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Reportagem
Filhos sem pai: a ausência presente
Por Roberto Takata
10/05/2015
A preocupação com a questão da paternidade como um fenômeno sociopsicológico – e não apenas de ascendência genética – é um tópico relativamente recente na pesquisa acadêmica. "Do ponto de vista da ciência, a paternidade, como objeto de pesquisa, vai se consolidando ao longo do século XX, em paralelo ao crescimento do leque de atributos que a integram, em especial, as questões de cuidado", explica a psicóloga Lisandra Espíndula Moreira, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Ela é coautora, juntamente com a psicóloga Maria Juracy Filgueiras Toneli, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do estudo "Paternidade, família e criminalidade: uma arqueologia entre o direito e a psicologia" publicado no ano passado pela revista Psicologia & Sociedade.

"O cenário que torna possível esse investimento na paternidade se compõe por questões econômicas, como a precarização das relações de trabalho e a dificuldade do sustento familiar ser assumido por apenas um membro da família, aumentando também a participação das mulheres no mercado de trabalho, colocando em questão modelos mais cristalizados do homem provedor financeiro. Além disso, há questões científicas, como o desenvolvimento de tecnologia que pode certificar ou colocar em dúvida a filiação biológica e a possibilidade de contestar, reafirmar ou reivindicar a vinculação biológica do homem com filhos e filhas e as consequentes responsabilidades sociais atreladas a essa vinculação. Também há uma normalização em torno do cuidado infantil protagonizado pela medicina e pela psicologia do desenvolvimento, definindo modos de cuidar que são considerados mais adequados. Há, ainda, questões sociais, como o movimento feminista e seu impacto na persistente busca de relações pautadas por equidade de gênero, e questões teóricas, como as reflexões que tomam como central a questão do gênero", detalha Moreira.

Na percepção da importância da figura paterna no desenvolvimento psicossocial dos filhos, funda-se a preocupação com seu corolário: os possíveis efeitos deletérios nesse desenvolvimento diante da ausência do pai. A pesquisa sobre esse tema tem um histórico ainda mais recente. Somente a partir da década de 1980 é que passamos a contar com uma literatura científica mais sólida sobre a função paterna, a relação dos pais com os filhos e as consequências da ausência paterna. A inserção desse tema no campo da pesquisa, aparentemente, refletia uma modificação cultural na sociedade: em dezembro de 1979, estreava nos cinemas o filme ganhador do Oscar Kramer vs. Kramer, uma adaptação do romance homônimo de Avery Corman, lançado dois anos antes, sobre o litígio de um casal pela guarda do filho.

Os especialistas distinguem duas formas de ausência paterna ou, mais apropriadamente, ausência das funções paternas. Em uma, trata-se da falta de convivência entre pais e filhos: a ausência física paterna. Em outra, o pai está presente, até mesmo exercendo o papel de provedor e de apoio emocional e moral à mãe, além de ter poder e autoridade diante dos filhos, mas sem se envolver nos cuidados parentais: a ausência afetiva. No Brasil, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça realizado sobre os dados do Censo Escolar de 2011, mais de 5 milhões de crianças não tinham nem mesmo o nome do pai em seus registros. A campanha "Pai Presente", da Corregedoria Nacional de Justiça, lançada em 2010, objetiva promover o reconhecimento da paternidade, tendo realizado mais de 18,6 mil audiências para garantia do registro paterno, 23 mil ações judiciais de investigação de paternidade, 12 mil exames de DNA e 14,6 mil reconhecimento espontâneos pelos pais.

Mas o que leva certos pais a se afastarem dos filhos? A psicóloga Sabrina Daiana Cúnico, doutoranda da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), juntamente com a também psicóloga Dorian Mônica Arpini, professora associada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), estudou alguns casos de rompimento conjugal. Em 2014, os resultados de sua pesquisa foram publicados pelo periódico Psicologia: Ciência e Profissão no artigo "Não basta gerar, tem que participar? – um estudo sobre a ausência paterna". Um relato comum, por parte dos homens entrevistados na pesquisa, foi a ideia de que foram vítimas do "golpe da barriga", quando a esposa, na visão deles, engravida na tentativa de manter o casamento já em fase de dissolução. Cúnico aponta que a percepção, real ou ilusória, de que foram enganados pelas ex-companheiras "fez com que os pais entrevistados nesse estudo abdicassem, quase que por completo, do exercício da paternidade desses filhos". A renúncia à paternidade não foi completa, pelo fato de cumprirem os requisitos legais mínimos: o registro dos filhos e o pagamento da pensão alimentícia. Porém, não tomaram parte de qualquer outro aspecto da criação dos filhos e desenvolvimento de vínculos afetivos. "Isso parece refletir uma concepção de paternidade – que há muito perdura – de que a função primordial do pai é a provisão material dos filhos, como se a função de cuidado fosse secundária ou uma escolha dos homens", observa a pesquisadora. Embora o tamanho reduzido da amostra, cinco entrevistados, não permita uma generalização, o estudo, de acordo com Cúnico, fornece elementos importantes para "pensarmos de que forma alguns pais estão se implicando no exercício da paternidade ao final de uma relação conjugal".

Mesmo nos casos em que os filhos são gerados antes da fase de conflitos entre os cônjuges, o histórico posterior da relação também pode afetar a relação dos pais com os filhos. Segundo estudos atuais, relata Cúnico, após a separação, "diante de uma relação conflituosa com a ex-companheira, muitos pais tendem a se afastar também dos filhos, por não conseguir separar os conflitos resultantes dessa relação conjugal do relacionamento parental".

Efeitos e mecanismos

Em 2010, a psicóloga Ilciane Maria Sganzerla Breitenbach, doutora em educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), publicou o estudo "Ausência paterna e suas repercussões para o adolescente: análise da literatura", em coautoria com a também psicóloga Daniela Centenaro Levandowski, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, no periódico Psicologia em Revista. De acordo com essa revisão bibliográfica, que envolveu 2 artigos brasileiros e 14 americanos, a ausência paterna duradoura constituía-se um fator contribuinte para comportamentos de risco de adolescentes: porte de armas, uso de álcool e outras drogas, conflitos familiares, mau desempenho escolar, brigas na escola e início precoce da vida sexual. A obesidade também esteve correlacionada nesses estudos sobre a ausência paterna.

Segundo Sganzerla, o comportamento adolescente delinquente diante da ausência paterna está relacionado a uma "carência afetiva exagerada". Nesse quadro, crianças e adolescentes buscam chamar a atenção por meio de atos que podem ter repercussões negativas. "Através de pesquisas empíricas que realizamos, foi possível detectar que não havia relação direta (da delinquência) com famílias de menor renda e sim um disfuncionamento do seu papel, muitas vezes, atravessado pelo papel da mãe superprotetora ou que domine toda essa dinâmica", complementa. O efeito negativo não acontece quando há alteração do papel "tradicional" do pai. Se ele está presente e compartilha tarefas tradicionalmente atribuídas à mãe, como cozinhar, lavar louças e roupas, isso não é percebido como uma distorção do papel paterno. No entanto, um pai fisicamente presente, mas em situação economicamente dependente à mulher pode produzir situação parecida. "Sabemos que dinheiro é poder e quem gerencia, no casal, o dinheiro, geralmente tem poder nas relações. Nesse último exemplo, percebemos um domínio de espaço maior por parte da mulher, ocasionando, sim, efeitos semelhantes à ausência paterna".

Mas poderia haver um efeito benéfico na ausência paterna? Os filhos poderiam desenvolver uma maior independência, por exemplo? De acordo com Sganzerla, a resposta é negativa. "Não foi averiguado nada de aspecto positivo. A propensão de tornar-se mais independente é atravessada em função do papel que a mãe vai exercendo de modo exagerado para compensar a falta do pai. E toda essa configuração acaba prejudicando essa possibilidade de fazer os jovens tornarem-se independentes".

No entanto, é preciso interpretar essa associação descrita na literatura científica com cuidado, especialmente quando, para além do mero comportamento rebelde ou mesmo delinquente, há associação entre a ausência paterna e a ilicitude, como atos infracionais, de crianças e adolescentes, ou criminais, de adultos jovens. Essa associação é enunciada em muitas peças jurídicas, como as analisadas por Moreira e Toneli. "Primeiro, cabe ressaltar que é uma articulação muito falha e frágil. Há filhos sem pai que não se envolvem em atividades ilícitas e há filhos com pais que cometem crimes", alerta Moreira. "O fato dessa associação ser tão utilizada atualmente para explicar a criminalidade responde a alguns interesses, em especial a permanente criminalização de determinada parcela da população que, no Brasil, está atravessada principalmente pelos marcadores da raça e da pobreza", pondera. "O maior risco dessa associação entre ausência paterna e criminalidade são as intervenções na família, determinando modos de cuidar e criar filhos. É necessário questionar historicamente os interesses em medir, diferenciar e classificar indivíduos, que nem sempre buscam a igualdade social e garantia de direitos", complementa.

E quanto aos diferentes arranjos familiares, amplamente comuns na sociedade ocidental dos dias de hoje? De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais de 2012 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2011, dentre as famílias com filhos o Brasil, somente 60% correspondia ao arranjo tradicional: isto é, o pai, a mãe e os filhos. A cada cinco famílias com filhos, duas são compostas por mães ou pais solteiros, avós e outros parentes ou por pessoas sem parentescos. Arranjos como esses são ilustrados em obras como o multipremiado seriado cômico Modern family, que estreou na TV americana em 2009. Os casais divorciados, reconstituídos e as relações homoafetivas com filhos adotivos presentes na série contrastam com as representações familiares televisivas de décadas passadas, como I love Lucy, Os Flintsones, A feiticeira e outros dos anos 1950 a 1970. (Até mesmo A família Addams, constituída por elementos socialmente pouco adequados, trazia a configuração do núcleo formado pelo pai, a mãe e os filhos.) Para Sganzerla, o que importa é se a família é funcional ou disfuncional – a classificação entre estruturada e desestruturada é ultrapassada. "A figura do pai pode, sim, ser compensada ou substituída, mas precisa haver um bom funcionamento, com autonomia, mas com limites, com afeto e segurança emocional. Faz-se esse mesmo entendimento quanto à adoção por casais homoafetivos", afirma.

A dissolução do casamento não necessita, no entanto, resultar na ausência paterna. "Poderíamos pensar em políticas públicas direcionadas às famílias, que incluíssem e reforçassem a presença paterna no cenário familiar, assim como ações em serviços de saúde que objetivassem inserir o futuro pai na dinâmica do processo gestacional, fazendo com que ele perceba e reconheça a importância do seu papel na vida dos filhos", sugere Cúnico. "Além disso, o desenvolvimento de projetos em varas de família ou em núcleos de assistências judiciárias, que auxiliem os pais em processo de separação e acolham suas demandas referentes ao exercício da parentalidade no contexto da família pós-separação, são importantes de serem realizados", prossegue. Isso seria, porém, suficiente? "Evidentemente, não posso afirmar que esse conjunto de ações evite, de fato, o afastamento do pai. No entanto, penso que pode ser um começo para evitarmos a 'naturalização' da ausência paterna, em especial, nos casos em envolvem divórcio ou separação", conclui.