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O que é uma vida (humana)?
Por Guilherme José da Silva e Sá
10/02/2016
É difícil iniciar qualquer tipo de atividade humana – e a produção de um texto não é muito diferente – sem situarmos em seus diversos sentidos e práticas uma dimensão vivida. Seja por uma razão puramente pragmática e pouco reflexiva – estamos vivos enquanto realizamos nossas atividades – ou em virtude de uma curiosidade profunda – quiçá atávica – que nos leva à pergunta, “o que é a vida?”. Sem ignorar a relevância da primeira motivação – que não deve ser considerada uma evidência puramente retórica – permito-me debruçar-me sobre uma variação do segundo impulso: “o que é uma vida?”. Paradoxalmente, a presença de um artigo definido compondo a primeira questão torna-a ainda mais genérica, como se as vidas de todos pudessem ser agregadas em uma só resposta. Por outro lado, “uma vida” pode ser algo tão concreto quanto complexo, o que demandaria a um pesquisador a escrita não apenas de uma tese, mas de biografias.

“O que é a vida?” é forma corrente com que boa parte dos cientistas – biólogos, químicos, físicos –, mas também juristas e teólogos, têm se questionado na longa narrativa sobre a trajetória humana sobre a Terra. Em compensação, “o que é uma vida?” é uma pergunta que ouvimos diariamente nos gabinetes de trabalho de antropólogos, sociólogos e da maioria dos cientistas sociais que conhecemos. Não devemos investir muito nessas classificações que, sem muito esforço, podem se mostrar equivocadas, mas elas são válidas apenas para modular algumas ideias que pretendo desenvolver neste texto ao recuperar alguns eventos na história recente das ciências naturais e sociais a propósito do que pode (ser) uma vida humana.

Não seria exagerado afirmar que a última década do século passado foi marcada pelo desenvolvimento de um dos mais ambiciosos projetos de big science já concebidos, o Human Genome Project (HGP), cuja magnitude da pergunta, possivelmente, só pode ser comparável àquela mobilizada no âmbito dos maiores aceleradores de partículas: o que é um ser humano? O projeto que pretendeu decodificar, mapear e sequenciar o genoma humano esteve desde o início ancorado na promessa (em sua eloquência não cumprida ao cabo do empreendimento) de entender toda a diversidade de traços e comportamentos humanos que estariam contidos e seriam supostamente determinados pelas ações de nossos genes. A iniciativa logo se viu envolta em uma aura mística em que proliferaram expressões como o “Livro da vida”, o “Santo graal da biologia” e a “Linguagem de Deus”. A propaganda da divulgação pública do HGP ganhou ainda mais força quando o renomado biólogo molecular líder do consórcio público do genoma, Francis Collins, declarou em junho de 2000, durante a cerimônia de apresentação do rascunho do sequenciamento do código genético humano, que era para ele “um motivo de humildade e admiração que captamos o primeiro vislumbre de nosso livro de instruções, antes só conhecido por Deus” (apud Davies, 2001).

Ao ufanismo presente no “Livro da vida” uniu-se uma conotação de totalidade expressa naquilo que foi considerada a “tabela periódica da biologia”. À dimensão fisicalista, que encontraria no próprio corpo humano a resposta para – e as evidências de – sua vida, somou-se inicialmente uma redução no DNA do que era concebido como a “natureza humana” e, por fim, no estabelecimento de um suposto padrão humano calcado na ideia de sua finitude biológica. A vida humana e sua gênese assumiam, portanto, uma generalidade que deveria ser apreendida pelo controle da técnica, muito embora os principais articuladores pouco se questionassem acerca do que, afinal, poderia ser uma vida humana. As singularidades incomensuráveis presentes nas vivências – e não necessariamente no evento fundador “vida” – foram incansavelmente apontadas pelos antropólogos e sociólogos envolvidos nos aspectos éticos e sociais do projeto. E sua redenção veio com o encerramento pouco conclusivo naquilo que se propunha (compreender o humano) o HGP. Compreendia-se, enfim, que a vida é um fenômeno muito mais complexo e multifatorial do que os nossos genes podem sozinhos comportar.

A pergunta “o que é uma vida?” retorna agora ao horizonte das pesquisas de ponta em ciência e tecnologia, mais uma vez agregada ao complemento que a qualifica, o humano. Uma vida humana é justamente aquilo que ao mesmo tempo motivou e desorientou o HGP. Influiu positivamente na mobilização de recursos, uma vez que a nossa presença narcísica no mundo coloca as inquietações humanas no topo da escala de prioridade em relação à toda a biodiversidade existente no planeta. E é justamente daí que advém a desorientação. O problema da espécie humana não é um problema da “espécie”, mas sim do “humano”, ou seja, daqueles que são pensados para caberem dentro desse qualificador. A vida humana. As vidas de quais humanos?

É certo que as novas tecnologias da vida vêm contribuir para a superação de males que afligem o aglomerado que chamamos de humanidade. No entanto, a questão que devemos ter sempre em mente – para o desenvolvimento de uma ciência ética e inclusiva – é o quanto de diversidade a noção de humanidade com a qual estamos operando comporta e quão normativo é preciso ser para estabilizá-la. Assim, passamos a perceber que nem os corpos e nem as vidas pertencem a uma espécie humana, mas sim pertencem a sujeitos. Sujeitos que possuem histórias de vida, que ostentam e fazem seus gêneros, que se identificam racialmente, e que se organizam em função de biossociabilidades, nos termos de Paul Rabinow (1999), para reivindicarem políticas públicas e científicas para si.

Se não parece ser mais politicamente admissível buscar em um determinado padrão de corpo humano, ou no seu fracionamento, o significado para a vida (projeto fisicalista), é preciso pensar o que pode uma vida humana. Quantas vidas cabem num corpo?

Em última análise, por exemplo, as recentes pesquisas de desenvolvimento de neuropróteses, que promovem interfaces cérebro-máquina, invertem a busca pela vida, antes internalizada nos genes, tornando-a compósita. As máquinas e as próteses acopladas ao cérebro, o órgão mais racionalizado deste corpo (por ser “relacional” e não como pensado intrinsecamente “racional”), pretendem restituir a humanidade aos corpos socialmente estigmatizados como “menos humanos”. A partir dessas pesquisas, chegamos a um panorama interessante, que nos leva a um corpo ciborgue capaz de restabelecer a humanidade de alguém1. Ao contrário do projeto fisicalista, em que a redenção encontra-se na natureza, aqui o humano se situa em sua capacidade de articulação.

Mesmo nesses novos campos de pesquisa, o risco de recaídas reducionistas ainda é possível. Elas se encontram de forma discreta nas práticas de desenvolvimento tecnológico e transparecem nos juízos que são feitos na própria concepção do problema a ser resolvido. Assim como a noção de humano não é unívoca, os problemas que afetam a humanidade – ou pelo menos a forma como ela se vê – também não são percebidos da mesma maneira por todos. Quando a proposta ensejada trata de recompor as faculdades consideradas básicas de um ser humano, como locomover-se, alimentar-se, enxergar e ouvir com autonomia, é preciso ter clareza de que o que está em jogo permanece sendo o que estabelecemos como norma para definir sua humanidade. Esta última é facilmente identificada através de seu contorno, o que supostamente justifica as mais arrojadas intervenções tecnológicas em nome de um bem comum a toda espécie humana. Entretanto, nem tudo é contorno quando lidamos com seres vivos. Existe em cada indivíduo que exerce no mundo sua ação vital um limite de potência ainda pouco explorado e que entre nós, humanos, chamaríamos de condição. Fundamentalmente, são essas condições de vidas humanas que virão em breve a sobressair nos tipos de pesquisas científicas que serão realizadas. Trata-se, finalmente, de firmar um acordo tácito entre o que se passa nas bancadas de laboratórios e a sociedade civil, representada por seus legítimos porta-vozes, humanamente afetados, institucionalizados em seus corpos, unidos pelas condições que os diferenciam do padrão da espécie. Contra os cultuados reducionismos eugênicos surgirão, então, existências multicultivadas.

Como nos diz Michel Serres, os jovens de hoje não são mais como foram seus antepassados – reflexos do resultado dos conhecimentos que acumularam gradativamente ao longo da vida. Uma nova geração de humanos surgiu concomitantemente com as novas tecnologias que aqui foram mencionadas. “Eles não têm mais o mesmo corpo, a mesma expetativa de vida, não se comunicam mais da mesma maneira, não percebem mais o mesmo mundo, não vivem mais na mesma natureza, não habitam mais o mesmo espaço” (Serres, 2013, p. 20). Agindo como usuários dos aplicativos que “baixam”, esses “novos humanos” são amálgamas daquilo que optam por se agregar ao longo de uma vida.

No passado, a controvérsia em torno da existência de vidas mais ou menos humanas culminou com o seu encerramento em nome da unicidade da espécie, e quanto a isso não há o que se contrapor. Faz-se necessário, no futuro, pensar que as formas humanas de existir são heterogêneas e para elas não há denominador comum, apenas múltiplos possíveis. Cabe, portanto, às nossas ciências e tecnologias criar oportunidades para que as diversas condições humanas sejam manifestadas livremente sem ser preciso evocar a crença em sua natureza única.

Guilherme José da Silva e Sá é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB).


Referências bibliográficas

Davies, K. Decifrando o genoma: a corrida para desvendar o DNA humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Haraway, D. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: Silva, T. T. da (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Rabinow, P. Antropologia da razão: ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

Serres, M. Polegarzinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

1Sobre o assunto, o “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, escrito por Donna Haraway (2000), é leitura obrigatória.