedade em direção à democratização, por meio da disseminação de uma ética científica, que Dewey considerava essencialmente democrática. Mas a imagem pública de uma ciência livre de valores e desconectada da política nunca foi embora, e ainda habita com muita saúde o atual horizonte ideológico.

Naturalmente, essa ideia deve ser vista com muita desconfiança. Principalmente a partir da década de 1960 – das profundas mudanças na filosofia da ciência, simbolizadas pelas obras revolucionárias de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, à proposta do programa forte pela radicalização da amplitude das explicações sociológicas sobre a produção de conhecimento científico – emergiram tempestivas críticas que demoliram, pelo menos para a maior parte do mundo intelectual, a imagem de uma ciência pretensamente neutra e objetiva.

A ciência passou a ser cada vez mais vista como subserviente à ordem social e econômica estabelecida, um instrumento de manutenção de hipertrofiados complexos industriais-militares, mais produtora de um discurso legitimador do poder das elites dominantes do que propulsora de uma sociedade verdadeiramente democrática. Mais, diziam os críticos: o próprio funcionamento interno da ciência não é exatamente democrático e liberal, como se acreditava. A inacessibilidade das melhores universidades à maioria da população perpetua um processo de reprodução de elites intelectuais. A produção de conhecimento responde às interações com a malha de relações de poder. As próprias teorias científicas passaram a ser caracterizadas como resultados mais dessas relações do que da experimentação e do exercício da racionalidade. Intencionalmente ou não, essas críticas ajudaram a desacreditar a ciência como norte da construção de uma sociedade aberta e democrática. E, de fato, têm razão em fazê-lo, se por ciência entendermos essa pretensão a um conhecimento neutro, a um processo técnico alheio ao mundo ao seu redor, desligado de seu papel público e pronto para atender às demandas do poder. Se já é difícil considerar como modelo de conhecimento uma ciência cujo pensamento crítico adormece e cuja função social – que poderia ser a de aprofundar a experiência democrática – encontra-se esmaecida, que espécie de projeto político poderia ela integrar e inspirar?

A visão propagada pelas obras de divulgação de Sagan é a de uma ciência democrática e liberal, comprometida com a liberdade de expressão, de pensamento e de imaginação, mas também, e fundamentalmente, com a abertura ilimitada à crítica e o exercício sistemático do ceticismo. Sagan começou sua carreira de divulgador no final da década de 60, justamente quando aquelas salutares críticas à ciência começaram a permear o meio intelectual. No entanto, suas obras não refletem os mesmos níveis de ceticismo e criticidade exercitados quanto à própria ciência, como proposto por estudiosos da ciência contemporâneos a ele. Sagan descreve menos como a ciência de fato é do que como ela deveria ser. Algo que não é descartável e que, indiretamente e a seu modo, aponta para a mesma direção do projeto democrático científico que Dewey projetava. Mas que precisa ser encarado com uma pitada de sal, sob o risco de produzir mistificações da própria ciência, o que é pouco interessante a uma democracia plena.

Embora Sagan também tome por ciência algo muito amplo, sua obra compreensivelmente privilegia as ciências naturais, especialmente a física, como modelo de pensamento científico. Ele certamente encoraja um estilo de pensamento que pode ser imprecisamente chamado de ciência, mas que poderia ser mais do que isso.

Méritos e limitações

Há menos de um mês, nas manifestações e protestos do dia 15 de março nas ruas das principais cidades do país, testemunhamos a presença de vozes suficientemente numerosas e estridentes, mas provavelmente minoritárias, pedindo pelo rompimento do processo democrático via intervenção das forças armadas. Que tal clamor autoritário tenha aparecido vinculado a vagas justificativas de defesa do sistema democrático contra uma suposta “ameaça vermelha” soa tão irônico quanto anacrônico. Nós, latino-americanos, já vimos esse filme, ainda quando o pano de fundo da Guerra Fria podia fornecer-lhe algum tênue sentido. Basta uma pequena dose de ceticismo e pensamento crítico para percebermos, ainda mais facilmente hoje, que se trata de uma ameaça fantasma: não existe, mas pode ser bem explorada por eventuais líderes autoritários.

A liberdade de manifestação das vozes autoritárias é corretamente interpretada como um indicativo da saúde da democracia brasileira, mas para notarmos que sua pulsação ainda é bastante débil basta lembrar o tratamento policial-militar truculento que o Estado brasileiro continua frequentemente dispensando a manifestações populares por reformas estruturais na organização social, econômica ou política, sejam elas mais ou menos espontâneas ou organizadas por movimentos sociais. Quando o assunto é pressão popular por mudanças significativas, o autoritarismo arraigado em nossa cultura política mostra os dentes e os valores democráticos esmaecem.

E quanto à longa tradição democrática estadunidense, que Sagan tentava diretamente influenciar? Um estudo publicado recentemente por pesquisadores da Universidade de Princeton (Gilens e Page, 2012) justifica em detalhe aquilo que dissidentes já apontavam há um bom tempo: enquanto o cidadão americano médio tem influência negligenciável, a elite econômica domina a política, numa distribuição de poder que mais se assemelha a uma plutocracia.

É perfeitamente plausível que parte daqueles que pediram a volta do regime militar, embora tenham o direito democrático de fazê-lo, sequer compreendam minimamente o que significa, na prática, uma ditadura. Provavelmente não compreendem como e por que a corrupção ocorre, ou que uma das causas de sua endemia é um sistema político que dá sinais de esgotamento, o presidencialismo de coalizão. Ou que dentre as soluções estão reformas institucionais e políticas profundas, como a revisão dos financiamentos de campanha. Isso não quer dizer que não existam aqueles que sabem o que estão pedindo, embora uma dose cavalar de cinismo seja necessária para tanto. Quer dizer que boa parte está comprando gato por lebre. Em meio a isso, demagogos costumam nadar de braçada: “aqueles que desejam influenciar a opinião pública, aqueles que estão no poder, diria um cético, têm um interesse pessoal em desencorajar o ceticismo” (Sagan, 2006, p. 100). De maneira similar, quem acredita que a política estadunidense vem sendo plenamente democrática, que as decisões se dão de acordo com os interesses da maioria dos cidadãos, provavelmente está deixando de exercer seu ceticismo. E, indiretamente, fortalecendo os interesses daqueles que desempenham real influência na política.

As obras de divulgação científica de Sagan, carregadas de humanismo e valores democráticos, são excelentes produtores de anticorpos para ideologias antidemocráticas e autoritárias. Por outro lado, o chamado pensamento científico, mesmo com todas as suas qualidades, nunca pode ser visto como panaceia. Numa crítica a O mundo assombrado pelos demônios, Richard Lewontin aponta que Sagan tem uma concepção de “luta entre a ignorância e o conhecimento” e “luta para levar o conhecimento científico para as massas” (Lewontin, 1997). O diagnóstico do geneticista é que no lugar do conflito entre trevas e luzes há um embate entre tradições populares e alta cultura, e esta usa a ciência frequentemente como arma retórica, como instrumento de imposição de uma visão de mundo. Nesse ponto, ele está coberto de razão.

Tão importante para a democracia quanto esforços de divulgadores e educadores excepcionalmente talentosos em compartilhar conhecimento, como Sagan, está a luta contra a distribuição profundamente desigual de riquezas. Correlacionada à desigualdade de poder de fogo intelectual, a desigualdade econômica decide, mais do que qualquer outro fator, quais setores da sociedade controlará e fará parte da produção de conhecimento, e quais estarão excluídos dela. Uma democracia plena depende tanto do cultivo do pensamento crítico (ou “científico”) quanto de condições materiais menos desiguais. Sagan estava bem consciente disso.

Danilo Albergaria é professor, jornalista de ciência, mestre em divulgação científica pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e doutorando em filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. E-mail: daonap@terra.com.br

Referências

Albergaria, D. “A visão de ciência propagada por Carl Sagan”. Dissertação de mestrado. IEL/Labjor, Unicamp, 2013.

Feyerabend, P. Against Method. Verso, 2010.

Gilens, M.; Page, B. “Testing theories of american politics: elites, interest groups, and average citizens”. In: Perspectives on Politics: September 2014 | Vol. 12/No. 3.

Jewett, A. Science, democracy, and the american university: from the civil war to the cold war. Cambridge University Press, 2012.

Kuhn, T. S. The structure of scientific revolutions. The University of Chicago, 1970.

Lewontin, R. ”Billions and billions of demons”. The New York Review of Books,

janeiro de 1997. http://www.nybooks.com/articles/archives/1997/jan/09/billions-and-

billions-of-demons/?pagination=false

Sagan, C. O Mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.