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“E isso te isola, porque o mundo fica cada vez menor…”: Acessibilidade em transporte público e inclusão social
Por Raquel Velho
10/02/2016
Para uma boa parte dos leitores deste artigo, ir de um lugar para outro não � muito difícil. Nós acordamos de manh�, colocamos roupa, escovamos os dentes e saímos de casa. Pegamos um ônibus ou o metr�, ou vamos de bicicleta, e não � uma grande dor de cabeça. Pode ser demorado ou desconfortável ser espremido em um vagão, mas tudo bem. Chegamos aonde queremos ir. Porém essa não � a realidade de todos. Para alguns usuários do sistema de transporte público, essa história � bem diferente. � uma história repleta de desafios, batalhas e, muitas vezes, derrotas. Essas são as pessoas com quem eu trabalho, aqueles que são frequentemente traídos pelo sistema. Mais claramente, eu pesquiso acessibilidade para cadeirantes no transporte público de Londres, um tema geralmente tratado por engenheiros. Eu escolhi abordar o tema de outra maneira: sou socióloga e quis entender a questão da acessibilidade da perspectiva desses passageiros e as táticas dos mesmos para se locomoverem pela capital britânica.

Considerando “deficiência� e exclusão

O mundo de pessoas com deficiência vem sendo estudado no mundo acadêmico h� tempos, mas, primeiramente, pelas disciplinas médicas. No hemisfério norte, e particularmente no Reino Unido e nos Estados Unidos, questões sobre deficiência se intensificaram após a Primeira Guerra Mundial e a volta de milhares de soldados, muitos dos quais haviam sofrido perda de membros ou de sentidos (vista, audição). No início do século 20, as pesquisas se preocupavam primordialmente com a reabilitação desses veteranos e, assim, surgiu o modelo médico da deficiência (the medical model of disability). Segundo esse modelo, deficiência � uma característica pessoal, particular, do indivíduo. Dessa maneira, deficiências se tornaram algo que, ou a medicina � capaz de curar ou solucionar, ou algo com o qual se “deve lidar�. Isso acabou naturalizando a exclusão social de pessoas com deficiências, e fez com que a ausência deles na vida social cotidiana fosse atribuída � inaptidão.

Foi apenas na segunda metade do século 20 que essa percepção começou a ser desafiada. No Reino Unido, particularmente, grandes fundos de caridade começaram a se estabelecer, assim como centros residenciais para pessoas com deficiências, que ofereciam uma alternativa para famílias que, anteriormente, se responsabilizavam totalmente pelo cuidado daquelas pessoas. Essas novas instituições permitiram a organização de grupos de pessoas com deficiência e suas famílias e reacendeu a discussão sobre o conceito de deficiências e como estas deveriam ser vistas pela sociedade. Dentro do mundo acadêmico isso se traduziu pela introdução de narrativas e pesquisas feitas por estudiosos com deficiências, que deflagraram uma nova maneira de conversar sobre inclusão social, e as razões pelas quais ocorria exclusão de modo geral (Shakespeare, 2006). Esses estudos eram feitos dentro da área de ciências humanas e sociais e nasceu, então, na década de 1970, o modelo social da deficiência (the social model of disability).

Ao contrário de seu antecessor, o modelo social define a exclusão social de pessoas com deficiência não como responsabilidade particular do(a) indivíduo(a), mas como condicionada por fatores sociais. Em 1976, a Union of the Physically Impaired Against Segregation definiu deficiência como sendo “a desvantagem ou restrição de atividade causada por uma organização social contemporânea que tem pouca ou nenhuma consideração por pessoas que têm deficiências físicas e que, então, as excluem da participação em atividades sociais convencionais� (Tradução livre: UPIAS, 1976). Ou seja, a característica pessoal (impairment, ou restrição física) não � a razão da exclusão social; essa se institucionaliza através de uma série de padrões, normas e atitudes prevalentes na sociedade. Replique montre rolex | penny skateboard nero | UGG Boots for Women

Esse novo modelo social foi um instrumento importante na luta política pelos direitos de pessoas com deficiência, que não se propunha como uma explicação da deficiência, mas sim do processo de invalidação de corpos e mentes diferentes (Beckett & Campbell, 2015). Foi pelo uso do modelo social que foi possível realçar como o ambiente construído, por exemplo, pode ser exclusivo e excludente em sua concepção, pela falta de elevadores, rampas ou sistemas audiovisuais (entre outros). Assim foi também possível criar legislações e orientações que refletem essa exclusão social e tentam remedi�-la, tal como o Americans with Disabilities Act (1990) nos Estados Unidos e o Disability Discrimination Act (1995) no Reino Unido.

Sistemas rígidos e exclusão

Os estudos da deficiência (disability studies) � um campo interdisciplinar que prioriza as experiências e narrativas de pessoas com deficiências e, como tal, j� � interessante por si s�. Porém, em uma pesquisa sobre sistemas de transporte público � necessário também dar importância ao processo de desenvolvimento tecnológico. Os estudos da ciência, tecnologia e sociedade (ECTS) são um campo que permite desenvolver uma perspectiva social sobre a maneira que artefatos e pessoas interagem. Argumenta-se que uma tecnologia ou teoria científica não � independente de seu contexto social, mas sim o resultado deste. Estuda, então, quais foram os processos que estabeleceram uma tecnologia com determinado formato e atributos e não outros. Por exemplo: por que as bicicletas não têm mais uma roda pequena atrás e grande na frente? No meu trabalho, uso essa abordagem para pensar sobre o sistema de transporte público e como ele pode reforçar a exclusão social de pessoas com deficiências, particularmente por ser exatamente o meio que permite mobilidade e acesso entre a esfera privada (a casa) e a esfera pública (escola, praça, prefeitura etc). Se o transporte, e particularmente o transporte público, não for acessível, muitas pessoas com deficiência se tornam dependentes e veem seus mundos se tornarem cada vez menores.

O provedor de transporte público em Londres, Transport for London (TfL), divulga com orgulho dados sobre a acessibilidade da rede: 98% da frota de ônibus tem rampas e um terço das estações de metr� tem acesso para cadeirantes. Algumas pessoas poderiam at� dizer que não existe motivo para cadeirantes terem dificuldades para se locomover em Londres. Apesar desses dados, as reclamações ainda são constantes. Por exemplo, recentemente a baronesa Brinton teve negado o acesso a um ônibus porque havia um pai com um carrinho de beb� no espaço dedicado às cadeiras de rodas (Pettitt, 2015). Mais recentemente, acompanhei um homem, Alan, para observar suas táticas enquanto viajava por Londres. Ele disse que aquela tarde tinha sido tranquila � apenas uma rampa estava quebrada em um ônibus, uma porta defeituosa em outro, e nenhum passageiro ou motorista reclamou do atraso causado por isso. Pareceu-me que o retrato descrito pelo TfL não reflete os relatos destes, e tantos de outros cadeirantes, e busquei entender as possíveis causas dessa incongruência.

Na minha pesquisa, entrevistei 30 cadeirantes sobre suas experiências com transporte em Londres. Um tema que surgiu dessas mais de 40 horas de conversa � que acessibilidade o resultado de uma combinação de fatores tecnolgicos, espaciais, e sociais. Alguns usurios me contaram histrias sobre terem ficado presos em uma estação subterrnea porque o metrfoi desviado para uma rota inacessvel. Outros me contaram sobre quando não havia espaço suficiente para eles entrarem no nibus, como a baronesa Brinton. Pouqussimas dessas histrias são causadas por apenas um fator, pois a rede de transporte pode ser considerada um sistema sociotécnico. Na literatura de ECTS, esses sistemas são caracterizados por serem constituídos por artefatos tecnológicos e estruturas sociais que se constroem e se moldam mutuamente. Esses sistemas também são definidos por terem objetivos e solucionarem problemas ao “reorganizarem o mundo físico de maneiras consideradas úteis ou desejáveis, ao menos por aqueles que desenham ou usam o sistema tecnológico� (tradução livre: Hughes, 1987, p. 53).

Um momento interessante na vida desses sistemas � o que Hughes chama de consolidação (consolidation), uma fase na qual existem poucos sistemas em competição com o mesmo objetivo. Essa � discutivelmente a etapa na qual se encontra o sistema de transporte público em Londres, onde o TfL regula todos os modos de transporte (ônibus, metr�, taxis, bondes etc) e detém significativo poder decisório. Porém, o mais interessante � como chegamos a esse momento de consolidação � a história do transporte em Londres � muito longa e começa a se tornar oficial na época vitoriana, com o desenvolvimento da primeira linha de metr�, em 1863. Desde então, passados 150 anos, a rede de transporte se desenvolveu de maneira muito rápida com uma malha de 402 quilômetros e uma frota de mais de 8000 ônibus. Para garantir a harmonia de um sistema de tal tamanho, foi necessário um processo de padronização para que todas as diversas partes da rede pudessem se comunicar em uma língua comum. Esse processo necessita, e também causa, uma certa rigidez no sistema.

� justamente essa rigidez que pode ser considerada a alma do problema da acessibilidade. Durante o processo de padronização do sistema, os conceitos sociais que definiam quem era, ou seria, um passageiro do transporte público, não incluíam pessoas com deficiências. Ou seja, escolhas foram feitas durante esse processo o que, segundo os autores Susan Leigh Star e Geoffrey Bowker, “não � inerentemente ruim � certamente � inevitável. Mas � uma escolha ética, e, como tal, � perigosa � não ruim, mas perigosa� (tradução livre: Bowker & Star, 2000). O perigo aqui � que as escolhas foram feitas em uma época quando ainda seguiam o modelo médico da deficiência, que abordamos acima, e a rede não foi concebida com a necessidade de pessoas com deficiência em mente. Se o transporte em Londres pode ser tido como estabilizado e consolidado, ele não o � para esses passageiros, que ainda se sentem marginalizados pela experiência.

Pensando em um futuro brasileiro inclusivo

Propostas para solucionar essa exclusão sistêmica de pessoas com deficiências s� começaram na década de 1990. O DDA, mencionado acima, foi uma das chaves para tentar melhorar o nível de acessibilidade � começaram com a substituição, em fases, do antigo ônibus Routemaster, que tinha degraus, por uma nova geração, com o piso rebaixado e uma rampa. Porém, essa substituição demorou at� 2005, com a meta de aderência total at� 2009 (com a exceção de algumas rotas históricas para turistas). No caso do metr�, apenas a extensão da linha Jubilee, inaugurada em 1999, foi desenhada com acessibilidade em primeiro plano, e, das 270 estações, apenas 67 são consideradas acessíveis (das quais apenas metade não precisa de uma rampa manual para entrar no trem da plataforma). A modernização de plataformas e estações antigas tem um custo altíssimo, e o TfL projeta conseguir a remodelação de mais 28 estações nos próximos 10 anos. Então, o que podemos aprender do caso londrino, para aplicações concretas no Brasil?

A questão da inclusão social de pessoas com deficiências não � mais uma questão do “politicamente correto�, mas sim de lei. Em 2015 foi sancionado o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Diferente do Disability Discrimination Act britânico, a legislação brasileira colocou peso na questão de acessibilidade e “desenho universal�, tido como “concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto especfico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva� (Lei n� 13.146). Ou seja, as necessidades de pessoas com deficiências têm que ser incluídas desde a fase de concepção de novos projetos.

Ao contrário do sistema de transporte londrino, as redes de transporte no Brasil ainda estão em uma fase maleável. No Metropolitano de São Paulo, pelo menos três linhas estão em fase de projeto. No Rio de Janeiro, pós-Jogos Olímpicos, fala-se da expansão de trilhos at� a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes. Essas, e outras, são oportunidades para execução do novo estatuto e começar a moldar os sistemas de transportes brasileiros de maneira inclusiva. Isso seria, de fato, um passo em direção a uma sociedade igualitária.


Raquel Velho � doutoranda em estudos sociais da ciência e da tecnologia pela University College London (Reino Unido) com bolsa pelo programa Ciência Sem Fronteiras (Capes) e mestre pela Imperial College London (Reino Unido). E-mail: raquel.velho.12@ucl.ac.uk


Referências

Beckett, A. E.; Campbell, T. "The social model of disability as an oppositional device". Disability & Society 30(2): 270-283, 2015.

Bowker, G. C.; Star, S. L. Sorting things out: classification and its consequences. Cambridge, Mass., The MIT Press, 2000.

Hughes, T. P. “The evolution of large technological systems�. In: Bijker, W. E.; Hughes, T. P.; Pinch, T. J. (Eds.). The social construction of technological systems: new directions in the sociology and history of technology (pp.51-82). Cambridge, Mass., The MIT Press, 1987.

Pettitt, J. “Wheelchair-bound Lib Dem peer barred from boarding near-empty bus by father with a pram�. Evening Standard, 29 de abril de 2015. Disponível em: http://www.standard.co.uk/news/london/wheelchair-bound-lib-dem-peer-barred-from-boarding-near-empty-bus-by-father-with-a-pram-10212583.htm.

Shakespeare, T. "The social model of disability." The disability studies reader 2: 197-204, 2006.

UPIAS. "Fundamental principles of disability." Reprinted in edited form in Oliver, M., Understanding disability: from theory to practice: 19-29, 1976.