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Reportagem
Integração Brasil, África e Ásia: para além do comércio
Por Susana Dias
10/04/2006

Mais do que uma promessa de campanha do atual governo, estreitar as relações com os países da África e da Ásia é um desejo da população brasileira, que apresenta mais de 66 milhões de descendentes de africanos e 10 milhões de pessoas de ascendência árabe. Verifica-se que a política externa brasileira deslocou-se da América do Sul para o eixo Sul-Sul, englobando os países em desenvolvimento dos continentes africano e asiático, ampliando o escopo de atuação, em relação aos governos anteriores. Um dos desafios que se coloca, é intensificar as relações sem repetir os padrões que o governo militar brasileiro e os governos dos países do norte estabeleceram, e em alguns casos ainda estabelecem, com esses países. O caminho parece estar na criação de programas que associem desenvolvimento econômico, progresso social, avanços democráticos e o respeito às diferentes nações e povos, sem adotar uma política assistencialista. Pensando nessa direção, a agenda do governo brasileiro sinaliza com a incorporação de prioridades que vão além do comércio, envolvendo aspectos sociais, culturais e, sobretudo, políticos. Embora haja bastante otimismo na parceria do Brasil com os países do Sul, há quem duvide da eficácia dessa integração na promoção do desenvolvimento econômico do país.

A atual política externa brasileira tem operado uma mudança significativa em curto prazo. Por outro lado, dá continuidade a padrões de relacionamento que já foram vistos no passado”, analisa o cientista político Rafael Antonio Duarte Villa, da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, lembrando que o interesse do Brasil nos países africanos foi notório nos governos militares nas décadas de 60 e 70. Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979) adotaram um projeto de crescimento desenvolvimentista e a noção de Brasil-Potência, e investiram ostensivamente nas relações bilaterais com a África, com o objetivo claro de ingressar no Primeiro Mundo. Além da intenção de entrar na disputa pelo controle das riquezas africanas, a idéia era promover uma associação com os países mais fracos buscando uma rota alternativa para o desenvolvimento, livrando-se assim da dependência das grandes potências. As relações eram centradas no comércio, e o Brasil ocupava uma posição de “liderança natural” nas relações com os países do território africano.

Essa dimensão aparece no atual governo e se manifesta nos números crescentes de comércio com os países do Sul. De 2003 para cá as exportações somaram mais de 50 bilhões de dólares, ultrapassando as exportações para todos os países do Norte juntos. Só com países africanos o comércio passou de menos de 5 bilhões para 10,7 bilhões de dólares. O eixo Sul-Sul tem sido apontado como a melhor saída para o país fazer bons negócios, já que a entrada em mercados como dos EUA, Japão, União Européia e China é mais difícil.

Negociações desequilibradas

O embaixador Pedro Motta Pinto Coelho, diretor-geral do Departamento da África e Oriente Próximo do Ministério das Relações Exteriores (MRE), admite que houve um objetivo real de ampliar o comércio com os países africanos como Uganda, África do Sul e Nigéria, os países de língua portuguesa, como Angola e Moçambique, e os do norte da África, como Egito, Marrocos, Argélia, Líbia. “Entretanto, é preciso ressaltar que queremos mesmo provocar meios e modos de importar mais desses países, não só matérias-primas. Temos a firme intenção de desenvolver, sobretudo, negociações desequilibradas em favor desses países, para que eles possam exportar seus produtos para o Brasil”, defende Motta.

Rafael Villa reconhece que “embora exista uma percepção da África e da Ásia como oportunidade de estabelecer boas relações comerciais e fazer bons negócios, o Brasil se coloca como um país que luta contra a desigualdade, contra a pobreza, as doenças e a fome”. A formalização do uso de temas entre eles a pobreza e a fome como instrumento da política externa brasileira foi um diferencial do governo Lula em relação aos governos anteriores. “Foi notável”, admite Villa, “desde os primeiros encontros com governantes como Chirac e Tony Blair, o desenvolvimento nacional e o combate à pobreza foram colocados como algo que não poderia estar dissociado. Além disso, as metas internas não poderiam ser atingidas sem o desenvolvimento do país”. Esse caminho era coerente com a agenda social do governo (O Programa Fome Zero) e uma tentativa de projetar uma política interna no nível externo, inclusive com a criação de um fundo para a pobreza. Em sua opinião, a estratégia foi enfraquecida com a perda de relevância do Fome Zero internamente.

A “agenda prioritariamente social”, como descreve o embaixador Motta, ganha corpo com ações voltadas à cooperação no desenvolvimento de áreas básicas como saúde, agricultura e educação. O Brasil tem disponibilizado experiências consideradas socialmente bem sucedidas como os telecentros, o programa Bolsa-Escola, a agricultura familiar e a produção de medicamentos para combate à Aids. “Por termos condições semelhantes de clima, solo e cultura, podemos oferecer e intercambiar experiências. Atendemos assim a uma aspiração que é crescente na sociedade brasileira: a de conhecer suas raízes culturais e sociais”, defende o embaixador.

Jocélio Teles dos Santos, diretor Centro Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Universidade Federal da Bahia, ressalta que, embora as ações do governo Lula remetam à política externa independente promovida no governo militar, hoje vivemos em outro contexto, que fomenta uma outra relação com a África. “Não são mais países sendo colonizados. Não cabe mais a idéia de ‘penetração africana’. A lógica do capital se mantém, mas a diferença é que existem ONGs e movimentos sociais do Sul e do Norte que atuam pressionando o governo brasileiro para que se reveja os 40 anos de aproximação com os países africanos e se promova relações em novas bases”, diz. Santos destaca a ampliação de intercâmbio entre estudantes brasileiros e africanos, bem como a proposta de realização da 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – que acontecerá em Salvador de 12 a 14 de julho –, como elementos relevantes da política externa brasileira, que ultrapassam o âmbito comercial.

Para o embaixador Jadiel Ferreira de Oliveira, chefe do Escritório Regional do MRE em São Paulo, é natural e estratégico que as relações comerciais sejam as primeiras a se desenvolver. “Tudo começa com o comércio. Tudo nos induz a fazer negócios com a África e Ásia. É uma forma de convencer a população de que a iniciativa é boa. Não há um interesse imperialista nem colonialista nisso. É uma boa maneira de “vender o peixe”. Não se pode dizer que queremos ter relações com a Ásia e Oriente Médio por razões ideológicas ou filosóficas. As relações econômicas são importantes e legítimas, mas a idéia é que sejam também políticas, que se tenha também uma comunhão política”, diz.

Unindo forças

A historiadora Fátima Viana Mello, diretora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e secretária-executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), acredita que a relação do Brasil com os países do Sul aponta uma clara tentativa de unir forças em torno de reivindicações comuns nas negociações políticas com o eixo Norte – EUA, União Européia e Japão.

No governo Lula prevalece a idéia de que o investimento nas relações Sul-Sul não deve apenas ampliar os investimentos e as exportações brasileiras. A relação deve ser vista como um movimento de reforço de uma aliança política para atuar de forma mais coesa no sistema internacional. Isso aconteceu com o G20 e está acontecendo através da iniciativa Ibas Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul”. Durante a Conferência Petista de Relações Internacionais, que aconteceu em São Paulo no início deste mês, Mello destacou também a participação dos movimentos sociais e ONGs na definição das prioridades da política externa do governo. “Embora o governo tenha adotado a agricultura de exportação como eixo central de sua política, a introdução de temas como segurança alimentar, agricultura familiar, fim dos subsídios agrícolas, na pauta das discussões em organismos multilaterais é fruto dessa abertura”.

O que se espera, diz Motta, é que “a agenda internacional cada vez mais contemple nossos interesses e não seja ditada apenas pelos países industrializados”. Para isso, a diplomacia brasileira tem buscado fortalecer os laços e entendimentos do ponto de vista político, com países que hoje têm cada vez mais presença e importância na dimensão internacional, como China, Coréia, África do Sul, Índia, Argélia, Egito, Angola e República Democrática do Congo.

Motta concedeu entrevista à revista ComCiência enquanto participava da 3ª. Reunião em Nível Ministerial do Ibas, no Rio de Janeiro. O Fórum foi criado em 2003 e congrega três países em desenvolvimento da América do Sul, Ásia e África, aqueles de maior expressão no contexto Sul-Sul. “É uma iniciativa típica de uma visão cooperativa na área política, tecnológica e de integração comercial e econômica”. No evento, os representantes dos três países buscaram entendimentos sobre suas posições no plano multilateral. Brasil, Índia e África do Sul têm trabalhado juntos nas negociações de Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC), defendendo, entre outras questões, o fim dos subsídios agrícolas. Para Motta, a sintonia entre os participantes do Ibas tem produzido resultados muito bons.

Há muito interesse desses países, por exemplo, em desenvolver conosco cooperação, comercialização e utilização da energia originária da biomassa, da bioenergia, em específico, do etanol e do biodisel”, conta Motta. Os biocombustíveis têm sido um importante foco da política internacional brasileira fora do eixo EUA-União Européia-Japão. A idéia é que o Brasil exporte tecnologia, serviços, álcool e veículos flex fuel. Os países do eixo Sul-Sul poderiam se desenvolver e abastecer o eixo Norte. No início de março, uma comitiva de ministros de oito países africanos esteve no Brasil para conhecer os programas.

Existe, também, a possibilidade de que aconteça um acordo na área de livre comércio que extrapolaria o Ibas, envolvendo o Mercosul, União Aduaneira da África Austral (Sacu, em inglês) e a Índia. A próxima reunião do Ibas está prevista para setembro no Brasil. Fátima Mello avalia positivamente a criação dessa área de livre comércio, mas defende que esse projeto de integração Sul-Sul priorize a cooperação produtiva, política, institucional e tecnológica e não o comércio. “Ainda mais quando se trata de países do Sul, que podem ter economias similares. Senão vira um problema de competição por mercados”.

Outro acordo de cooperação econômica, primeiro passo de um futuro tratado tarifário-aduaneiro foi definido em maio do ano passado, durante a Primeira Cúpula América do Sul – Países Árabes, também realizada no Brasil. Representantes dos países sulamericanos (Uruguai, Paraguai, Argentina e Brasil) e do Conselho de Cooperação do Golfo (Omã, Arábia Saudita, Bahrein, Qatar, Emirados Árabes Unidos e Kuwait) assinaram o acordo enfatizando a busca por formar um mundo multipolar, em contraposição à visão estadunidense de formação de um mundo unipolar.

Aposta no eixo Sul-Sul

Muitas fichas estão sendo apostadas na integração do eixo Sul, mas não há unanimidade quanto à eficácia dessa estratégia do governo. Na opinião de Fábio Villares de Oliveira, diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), “a relação Sul-Sul não é a salvação para o jogo. Vejo essa integração como um instrumento pequeno e lateral a todo sistema”, critica. O IEEI acaba de lançar um livro, Índia, Brasil e África do Sul: perspectivas e alianças, organizado por Villares, que resultou de uma ampla pesquisa desenvolvida sobre o tema. Diferente das análises do governo, os artigos que constam da obra não mostram com muito otimismo as relações Sul-Sul e não demonstram resultados positivos substantivos no Ibas. “No âmbito comercial a possibilidade de troca e comércio entre esses países será pequena, porque há muitas semelhanças entre as economias. No G20 percebe-se que os países ganharam força, mas não os vejo como aliados permanentes, e sim estratégicos. Conflitos futuros aparecerão. A cooperação técnica e cultural também não tem muito futuro. A língua será uma barreira à integração efetiva”, prevê o autor.

Já para o cientista político da USP, Rafael Villa, pensar o desenvolvimento do Brasil se valendo de parcerias e coalizões eventuais ou permanentes com países do Sul, envolvendo menos o aspecto militar e mais o político, é uma forma de o governo poder agir em bloco em organismos multilaterais, como a OMC ou a Assembléia das Nações Unidas, e poder barganhar melhores condições de política externa comercial, de transferência de tecnologia e de propriedade intelectual. “A inserção internacional do Brasil, face à globalização, não pode ser feita enquanto agente individual, mas sim coletivo, em diferentes níveis, por meio de coalizões mais ou menos permanentes com os países do Sul”.

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