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Reportagem
Dois pais e duas mães
Por Fernanda Domiciano e Kátia Kishi
10/05/2015
O ano de 2015 começou preocupante para os casais homossexuais pretendentes a adotar crianças e para os movimentos pró-adoção no Brasil. Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, liberou a retomada da discussão do Estatuto da Família, o Projeto de Lei nº 6.583/2013, que havia sido arquivado em 2014. Em seu artigo segundo, o Estatuto da Família definia "entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". Na prática, o projeto significaria a proibição da chamada "adoção homoparental", realizada por homossexuais.

A retomada da discussão do projeto, patrocinado pela bancada evangélica, causou polêmica. A Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad) e o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) começaram uma petição online, que reuniu mais de 6.500 assinaturas contrárias ao Estatuto da Família. Durante entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 16 de março, Cunha disse considerar errado que casais homossexuais possam adotar uma criança. "Sou contra, acho que não é a melhor maneira de educar. Sou a favor de uma educação mais igualitária, não acho correta a adoção por homossexuais", afirmou.

Em 5 de março de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ministra Cármen Lúcia, reconheceu a constitucionalidade da adoção por homossexuais. No texto em que nega o recurso do Ministério Público do Paraná, a ministra argumentou que "o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto (a Constituição) a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico". Segundo ela, "a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família".

A decisão de Cármen Lúcia foi baseada na decisão do STF que reconheceu, em 2011, a união estável para parceiros do mesmo sexo. O juiz da Vara da Infância e da Juventude de Campinas, Richard Pae Kim, explica que a união estável homoafetiva foi o divisor de águas para a adoção homoparental, que acontecia de acordo com o entendimento de cada juiz. A chamada Lei de Adoção (12.010/09) é relativamente recente e ainda não reconhece a adoção por homossexuais. Pae Kim, no entanto, já concedia pareceres favoráveis à adoção homossexual antes mesmo da decisão do STF. Em 2010, ele concedeu a guarda de uma criança a um casal de homens. Na época, o Ministério Público chegou a emitir parecer contrário à decisão, mas não recorreu da sentença. "Não creio que tenha havido qualquer contribuição da nova Lei (12.010/09) para o resultado prático da adoção por homossexuais ou por casais homoafetivos. O que me parece evidente é que houve uma mutação constitucional, uma mudança na concepção de que não deve existir qualquer discriminação em razão da opção sexual", afirma.

"A união estável ajudou muito, afinal a comprovação de que um casal homoafetivo é realmente um casal já deixa aberto o caminho para ter filhos", afirma Náyranoah Larissa, que junto com sua parceira, adotou duas crianças em agosto de 2014. "Pelo nosso processo, acho que a adoção por casais homoafetivos está de fácil acesso. Os procedimentos são os mesmos do que um casal hetero. As pessoas precisam perder o medo e correr atrás de seus direitos".

Segundo estimativa da Escola de Direito da Universidade da Califórnia, entre 2000 e 2009, quase triplicou o número de casos de adoção por homossexuais nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, de acordo com o Censo Demográfico 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 60 mil famílias homossexuais. "É fato que nenhuma pessoa ou casal homoafetivo possa ser, no regime jurídico atual, discriminado – ou seja, eliminado de um processo de avaliação da sua capacidade de adotar pelas equipes técnicas e pelos magistrados das varas de infância e da juventude do país – apenas pela opção sexual dos pretendentes à adoção", afirma Pae Kim.

De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que administra o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), existe no Brasil seis vezes mais pretendentes a adotar do que crianças para adoção. Mesmo assim, existem 5.707 crianças esperando uma nova família, por não apresentarem o perfil desejado por esses pretendentes. A Corregedoria Nacional de Justiça disse não saber quantos dos 33.388 pretendentes a adotar são homossexuais, pois "as únicas informações que importam são as de pretendentes e crianças e adolescentes, sem qualquer discriminação de orientação sexual".

Náyranoah Larissa conta que ela e sua parceira não tiveram problemas em relação à sua sexualidade, com a adaptação das duas crianças adotadas, uma menina, hoje com 14 anos, e um menino, atualmente com 4 anos. "Ela, como tinha 13 anos, já podia escolher se viria para casa ou não. Então a partir do momento que decidiu vir, já estava bastante claro para ela nossa sexualidade. O menino começou a chamar minha companheira primeiro de mãe, e após alguns dias, minha companheira disse apontando para mim: 'Essa é mãe também'. E ele disse: 'Mãe?'. A gente respondeu: 'É'. Ele perguntou: 'Duas mamães?'. Nós dissemos: 'Sim'. Ele balançou a cabecinha sorrindo e disse 'Tá'... Foi simples assim". Antes de adotarem esses irmãos, Náyranoah e sua parceira tentaram adotar dois meninos adolescentes. Um deles, porém, disse que não se sentiria bem sendo adotado por um casal homossexual e o processo foi encerrado.

Os mitos da adoção homoparental

Para a professora de psicologia e doutoranda em psicologia social pela PUC-Campinas, Mariana de Oliveira Farias, uma das autoras do livro Adoção por homossexuais - a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica, ainda existe preconceito em relação à configuração de famílias que não têm como núcleo um homem e uma mulher e existem ainda mitos em relação à adoção por pais gays ou mães lésbicas. Segundo ela, o preconceito em relação à homossexualidade gera crenças distorcidas e mitos como o de que os homossexuais sofreriam desvios biológicos e psicológicos, viveriam uma vida de promiscuidade e tenderiam, principalmente os homens, a abusar sexualmente de seus filhos. Há também o medo da criança se tornar gay e perder a noção de diferença entre os sexos. A crença errônea de que a criança teria problemas de desenvolvimento e o preconceito enfrentado também seriam motivos para a não aceitação desse tipo de adoção por parte da sociedade.

"Todos esses mitos caem por terra se pensarmos que a homossexualidade é considerada uma orientação sexual tão saudável quanto a heterossexualidade e a bissexualidade e que a constituição da família e o bem-estar de seus membros independe de orientação sexual", afirma. A professora argumenta que não existe relação alguma entre abuso sexual ou qualquer outro tipo de violência e a orientação sexual dos pais e das mães. "É o vínculo positivo, o afeto e a colocação de regras adequadas que promove o pleno desenvolvimento da criança, que nada tem a ver com orientação sexual", explica.

No caso das crianças se identificarem como homossexuais quando adultas, também não há nenhuma comprovação de que essa probabilidade seja maior no caso dos pais ou mães serem homossexuais. "E caso houvesse, não teria nenhum problema. Tem-se uma preocupação excessiva com a orientação sexual dos pais/mães, quando na verdade deveríamos nos preocupar mais com as questões de violência e negligência contra as crianças e adolescentes", argumenta Farias. A psicóloga também é contrária à afirmação de que crianças e adolescentes perderiam a noção das diferenças entre os sexos. "Se fosse assim, também existiriam problemas nas famílias monoparentais. É importante que a criança tenha relação afetiva significativa com ambos os sexos, mas essa relação pode existir com uma pessoa da escola e da família, por exemplo", afirma.

Adotamos! Mas e a nossa licença parental?

A Constituição brasileira prevê a licença maternidade para as mães gestantes, um benefício que garante o afastamento remunerado de 120 dias corridos, contrastando com o direito dos pais a apenas cinco dias corridos de licença paternidade. Essa divergência continua gerando muito debate no campo da igualdade trabalhista e levando a dúvidas quanto às responsabilidades dos pais e à forma como lidar com os casos de adoção, principalmente, quando se trata de um casal de dois homens. No caso das adoções, anteriormente se dava às mulheres o direito de licença remunerada por até 120 dias para que o filho de até um ano de idade e a mãe adotante pudessem criar vínculos. Mas até o ano passado, a legislação brasileira desamparava pais solteiros ou casais de dois homens que decidissem adotar.

A mudança ocorreu em janeiro de 2014, com a aprovação da Lei nº 12.873/2013 que propôs novas regras para uma licença remunerada como um direito menos desigual, ou seja, a Previdência Social, não importando a idade da criança adotada, deve assegurar a um dos responsáveis o direito de 120 dias de "salário maternidade", mesmo sendo um pai solteiro adotante ou um homem casado com outro homem. O advogado Rafael Lara Martins destaca que a justificativa da lei é que a criança recém-chegada tenha o direito de um tempo de convivência maior com a nova família.

Sobre o tema, a advogada Sílvia Ozelame Rigo Moschetta, autora do livro Homoparentalidade - direito à adoção e reprodução humana assistida por casais homoafetivos, esclarece outros pontos: "Sendo a adoção conjunta, somente um dos adotantes poderá usufruir esse benefício previdenciário. Tal situação também se confere ao homem em caso de falecimento da genitora, pelo tempo restante que teria a mãe". A advogada também aponta que o termo mais adequado seria "licença parentalidade", por contemplar a pluralidade familiar.

Outra mudança que continua em tramitação é sobre a extensão de dias da "licença paternidade", proposta pelo Projeto de Lei 6583/13 como forma de amadurecimento da licença parental, para que os dois responsáveis pela criança possam participar mais de seu crescimento e seus cuidados.

Alguns países já permitem a divisão dos dias da licença parental entre o casal, como é o caso da Suécia, onde a licença pode chegar a 480 dias, sendo que cada um dos pais é obrigado a tirar pelo menos 60 dias para cuidar e criar laços com a criança. Na Alemanha, a licença maternidade tem duração de dois meses, porém, mais 12 meses podem ser solicitados e divididos entre o casal. No Canadá, os 245 dias de licença podem ser divididos a critério de cada casal. A advogada Sílvia Moschetta argumenta que essas medidas são as mais indicadas, por colocar a criança, a maior beneficiária dessa licença parental, no centro das preocupações jurídicas. "Conviver com a criança nos primeiros meses de vida é sem dúvida estabelecer vínculos que perdurarão eternamente", afirma. No entanto, segundo o advogado Rafael Martins, no Brasil, ainda se tem o obstáculo do custo dessa ausência no trabalho. "Se o Estado brasileiro fosse capaz de custear os afastamentos, não se distribuiriam esses custos aos empregadores. Sem esta solução, dificilmente haverá o necessário progresso nesse assunto".

Famílias homoparentais e as escolas: um conflito?

As diferentes configurações familiares estão ganhando visibilidade social e agora as escolas devem se adaptar às estruturas em que o núcleo pode ser um homem e uma mulher casados e que morem juntos, como também suas variações desde avôs criando seus netos, tios e sobrinhos, uma casa apenas com pais divorciados e as famílias homoparentais que podem ocorrer por meio da adoção, inseminação artificial e por filiação homoparental, quando o cônjuge possui filho biológico, por exemplo.

Segundo Alexandre Bortolini, mestre em educação que coordenou por seis anos o projeto "Diversidade Sexual na Escola", da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e hoje trabalha na área de direitos humanos do Ministério da Educação, é difícil analisar como as escolas, de uma forma geral, estão agindo, por existirem no Brasil mais de 190 mil delas, com realidades diferentes umas das outras. Muitos estudos, porém, apontam uma dificuldade e/ou despreparo, na maioria dos casos, em lidar com questões sobre gênero e sexualidade. Esse contexto contribui com uma invisibilidade das famílias "não-tradicionais" no ambiente escolar, principalmente as homoparentais.

"De modo geral, os currículos de formação docente não estudam essa questão. Então, o conhecimento do docente segue a lógica do conhecimento social e cultural em que está inserido/a. Isso significa dizer que o conhecimento sobre famílias homoparentais é inexistente, com raras exceções. Existe uma racionalidade preconceituosa e excludente. Pode-se afirmar, então, que as escolas ainda não conseguem lidar com essa questão", diz a pedagoga Noeli Gemelli Reali, mestre em educação e professora da Universidade Federal da Fronteira do Sul (UFFS).

Náyranoah Larissa conta que ela e sua companheira também se preocuparam com essa realidade e, no começo, questionavam bastante se sua filha sofria preconceito na escola por ter "duas mães". "Deixamos claro que ela poderia nos contar sem problemas. Mas até o momento, não tivemos nenhuma barreira. A escola, em si, se mostra muito receptiva", afirma.

Mariana Farias reconhece que o preconceito enfrentado por esses filhos pode ser maior, mas argumenta que o preconceito não se restringe à sexualidade. Ela também destaca pontos positivos sobre o convívio das crianças com a diversidade familiar, pois as crianças podem se sentir mais à vontade para ter comportamentos menos estereotipados em relação ao gênero, como as brincadeiras restritas a meninos ou meninas. "Não há brincadeiras que devam ser exclusivas para meninas ou para meninos. São apenas brincadeiras, que são importantes para a aprendizagem de regras e para o desenvolvimento psicossocial. Família não é definida pelo gênero ou pela orientação sexual, mas pelo afeto e vínculos estabelecidos entre seus membros", afirma.

Bortolini destaca que "a escola precisa rever seu jeito de funcionar, abandonando um modelo ideal de família, que nunca existiu, e aprendendo a trabalhar com diferentes configurações familiares. Isso pode significar rever procedimentos, formas de tratamento e até algumas festas comemorativas". Reali também defende o fim dessas datas, como "dia das mães" ou "dia dos pais", para que "o mundo entre na escola", porque, segundo a pesquisadora, via de regra, a diversidade familiar não aparece nesses contextos. Além disso, ela considera invasiva a forma como se dão as festividades nesses espaços. "Família é uma vivência e uma experiência muito pessoal e íntima de cada pessoa. Nem todas as crianças têm o que comemorar", afirma, acrescentando que a escola deve ocupar esses dias com outras atividades, como música, literatura e teatro. Sobre a importância dessa discussão entre os professores, a pedagoga destaca que o problema não é só o despreparo, mas também o "não querer se preparar" sobre a temática por parte da escola e docentes, que muitas vezes transmitem valores e crenças no discurso curricular que desconsideram a multiplicidade de experiências e possibilidades dos alunos.

Adoção no Brasil

De acordo com o CNJ, em abril de 2015, existiam 5.707 crianças e adolescentes registrados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), mas a maioria termina seu ciclo de infância e adolescência em abrigos. Na contramão, existem 33.373 famílias na lista de espera para adotar. O CNA justifica que a principal causa dessa discrepância é a incompatibilidade entre a vontade dos pretendentes à adoção e as crianças que aguardam uma família. Dos cadastrados para adoção, 18% são negros, 77% possuem irmãos e 91% possuem quatro anos de idade ou mais. Já entre os pretendes a futuros pais, 27% assinalaram somente aceitar crianças brancas, 78% não aceitam adotar irmãos e apenas 35% aceitam adotar crianças de quatro anos ou mais.

Em 2012, as jornalistas Fernanda Domiciano, Karina Pilotto e Raquel Hatamoto produziram o videodocumentário (X) Não faz restrição: um retrato da adoção tardia e especial, que pode ser visto no youtube. Em fevereiro de 2015, o vídeo passou a ser utilizado por psicólogos e assistentes sociais do Serviço de Assistência à Infância e à Juventude (SAIJ), por meio do projeto "Adote um novo motivo", que envolve todas as varas da infância e da juventude do estado do Paraná.