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Reportagem
Alca: tão perto, tão longe
Por Patrícia Mariuzzo
10/04/2006

Uma das conseqüências da economia mundial globalizada foi a formação de blocos econômicos formados por países vizinhos, que possuem afinidades culturais ou comerciais. Redução ou isenção de impostos ou de tarifas alfandegárias e solução conjunta de questões comerciais são as principais finalidades da criação de um bloco econômico. Se chegasse a funcionar plenamente, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), seria um dos maiores blocos econômicos do mundo, com um PIB de US$ 12 trilhões e uma população de 850 milhões de habitantes. Ao mesmo tempo, o Mercosul não dá sinais de que vai prosperar a ponto de construir efetivamente um Mercado Comum do Sul, como diz a sigla. Este contexto coloca questões inevitáveis sobre qual o futuro desses dois blocos que, aparentemente, não estão hoje, no palco das prioridades brasileiras em termos de comércio internacional.

A criação de uma área de livre comércio foi iniciativa dos Estados Unidos que, em 1994, sediaram a Cúpula das Américas em Miami, onde reuniram os chefes de Estado de 34 países das Américas do Sul, Central e do Norte. Somente Cuba não esteve presente. No encontro, ficou decidido eliminar progressivamente as barreiras ao comércio e aos investimentos. O processo de criação do bloco previa duas fases distintas: a preparação, entre a Cúpula de Miami e a Reunião Ministerial de São José, na Costa Rica, em 1998 e segunda fase, de negociações, que não foi concluída. A despeito das afinidades culturais e da proximidade geográfica, as negociações estão totalmente estagnadas desde meados de 2005, ano projetado para o acordo entrar em vigor. Com o crescente número de acordos bilaterais assinados pelos Estados Unidos com vários países da América Central e do Sul (México e Chile à frente) e a proposta do Brasil da chamada “Alca light” em 2003, os mais radicais já decretaram a morte da Alca.

Segundo Marcos Sawaya Jank, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), a manutenção de altas taxas de crescimento nas exportações, sobretudo de commodities agroindustriais, depende fortemente da abertura de mercados, bem como da manutenção de uma taxa de câmbio em níveis que favoreçam a competitividade brasileira. A não existência de acordos entre o Brasil e outros países deixaria os exportadores sujeitos a arbitrariedades nas regras que norteiam o comércio. “Acordos de comércio, portanto, não só abrem o mercado, como também trazem estabilidade nas regras políticas, além de melhorias institucionais", explica ele.

Para o Brasil, teoricamente, as vantagens de participar de um bloco comercial nos moldes como foi pensada originalmente a Alca seria ter um acesso maior e mais seguro aos mercados dos demais sócios latino-americanos. Porém, no caso específico do mercado norte-americano, nosso potencial exportador está em produtos que eles julgam sensíveis, como suco de laranja, aço, açúcar, etanol e frango. “Os produtos sensíveis continuarão sendo muito protegidos. Nos demais produtos, o acesso ao mercado dos EUA não é limitado pelo protecionismo americano, mas pela falta de competitividade dos produtos made in Brazil. Assim, os ganhos parecem ser muito limitados", acredita o professor de economia da Unicamp, Mário Presser. Segundo ele, as desvantagens no acordo são muito visíveis envolvendo custos do ajustamento em termos de balança comercial, emprego e produção. Além disto, a Alca não tem nenhum mecanismo financeiro que equilibre as oportunidades de ganhos no médio prazo, configurando o que ele chama de lei da selva nas relações internacionais. "Certamente não serve ao Brasil, nem à Argentina”, conclui.

Ambicionando formar um bloco abrangente, a agenda colocada pelos Estados Unidos discutia temas como bens industriais, serviços, compras governamentais e propriedade intelectual. No caso das patentes por exemplo, com a Alca em funcionamento, todos os países integrantes seriam obrigados a adotar um regime de proteção muito rigoroso, baseado na legislação americana. Com isso, dentro das Américas, ficaria garantido o máximo de proteção a atividades dominadas pelos americanos, que respondem pela maior parte das patentes, inovações e marcas. As compras governamentais são outra questão polêmica. A intenção americana era impedir que os países-membros definissem margens de preferência para empresas nacionais em relação a empresas com sede em outros países. "Se a Alca estivesse em vigor, o governo brasileiro não poderia implementar a estratégia de nacionalização das encomendas da Petrobras. Com isso, teria perdido um instrumento importante de estímulo à produção e à geração de empregos no território nacional", exemplifica Paulo Nogueira Batista Jr., professor da Fundação Getúlio Vargas.

Ao contrário da União Européia, ficou fora da Alca, por exemplo, a questão da livre circulação de trabalhadores nas Américas, já que os EUA não querem negociar sua política restritiva para imigração. Na opinião do economista da FGV, a Alca revela-se ainda menos atraente, quando se considera que os Estados Unidos adotam uma abordagem desequilibrada e assimétrica, seletivamente livre-cambista e protecionista, que atende as conveniências da sua economia e das suas empresas. "Com o recrudescimento do protecionismo norte-americano, evidenciado em diversas ações do Executivo e do Congresso, a negociação da Alca tornou-se pouco promissora para o Brasil em termos de acesso aos mercados dos Estados Unidos", diz. Este protecionismo se traduz na permanência dos subsídios concedidos para os produtores de algodão, medida que afeta diretamente os produtos brasileiros. Os subsídios são pagamentos feitos a exportadores americanos de algodão para cobrir a diferença entre os preços do produto no país, mais altos, e os preços no mercado mundial, aumentando a competitividade da commodity produzida naquele mercado. "Ao vender produtos tão baratos, os americanos distorcem de tal forma as práticas de mercado que arrasam as produções locais dos países em desenvolvimento. Sem condições de competir em volume e preço com os americanos, os agricultores dos países mais pobres abandonam a produção, com efeitos danosos para toda a economia do Terceiro Mundo", alerta Batista Jr..

Alca Light, acordos bilaterais e risco de isolamento

Se até o governo de Fernando Henrique Cardoso o Brasil se mostrou mais acomodado à estrutura de negociações da Alca tal como formulada pelos Estados Unidos, a partir de 2003 o Brasil foi redefinindo cuidadosamente a sua linha de atuação. "A essência da posição que o governo brasileiro passou a adotar pode ser resumida da seguinte maneira. Os Estados Unidos insistem em excluir da Alca, temas que o Brasil considera de importância fundamental, notadamente a agricultura e o antidumping. Em tese, Washington pretendia tratá-los no âmbito multilateral. Assim, o Brasil também transferiu para a OMC, no todo ou em parte, questões problemáticas para o país, tais como serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual", resume Batista. Jr. Esse acordo foi chamado de Alca reduzida ou Alca Light, um sistema com dois níveis de compromissos entre os 34 membros: um piso mínimo, com regras e obrigações comuns a todos, e a possibilidade de os países negociarem livremente acordos bilaterais e plurilaterais de geometria variável. "Com isso foram destruídos os dois pilares fundamentais que tornariam a Alca um bloco abrangente e ambicioso: o single undertaking (nada estará negociado enquanto tudo não estiver negociado) e a cláusula da nação mais favorecida (estabelece a obrigação de estender as concessões negociadas entre dois países a todos os demais membros de um bloco de países)”, acredita Marcos Jank.

Diante da dificuldade de avanço na Alca, os Estados Unidos intensificaram seus esforços de negociação com países latino-americanos. O Chile foi um dos primeiros a assinar acordo de livre-comércio com Washington, já em vigor. “O Chile fez há muito tempo uma opção, que julgo irreversível, por uma integração profunda na globalização, com um grau elevado de abertura econômica em suas atividades. Não é e nem será sócio econômico importante do Mercosul, mas tem grande importância como sócio político e cultural”, avalia Presser.

Os EUA já concluiram negociações com outros seis países: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e República Dominicana que ainda dependem de aprovação do Congresso norte-americano. Segundo Jank, os EUA estão fazendo a “sua Alca”. Ele classifica os acordos bilaterais como building blocks (os alicerces) para a construção de um bloco de livre comércio. Para ele, a Alca encontra-se numa encruzilhada, diante do seu esvaziamento e perda relativa de importância em relação à explosão de acordos preferenciais de comércio na região, que vêm transformando o bilateralismo na prioridade dos EUA. “Os Estados Unidos estão ativos na negociação de acordos bilaterais de comércio dentro da estratégia do governo Bush de ‘liberalização competitiva’. Tal estratégia significa que, na prática, os Estados Unidos negociam redução de barreiras comerciais simultaneamente em vários fóruns – bilaterial, plurilateral, regional e multilateral. Pela via bilateral, entretanto, os Estados Unidos conseguem resultados melhores e mais rápidos do que nas negociações na OMC, que são muito lentas. O governo Bush passará para a história como o que mais fez acordos comerciais com países em desenvolvimento, a maior parte nas Américas”, completa Jank. Esta é também a opinião do professor Mário Presser. Segundo ele o modelo que os EUA adotaram para a Alca é chamado de hub-and-spoke: eles negociam com todos os demais, que não negociam juntos ou entre si. “É um modelo unilateral que não favorece a cooperação e sim a concorrência entre os países. Parece ser coerente com a política externa nos governos Bush”, avalia.

A realidade globalizada pede uma política externa brasileira equilibrada, que leve em conta as ligações históricas com a Europa, os interesses econômicos com os Estados e um forte componente subregional.Os blocos comerciais são uma das vias para o comércio entre países, mas não são a única. "Há quem sustente que o Brasil corre o risco de ficar comercialmente isolado na hipótese de não se concluírem os acordos com a União Européia e a Alca. Esta avaliação baseia-se num equívoco elementar: confunde integração comercial com negociação de áreas de livre-comércio. A expansão dos fluxos de comércio não pressupõe a existência de acordos desse tipo", explica Nogueira Jr.


A OMC foi criada em janeiro de 1995 como resultado das negociações da Rodada Uruguai (1986-1993) do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio). Com novas estruturas, prerrogativas, funções e instrumentos, a OMC é sucessora do GATT, acordo estabelecido após a Segunda Guerra Mundial que nunca foi um organismo formalmente constituído. Sua função é facilitar a aplicação das regras de comércio internacional já acordadas. Também serve de foro para negociações de novas regras ou temas relacionados ao comércio e tem um sistema de solução de controvérsias em matéria de comércio internacional. Periodicamente revisa as políticas comerciais de cada um dos atuais 140 países membros. A OMC se baseia em princípios de comércio internacional desenvolvidos ao longo dos anos e consolidados em acordos comerciais estabelecidos em oito rodadas de negociações multilaterais no âmbito do GATT, das quais a mais abrangente foi a oitava, a chamada Rodada Uruguai, iniciada em 1986 e finalizada em 1993 (os acordos foram firmados em cerimônia em Marraqueche, no Marrocos, em abril de 1994).

Um dos resultados positivos que o Brasil obteve na OMC foi a vitória no Painel do Algodão quando a Organização julgou que os subsídios norte-americanos concedidos aos produtores de algodão distorciam o mercado e deveriam ser eliminados. Em fevereiro deste ano a instituição dos Estados Unidos que equivale à nossa Câmara dos Deputados aprovou a eliminação dos subsídios, acatando a determinação da OMC.