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A paternidade de Dom Casmurro - Carlos Vogt
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Guarda compartilhada: uma nova lei, divergências antigas
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Avanços científicos trazem novos olhares sobre a paternidade
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Cuidado parental: como as diferentes espécies cuidam de seus filhotes*
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Síndrome da alienação parental: o direito e a psicologia*
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Percepções do adolescente frente ao novo papel de pai
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O pai em foco: um olhar a partir da psicologia evolucionista
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Envolvimento paterno: algumas considerações
Sara Maria Cunha Bitencourt Santos e Lúcia Vaz de Campos Moreira
Paternidade e masculinidade
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Pais que padecem no paraíso
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Entrevista
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Entrevistado por Ana Paula Zaguetto
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Entrevistas
Jorge Lyra

Jorge Lyra é docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e um dos fundadores do Instituto Papai, organização não governamental que tem, dentre seus projetos, ações voltadas para a revisão e ampliação de políticas públicas relativas à questão da paternidade. Também é coordenador do Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (Gema/UFPE), e desenvolve pesquisas sobre gênero, saúde, direitos sexuais e direitos reprodutivos.

 

Ana Paula Zaguetto
10/05/2015
Como nasceu o núcleo de pesquisas Gema?

O grupo foi fundado em 1998 como parte de um projeto social que Benedito Medrado e eu desenvolvíamos na época na UFPE como parte das atividades do Instituto Papai, que naquele momento ainda era apenas um projeto nomeado como Programa de Apoio ao Pai. Esse projeto também resultou na constituição de uma organização não governamental, o Instituto Papai. O objetivo tanto do grupo quanto da ONG era o desenvolvimento de pesquisas e outras intervenções políticas sobre homens e masculinidade a partir da perspectiva feminista de gênero, com inspiração nos núcleos de estudos sobre mulher da década de 1980. Posteriormente, quando nos tornamos docentes da UFPE, o grupo de pesquisa – que já havia sido registrado no CNPq desde 1998 –, foi consolidado dentro do Departamento de Psicologia, abordando questões sobre paternidade, violência contra a mulher, diversidade sexual e políticas públicas problematizando os homens no campo da saúde.

De maneira geral, há uma produção de conhecimento expressiva sobre o tema da paternidade?

A sensação que eu tenho é que ainda falta muito. Nossa percepção é de que a paternidade não é um tema de pesquisa contínuo. Através da revisão da literatura e de análises dos currículos Lattes dos/as pesquisadores/as, notamos, por exemplo, que alguém que fez o mestrado sobre paternidade não necessariamente deu continuidade à pesquisa no doutorado. Ou se fez o doutorado, quando ingressa como docente na universidade, passa a trabalhar com outros temas. A implicação disso é que a produção do conhecimento tem quebras o tempo todo. Temos dificuldades de um estudo que desenvolva análises de continuidade, por exemplo, com uma coorte (um grupo) de homens/pais, ou algo do tipo.

Quais dificuldades para a pesquisa que isso acarreta?

Por exemplo, uma coisa que adoraríamos fazer, analisando a questão do pai adolescente, é discutir a fecundidade masculina. Não há estudos sistemáticos sobre isso, de larga escala. Então, isso gera uma dificuldade em responder perguntas básicas: se os homens têm filhos; se querem ter filhos ou não; se não querem, como evitam. Em larga escala, não é possível conseguir esse tipo de informação. São informações relacionadas à fecundidade, que, por sua vez, se conectam a outros campos de pesquisa, como a saúde. Mas nos estudos sobre saúde do homem, discute-se muito mais (im)potência sexual do que fertilidade. Sobre outra questão, a licença paternidade, não temos um banco de dados para cruzar informações como homens que são pais, homens que são pais e trabalham e pais trabalhadores que recorrem ao pedido da licença paternidade.

Como conseguir essas informações?

Quando se pensa em larga escala, depende muito da vontade do pesquisador ou dos recursos disponíveis para a pesquisa. Mas há outra questão, que acredito ser um reflexo desse campo de pesquisa, que é o pressuposto de que nós homens não somos sujeitos confiáveis para responder sobre nossa vida reprodutiva. Isso está no plano cultural, mesmo que na prática existam homens que queiram participar dos cuidados dos filhos, que queiram adotar ou sejam pais solteiros, ou mesmo educadores de crianças pequenas em espaços de educação pública como as creches e pré-escolas. Então, quando fazemos a revisão da literatura, encontramos pesquisas com pequenas parcelas da população, de dois ou três pais, justificando que é difícil falar com os homens sobre esse assunto.

E isso é verdade? O homem não quer falar sobre sua vida reprodutiva?

Não é verdade, mas é óbvio que o acesso a eles não é fácil. Acabamos de realizar uma pesquisa conjunta entre o Gema e o Instituto Papai com uma amostra quantitativa de 400 homens, seguindo o modelo metodológico do Censo do IBGE. Não foi fácil. Eles não estão disponíveis para chegarmos e falarmos sobre esse assunto. Isso está relacionado com todo o processo de constituição da paternidade e da masculinidade em nossa sociedade. Por isso, a nossa chave analítica para essas questões é a perspectiva feminista, pensando o conceito de gênero como algo relacional. Ou seja, as concepções sobre o que é ser homem e o que é ser mulher são culturais. Costumamos dizer que o sexo está para o homem assim como a reprodução está para a mulher. E o cuidado afetivo dos filhos compete à mulher e o cuidado financeiro aos homens. Essas concepções, além de criar polaridades, criam e mantêm desigualdades, pois estamos falando de relações de poder. E isso, ao nosso ver, é um problema de pesquisa, é um problema político a ser trabalhado. A partir do olhar sobre as questões de gênero, nós vamos problematizar essas concepções e dizer que a resistência em conversar sobre esses temas, a ausência paterna ou a falta de participação dos pais nos cuidados com os filhos não é natural. Não é algo da vontade individual de cada homem. É um processo de construção no nível individual, institucional e cultural/ideológico. Por exemplo, a licença maternidade é de seis meses, enquanto a licença paternidade é de cindo dias. Então, está se dizendo, institucionalmente, a quem compete o cuidado dos filhos. A própria ampliação da licença maternidade de quatro para seis meses foi resultado de uma articulação política da Sociedade de Pediatria, que estava preocupada com o aleitamento das crianças e não necessariamente com as mães ou com a pouca ou nenhuma segurança dos direitos previdenciários/trabalhistas das mulheres, em sua maioria jovens, pobres e negras. Essas ideias e proposições não são nossas, aprendemos isso com o diálogo com o movimento brasileiro de mulheres e feministas.

Os serviços públicos de saúde relativos a pré-natal, parto e pós-parto colaboram para esse processo de construção da paternidade?

Há uma série de discussões, como o parto humanizado e a ideia de um pré-natal masculino, que abrem espaço para o acolhimento do homem e sua participação no processo de nascimento do filho. Mas isso é algo em construção, ainda está lento. O que encontramos, de maneira mais sistemática, é a dificuldade em haver um espaço para o homem nos serviços de saúde relativos à gestação e ao parto. A representação simbólica disso é algo muito simples: a existência de apenas uma cadeira no consultório do obstetra. Além disso, há a dificuldade do pai ter acesso ao momento do parto, apesar da Lei do Acompanhante. Essa lei já existe há dez anos, mas ainda não há um componente de punição, caso não seja cumprida.

Como a pesquisa sobre paternidade influi nesse processo?

Nós escrevemos um artigo buscando problematizar como a ciência constrói a paternidade, a partir da revisão da literatura produzida sobre o tema. E nós também fizemos o nosso processo de autocrítica e reflexão. Também estamos reproduzindo paternidades à medida que contribuímos para a construção de, no mínimo, um sujeito de pesquisa, o pai adolescente. Mas nós fomos percebendo que não é apenas um sujeito de pesquisa. A ciência fala pouco sobre a assunção e o exercício da paternidade. As ações políticas são voltadas para o controle da natalidade. Fala-se mais em como evitar filhos do que como se cuida dos filhos. Dizemos que para ser um bom homem é preciso assumir os filhos, mas há um contra discurso dizendo “não tenha filhos”. Para os homens, ter um filho, é ocupar um lugar que é atribuído à vida adulta, a ser responsável. Esses discursos, em termos psicossociais, no plano da subjetividade, criam uma dupla mensagem: tenha e não tenha filhos. E esses conflitos estão na produção de conhecimento. A ciência não é neutra, não está apenas pesquisando esses homens. Ela constrói sentidos. Durante os anos 1980, há uma produção científica muito grande sobre a ausência paterna e suas consequências: se o filho ia bem na escola, se era violento. Essas pesquisas contribuíram para impregnar a ideia de que a ausência do pai biológico implicaria em uma criança sem figura paterna. Mas, sob o ponto de vista da teoria psicanalítica e psicossocial, que utilizamos em nossas pesquisas, as figuras femininas e masculinas de referência não estão necessariamente coladas a um corpo dito feminino e um corpo dito masculino. Estou falando sobre o campo de referências simbólicas, que envolvem quem é importante na vida da criança e com quem ela vai aprendendo as coisas. E isso não está colado a um corpo masculino do pai biológico. Essas figuras podem ser um professor, tio, cantor ou jogador de futebol, alguém que seja referência para essa criança.

Casais homossexuais que têm filhos estão mudando a ideia que temos sobre paternidade?

A princípio, deveria ser a experiência que nos traria de antemão a possibilidade de ruptura com todos esses discursos que estão colocados, pois romperia com a ideia de obrigatoriedade de se ter filhos. Na relação heterossexual, dentro da lógica do ciclo da vida, o filho está posto em algum momento, seja de maneira casual ou planejada. A ideia do casamento seguido dos filhos para completar a noção de família nuclear ou "família tradicional", como mais recentemente tem sido nomeado pelos religiosos fundamentalistas, é uma noção impregnada em nosso imaginário, em nossa ideologia. Na experiência homossexual, isso não está no script. Quando um homem homossexual decide ser pai, é uma escolha, ou a princípio deveria ser. Essa escolha levaria a mudanças na maneira como os homens percebem a paternidade, como se relacionam com sua vida produtiva. Mas, analisando pesquisas que vêm sendo realizadas, noto que o modelo heterossexual ainda está presente na experiência dos homens homossexuais, seja em casais tentando repetir o mesmo script ou na cobrança em terem filhos. Vivo há 22 anos com o Benedito e há uma pergunta, a mesma que se faz principalmente para as mulheres, que sempre ouvimos: quando vocês vão ter filhos? Essa expectativa das pessoas relaciona-se com a ideia de que uma família completa é uma família com filho. Passa pelas famílias heterossexuais como modelo de referência. Benedito usa essa frase: você sai do armário e entra em uma gaveta. Porque você, muitas vezes, é forçado a se enquadrar de novo. Outra coisa que é muito inquietante para mim: como vamos promover mudanças quando as pessoas se voltam para modelos marcados pela heteronormatividade, que para serem alcançados necessitam de recursos financeiros? Em Pernambuco, por exemplo, houve repercussão na mídia sobre um casal de homens que tiveram dois filhos a partir de inseminação artificial de seus espermas em barrigas solidárias (as ditas barrigas de aluguel). Conseguiram registrar os filhos no nome dos dois e um deles ainda conseguiu licença paternidade de seis meses. Mas quando paro para analisar essa situação, independentemente da história vivida por esses homens, pois não os conheço pessoalmente, não tem como não ficar pensando que são dois homens brancos, esclarecidos e com dinheiro. Nós fazemos esse trabalho de desconstrução dessas experiências para gerar perguntas, porque ainda não temos respostas. Fazer essas críticas não significa dizer que esse casal não esteja fazendo algo diferente. É um casal de homens que têm filhos, consegue licença paternidade dentro do contexto da sociedade pernambucana, que é extremamente tradicional. Mas a partir do nosso compromisso de discussão crítica e política do campo das masculinidades e das paternidades, estamos o tempo todo fazendo perguntas para as coisas que estão acontecendo para poder ver se essas experiências estão se permitindo ser diferentes e não apenas novas, pois nem sempre o velho é ruim e o novo é bom.