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Artigo
Novas configurações míticas para a Idade Antropoceno da supremacia dos plásticos: a deusa do mar e as sereias vigilantes
Por Elizabeth Doud
10/03/2016
O século XXI � um tempo histórico muito irônico. Nossa ironia particular � cibernética e plástica, e reside mais do que nunca em nossos corpos e no entorno planetário. Com o avanço da industrialização das economias e a rapidez dos procedimentos de produção e comunicação, a Terra tem se transformado irreversivelmente em um organismo com mutações sintéticas: a sua própria corporalidade agora inclui componentes imutáveis organicamente, que transfiguram a nossa biologia e a consciência individual. Como consequência, as ecologias e espécies contidas na biosfera sofreram transformações e viraram “ciborgues�1:seres orgânicos com componentes sintéticos.

Hoje, também como em todos os tempos históricos difíceis, o ser humano precisa de mitos2, para entender o enigma de estar vivo. Joseph Campbell, especialista em mitologia comparativa, falou que os mitos são importantes “não porque explicam o significado da vida, mas porque nos ajudam a entender a experiência problemática de viver�, com todas as suas contradições, incertezas e maravilhas (Campbell; Moyers, 1988, p. 15). Ele frisa que os mitos precisam mudar com os tempos, porque cada época traz consigo enigmas e problemas peculiares a seu momento, e velhas “lições� nem sempre servem a um novo paradigma.

O advento tecnológico dos plásticos, a crise climática e as catástrofes resultantes, como a aparição dos corpos ciborgues, estão provocando circunstâncias completamente inéditas, e os nossos mitos tradicionais não estão dando conta dos grandes desafios logísticos e morais que, em breve, nós iremos enfrentar. Este artigo pretende discutir o contexto atual da crise climática e as suas dimensões culturais, e examinar mitos vivos e futuros, que podem nos ajudar a navegar nas águas turbulentas do colapso desesperador da nossa “casa comum�3.

Contexto atual: uma versão mini do megadesastre

Em termos geológicos, estamos vivendo na época Holoceno, que começou com o fim da última era do gelo (Pleistoceno). Alguns sugeriram que j� passamos para outra época, chamada de Antropoceno4, após o domínio dos efeitos humanos no planeta. Esses efeitos são a consequência direta e indireta dos padrões de consumo de nossa espécie, nos tempos industriais, principalmente, e refletem a nossa atitude moral e espiritual perante a natureza. A atividade de consumo atual da população humana est� ultrapassando a capacidade do planeta de nos abastecer dos elementos básicos para viver (água potável, recursos não renováveis) e, ao mesmo tempo, est� depredando o meio ambiente, de tal maneira, que, em breve, não teremos equilíbrio suficiente para manter a vida, como a entendemos hoje. Esse último perigo se deve aos fatores de mudança da temperatura (principalmente o aquecimento dos oceanos e dos polos) e a extinção de números massivos de espécies. Para complicar ainda mais a situação, essa informação, comprovada pela ciência, não parece suficiente para nos convencer da urgência de mudar o nosso comportamento, nem na micro nem na macro escala das possibilidades. Estamos vivendo uma negação mundial, de proporções ilógicas e mortais. Essa incapacidade atual do ser humano de reconhecer e dar conta da crise do meio ambiente, criada por nós, tem a ver com vários fatores, econômicos e sociais, como a dominação econômica multinacional das indústrias de extração, em nível global (e os hábitos de consumo de uso único, a ela inerentes), a sobre-população e suas origens, e o fenômeno da violência lenta ou invisível, tão elegantemente definida pelo jornalista Rob Nixon5, que torna imperceptíveis os danos em nosso entorno natural. A combinação dessas complexas realidades convergentes dificulta a consciência de perigo, na maioria das pessoas que conseguem enxergar pedaços do problema externo e interno aos seus corpos, mas pouco se organizam para promover mudanças compreensivas em favor de seus próprios interesses, orgânicos e da biosfera, nesse momento de extinção eminente. Além de ser uma escolha irônica, no pior sentido, � uma postura pouco política, que reflete uma insanidade coletiva. Como podemos penetrar essa borbulha de passividade?

O ciborgue e as dialéticas impossíveis

Aqui inter-relacionamos algumas das ideias seminais da escritora, feminista e bióloga, Donna Haraway e seu Manifesto ciborgue (2000), refletindo sobre a dominação da indústria dos plásticos, reconhecendo algumas características dos arquétipos da sereia e da mitologia da deusa do mar Iemanj�, e propondo finalmente a narrativa mítica, como anedota, a essas negações. Assim, Haraway, no Manifesto ciborgue, define uma das utilidades da ironia, como ferramenta narrativa: “A ironia � sobre contradições que não se resolvem em conjuntos maiores, mesmo dialeticamente, sobre a tensão de manter o humor e jogar sério. � também uma estratégia retórica e um método político, aquele que eu gostaria de ver mais honrado� (Haraway, 2000, p. 291).

Cabe explicar que o Manifesto de Haraway se preocupa com a interface da tecnologia e o feminismo socialista, na última parte do século XX, e ela constrói uma definição de seres ciborgues como “organismos cibernéticos, híbridos de organismo e máquina, uma criatura de realidade social tanto quanto de ficção científica� (Haraway, 2000, p. 291). Na concepção de Haraway, ciborgue corresponde a um pensamento de tradição racista, machista e capitalista, que incorpora (literalmente: d� corpo) a uma “tradição de progresso e apropriação da natureza como recurso para a produção de cultura� (Haraway, 2000, p. 292). � também, nessa visão, que um ser irônico representa uma dialética impossível. Um ser condenado às contradições biológicas e ideológicas do tempo político e industrial em que vive.

Trazendo a ideia de Haraway (2000) at� os dias atuais, vemos que ainda estamos incorporando, de maneira ciborgue, as modalidades tecnológicas que essa autora assinalou, h� quase 40 anos atrás, mas temos componentes cibernéticos, em forma de plásticos, e j� presentes em todas as partes de nosso organismo e no organismo do planeta. (Onde Haraway (2000) apontava para um militarismo patriarcal, como o instrumento de deformação do natural, eu aponto para a presença dominadora da indústria dos plásticos, que interfere em nossa existência política e econômica, mas também ao nível celular para construir o novo ciborgue.) Vejamos agora porque os plásticos são frutos de uma incorporação de dominação das indústrias, que têm nos levado ao ponto de transformação e extinção massiva irreversível de muitas espécies: eles estão no topo da hierarquia de consumo e provocam essa nova dialética impossível, em nossos próprios corpos e na Terra.Extruder Machine

A supremacia dos plásticos

Essa supremacia � uma herança da dominação global das indústrias de extração, que não podemos conceber fora da história mundial do imperialismo colonialista e do multinacionalismo industrial; um projeto econômico que usou a mitologia crist� e sua moralidade antro-centrista para justificar os seus fins. A raiz da grandeza petroquímica est� no oportunismo hegemônico humano sobre a natureza e no genocídio dos povos indígenas, como um movimento capitalista de superioridade, que gera sub-economias de guerra, ao nível global, para manter o acesso e o controle sobre o petróleo. Isso garante o futuro de produtos novos, cada vez mais baratos, para entrar no ciclo vicioso de um mercado inesgotável de compradores de todas as classes sociais6.

Ao nível mais básico, a indústria petrolífera � a fonte de energia para a grande maioria das indústrias e de uso doméstico mundial, controla a locomoção das pessoas e os produtos que consumimos. � a base da maioria dos agrotóxicos e de toda a produção de plásticos � substância irreversível na biosfera, uma vez consolidada em sua composição estável. Fisicamente, o plástico não pode ser biodegradado ou reaproveitado no ciclo orgânico da biosfera. Jamais! O plástico mantém a mesma estrutura molecular, e s� � fotodegradado, com tempo, em contato com o sol, dissolvendo-se, aos poucos, numa substância cada vez de menor tamanho, que se dispersa no meio ambiente, com mais facilidade, normalmente através da água, at� chegar um dia aos mares (Moore, 2011).

Destacamos que, no âmbito dos avanços tecnológicos, industriais, médicos e estéticos, os plásticos proliferam em nossas vidas, e são milagrosos. Não podemos existir ou passar um dia sem eles, no paradigma atual, pois todos os tipos de plástico estão integrados completamente � existência humana � at� no nível molecular, como substância ingerida e absorvida pelo próprio organismo.

A permanência e a predominância do plástico em nossas vidas � uma ironia, porque se trata de uma substância com uma duplicidade em seu uso: a sua conveniência e eficácia material � vista como um progresso, mas a curta validade de seu uso e a alta toxicidade desse produto, uma vez fora da circulação, no seu uso pelo consumidor, o transforma em uma arma passiva e lentamente letal, que vem acompanhada de um preço alto, em termos de resíduos tóxicos, no meio ambiente e no corpo humano e animal. A nossa identidade ciborgue, hoje, tem tanto a ver com as tecnologias e com as máquinas quanto com a composição sintética de nossos corpos, cada vez mais pronunciada, de elementos de plástico. Isso vai muito mais além de implantes e próteses, por questões estéticas e funcionais. Por exemplo, a maioria dos fertilizantes e agrotóxicos usados no cultivo de vegetais e frutas comerciais, � de origem petrolífera. Mamíferos e peixes que comemos ingerem esses resíduos e partículas de plástico, que acabam em nossos corpos, modificando-nos, sem possibilidade de reverter o processo (Pollan, 2007).

Basta entender que j� não temos como voltar atrás, e que, por muito, os arquitetos dessa supremacia estão apostando na nossa dependência dos plásticos, mas temos de reconhecer o papel cúmplice individual e social que a permite. Com a evidência montada na frente (e no corpo) de cada ser humano dessa existência ciborgue, chegar� o momento de encarar a probabilidade da nossa própria extinção, e cogitar uma esquiva coletiva? As ciências são claras sobre esse assunto, mas isso ainda não � suficiente para despertar grandes ações, por parte dos governos e indústrias, com a rapidez necessária. A idade da ciência e da razão trouxe consigo a ideia de que o ser humano podia dominar a natureza para nosso uso completo, e isso logramos, mas essa prerrogativa moderna tem extinguido a maioria das sociedades que veneraram a natureza, e que tinham uma “mitologia da natureza� (Campbell; Moyers, 1988), resultando numa desvalorização da sua sabedoria vital, com métodos e crenças inúteis ou ineficazes. As ciências nos deixaram sem um imperativo moral (as ciências, a propósito, não se importam com a moralidade), enquanto a nossa relação com o entorno orgânico e a nossa espécie se encontram, ambas, naufragando num mar de plástico, sem guias éticos para corrigir essa relação necessária com o meio ambiente. Quais são os mitos existentes que podem nos guiar at� uma mudança viável, que abra novas perspectivas para o cuidado de nossa “casa comum�, sem voltarmos para a Idade da Pedra? Ser� que existem, ou cabe ao mundo imaginário criar novas narrativas, para nortear a existência, usando, como base, a sabedoria ecológica, j� que as ciências não dão conta?

O oceano � a mãe de todos nós

Desde a teoria da evolução de Charles Darwin, que propôs o mar como a origem da “vida�, o oceanógrafo Jaques Cousteau � que levou ao público moderno as profundezas do mar, em seus programas e filmes televisivos �, a importância, a maravilha e o mistério do mar estão sedimentados em nossas consciências. E, se acreditamos na consciência coletiva de Carl Jung (1964), a humanidade tem internalizado a simbologia do mar, nos milhares de anos de nossa evolução, para que o significado dele viva sempre em nossas consciências. O mar físico domina o território do planeta e também fica, na maior parte, invisível, e s� existe no imaginário do ser humano como um espaço primordial. Inabitável pelo ser humano e conhecido, s� superficialmente, exceto pelos cientistas experts, o mar � um mundo � parte, que nos brinda com o sustento básico e guarda ainda muitos segredos.

O capitão Paul Watson, intervencionista ambiental canadense e fundador da Sea Shepherd Conservation Society, passa a maior parte da sua vida no mar, defendo-o como ativista. Ele sublinha o nível de depredação atual que atinge, de maneira vital, essa ecologia:

A acidificação e o aquecimento do oceano são muito sérios, e plásticos são parte disso. As Nações Unidas dizem que toda a pesca mundial entrar� em colapso no ano de 2048 e recifes de coral poderão ter ido embora at� 2025 ... a mensagem que eu tento passar o tempo todo � simples: se os oceanos morrem, vamos morrer. Não vivemos neste planeta com um mar morto, pois � a base de nossa existência. 80% do nosso suprimento de oxigênio vem do fito-plâncton; os oceanos regulam a temperatura e o clima.Proteger a diversidade biológica em nossos oceanos � a coisa mais importante7.

O dilema particular da saúde debilitada dos nossos oceanos e da poluição de plástico nos mares e hidrovias ressalta e simboliza o nível de sobrecarga que estamos causando nesse ecossistema, e, paralelamente, a nossa dependência do comércio de “coisas�, que � alimentada pela indústria do petróleo. Sem a saúde dos nossos oceanos, nossa verdadeira origem ficar� prejudicada, seremos, então, uma espécie com um futuro sombrio. Reintroduzimos a ideia da narrativa mítica com relação às profundezas marítimas, porque acreditamos que � difícil encontrar uma cultura que não usa a mitologia para explicar os poderes e segredos dos mares.

Iemanj� � a deusa do mar

Iemanj� ou a deusa do mar foi trazida da África, através de grupos étnicos negros, durante a colonização do Brasil. A mitologia e a manifestação de Iemanj� aparecem nas Américas. Na Bahia, o mito de Iemanj� foi trazido pelos povos, principalmente, da etnia ioruba. No seu livro sobre a mitologia de Iemanj�, o professor e filho de santo, Armando Vallado, define as suas origens:

Os mitos dos orixás constituem certamente a fonte básica para o conhecimento de Iemanj�. Esses mitos, que fazem parte da tradição oral dos diversos povos que formam o complexo linguístico-cultural ioruba, foram preservados nos países da diáspora africana, especialmente Brasil e Cuba..levados pela expansão das diferentes modalidades americanas da religião dos orixás. (2011, p. 17)

Nos mitos reunidos por Vallado (2011), Iemanj� aparece como mãe, esposa, filha e amante, mas a sua característica mítica (sagrada) est� na associação com “as águas dos rios e suas desembocaduras, a fertilidade das mulheres, a maternidade e, principalmente, ao processo de criação do mundo e da continuidade da vida... Seu nome � Yemonja (Yeye Omo Eja), Mãe dos Filhos Peixes, divindade regente da pesca� (2011, p. 24).

A antropóloga cubana Lydia Cabrera (1996) identifica sete manifestações de Yemanj�. Estas variam em seus papéis protagonistas de matrona, às vezes ela aparece como guerreira e protetora, outras vezes manifestada com uma doçura maternal e serena. Cabrera destaca uma entrevista com um santeiro notável, na sua introdução sobre a entidade:

Yemanj� � a rainha universal porque � a água, a salgada e a doce, o mar (la mar), a mãe de tudo criado. Ela alimenta a todos, pois sendo o mundo terra e mar, a terra e quantos vivem nela, graças a Ela se sustenta. Sem água, os animais, os homens e as plantas morrem. (Cabrera, 1996, p. 21)

Enquanto isso, Martins (2008), pesquisadora baiana e professora de dança, estudou a dança de Yemanj�, no Candombl�, e aponta para as manifestações contemporâneas e populares da divindade,

na cultura baiana:

A popularidade de Yemanj� como um fenômeno cultural tem influência marcante na vida cotidiana dos baianos. Ela est� presente de maneira viva nos corações e nos pensamentos do povo baiano, que habita um estado rico em águas fluviais e a Baía de Todos os Santos. De fato, ela � muito popular como um orix� feminino, onipresente e poderosa força, sendo cultuada por mais de trezentos anos, desde o tempo em que os africanos chegaram no Brasil ...e que simboliza fertilidade e fecundidade. A sua figura popular est� associada ao símbolo universal da sereia, ou seja, uma morena de traços latinos, como resultado da fusão com as mães-d’água europeias, indígenas e africanas. (Martins, 2008, p. 59)

Usando como base essas identificações dos poderes sagrados da deusa do mar, uso como referência contemporânea a mitologia de Iemanj� ou Yemanj�, e inter-relaciono-a com a sereia profana porque � uma das deusas mais associadas aos oceanos e mares � ecologia de importância fundamental para a minha pesquisa sobre performance e meio ambiente.� um ser mítico, sendo muitas vezes associada ou representada como uma sereia � arquétipo universal que atravessa fronteiras culturais e existe em um estado híbrido ou ciborgue, no contexto da sociedade moderna; e � uma deusa venerada em culturas próximas a mim, tanto a cultura brasileira quanto a cubana.

As sereias como símbolo universal de nossa relação com mares e água

A sereia � uma figura da mitologia humana, não necessariamente sagrada, e existe como um modelo em nossa consciência coletiva, sem ter sempre a dimensão de uma deusa. As pesquisas de Carl Jung (1964) sobre arquétipos, em mitologia, símbolos e na psicologia humana, evidenciam a presença recorrente, nas culturas do mundo, do “animus� que, frequentemente, aparece como uma sereia. Além disso, ela vem acompanhada de características femininas, maternas, eróticas e fantásticas, que contêm em si as possibilidades de nossos desejos carnais e existenciais, em relação a pertencimento e segurança.Essa figura também tem um lado negativo, ou moralmente comprometido, e pode significar uma queda de esforço moral. A sereia tem aparecido nas narrativas folclóricas como um ser sedutor, que controla os ventos e os mares, e atrai os marinheiros para possu�-los, levando-os para o fundo do mar (Milne, 2008).Campbell (1988) fala que o mito tem quatro funções: a mística, a cosmológica, a sociológica e a pedagógica. Segundo ele, � a quarta � a função pedagógica � que nos est� fazendo falta agora, porque não temos mitos que nos deem pistas ou exemplos para entender como lidar com a complexidade das ironias � as dialéticas impossíveis � de nossos tempos plásticos.

Novos mitos híbridos

Historicamente, um dos papéis da arte � proporcionar estratégias para desmontar supremacias e levantar contradições. A arte forma-se em nossos sonhos coletivos e manifesta os medos, possibilidades e urgências, que se tornam visíveis e têm chances de mudar a realidade, ressaltando outros valores. Olhando de novo para Haraway (2000), consideramos algumas características subversivas dos ciborgues, que vislumbram um futuro irônico e talvez nos ajudem a construir narrativas míticas alternativas, da deusa do mar e da sereia. Haraway indica a blasfêmia como uma postura prudente para um ciborgue: “Blasfêmia não � apostasia�. Esta nos protege de uma hegemonia moral e, ao mesmo tempo, “insiste em comunidade� (Haraway, 2000, p. 291). A blasfêmia fala contra algo � um tabu � e rejeita o sagrado que também internalizamos. No contexto atual, o sagrado não são as figuras míticas tradicionais (a Iemanj� ou a sereia), mas a supremacia artificial que nos absorve, o deus do shopping e dos produtos baratos e sintéticos. A blasfêmia maior de nossos tempos ser� rejeitar a dominação dos plásticos � esse deus falso � que ainda carregamos dentro de nós. Temos que começar a recusar e transformar os milhões de toneladas de lixo plástico que j� existem na biosfera para reposicionar os nossos corpos em uma construção alternativa.

Nessa junção, precisamos da blasfêmia e de um novo sentido do sagrado, ao mesmo tempo. O velho deus do progresso s� gera lixo. Reciclagem não � suficiente. Que tal reciclarmos as deusas que foram mortas ou tão mal amadas, que nos abandonaram? Tomemos a sereia como um animal da mitologia, da ciência e da ficção, mas, agora, em virtude de morar no mar, ela também � composta de plástico, e � um ciborgue que transita em um lugar contemporâneo. Ela tem relação direta com a deusa do mar. Ela � a mulher maravilha, com escamas e calda, uma sereia vigilante, membro da milícia de uma “Iemanj� pós-moderna�. Nas palavras de Haraway, ela � “resolutamente comprometida com a parcialidade, a ironia, a intimidade e a perversidade. Ela � oponente, distópica e completamente sem inocência� (2000, p. 292).

A sereia vigilante tem uma missão: “desmascarar o irracionalismo�, usando uma mitologia ciborgue para imaginar poeticamente um futuro onde nós não seremos extintos, mas onde conseguiremos reviver os mares, reconstruindo nossas comunidades dos escombros plásticos, talvez erguendo pirâmides feitas de copos descartáveis, lixo eletrônico e garrafas PET. Ela ser� capaz de resistir, porque ela ainda não pode ser codificada. Ela � pós-internacional, pós-marxista, pós-eco-feminista, pós-folclore e pós-plástica: � a mulher-peixe, que transcende o shopping, e nos faz lembrar a reverência que devemos ter para com a mãe das águas.

A criação de novos mitos existe no contexto de arte e ativismo, em um mundo globalizado, em tempos de mudança climática, impostos por múltiplos esforços, além do controle e do tempo do próprio artista, como a supremacia dos plásticos. Apesar dessas dificuldades, menciono a performance ambiental como uma estratégia artística real, cuja foco principal � criar metáforas visuais e performáticas, para sublinhar o impacto que o lixo, no seu sentido mais amplo, tem sobre o ambiente natural (praias e mares) e no próprio ser humano.Estou criando uma “sereia vigilante�: um arquétipo-super-heroína que � blasfema sobre os antigos seguidores, aqueles que poluem e sujam as praias e os mares. Ao mesmo tempo, isso representa várias espécies, utilizando os métodos modernos para chamar a atenção para a falta de respeito com a nossa mãe dos mares. Enfim, somos todos filhos-peixes.

Elizabeth Doud � performer, escritora, gestora na área de artes cênicas, e trabalha nas áreas de colaboração cultural e crise climática. Mestre em escrita criativa, pela Universidade de Miami (Estados Unidos), atualmente cursa o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.


Referências bibliográficas

Cabrera, L.Yemanj� y Ochún, Kariocha, Iyalorichas y Olorichas.Miami: Ediciones Universal, 1996.

Campbell, J.; Moyers, B.The power of myth. New York City: Doubleday, 1988.

Dolman, T. Director (2011) Eco-pirate: the story of Paul Watson. New Zealand: Screen Siren Pictures.

Francisco, El Santo Padre. Carta encíclica laudatosi�: sobre el cuidado de la casa común. Roma: El Vaticano, 2015.

Haraway, D. “A cyborg manifesto: science, technology and socialist-feminism in the late twentieth century�. In: Bell, D.; Kennedy, B. (Edts.). The cybercultures reader. New York City: Routledge, 2000. p. 291-324.

Jung. C. Man and his symbols. New York: Doubleday, 1964.

Klein, N. This changes everything:capitalism versus the climate. New York City: Simon and Schuster, 2014.

Kolbert, E. The sixth extinction. New York City: Henry Holt & Publishers, 2014.

Martins, S. A dança de Yemanj� Ogunt�, sob a perspectiva estética do corpo. Salvador: EGBA, Fomento � Cultura � Governo da Bahia, 2008.

Milne, L. “Mermaids and dreams in visual culture: the mermaid as a visual-oral image. Cosmos, n. 22, p. 65-104, 2008.

Moore, C. Plastic ocean: how a sea captain’s chance discovery launched a determined quest to save the oceans. New York City: Penguin Group, 2011.

Pollan, M. The omnivore’s dilemma. New York City: Penguin Press, 2007.

Nixon, R. Slow violence and the environmentalism of the poor. Cambridge: Harvard University Press, 2011.

Thornes, J. E. “A rough guide to environmental art�. The Annual Review of Environment and Resources, n. 33, p. 391-411, 2008.

Vallado, A. Iemanj�, a grande mãe africana. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2011.


1 Na ciência e na literatura de ficção científica, um ciborgue � um organismo dotado de partes orgânicas e cibernéticas, geralmente com a finalidade de melhorar suas capacidades, utilizando tecnologia artificial. Os ciborgues típicos das obras de ficção científica geralmente servem de mote para comparações entre o ser humano e a máquina, refletindo sobre temas como a moralidade, o livre-arbítrio e a felicidade.

2 Aqui uso a palavra mito para descrever todas as narrativas, contos, lendas e liturgias, criadas pelo ser humano para explicar a própria vida e a existência da vida ao redor. Inclui religiões e cultos de todas as culturas do mundo, sem assinalar o privilégio de nenhum deles.

3 “Casa Comum� � uma frase utilizada com frequência pelo Papa Francisco, na última Carta Encíclica Laudato Si�, publicada pelo Vaticano, em junho de 2015. Considerada uma chamada ao mundo para elevar a consciência global sobre as condições do meio ambiente e dos pobres, a encíclica aponta para a urgência da humanidade construir, em conjunto, uma forma de lidar com a crise climática. O texto faz uma relação entre a humanidade e a sua casa comum � a biosfera � e lamenta quanta falta de cuidado temos com ela. Não � pouco significativo que o Papa, a voz da mitologia católica, inclua esse novo capítulo na narrativa sagrada da Igreja. Aqui vemos uma revisão da mitologia atual, com a necessidade de customiz�-la para a nova idade, com ênfase em um novo imperativo ético.

4“Antropoceno� vem de antropo (raiz de “homem�, e cene, raiz de “novo�), porque a espécie humana tem causado extinções em massa, de espécies vegetais e animais, poluiu os oceanos e alterou a atmosfera, dentre outros impactos duradouros, a uma velocidade sem precedentes, em outras fases de extinção na Terra. (Kolbert, 2014).

5Violência lenta � a violência que ocorre gradualmente e fora de vista, uma violência de destruição retardada, que � dispersada através do tempo e do espaço, uma violência referente ao que normalmente não � visto como violência. “Violência � habitualmente concebida como um evento ou ação que � imediata no tempo, explosiva e espetacular (com sujeito-vítima claro) no espaço, com uma erupção em visibilidade e sensação instantânea. A poluição de mais de uma década de um lago, por agrotóxicos, por exemplo, não deixa de ser violenta, mas não a percebemos assim. (Nixon, 2011, p. 2)

6Naomi Klein, no livro Isso muda tudo: capitalismo versus clima, elabora a conexão inegável entre as economias capitalistas, suas raízes no imperialismo e no colonialismo, e a degradação progressiva do meio ambiente global. Seu discurso enfoca a contradição do ideal neoliberal de “progresso� e qualquer solução lógica e moral para a crise climática atual.

7 Anotação do filme Eco-pirate ou Eco-pirata (2011), que trata do trabalho ativista do capitão e sua pesquisa de 35 anos no mar, enfrentando as indústrias petrolíferas e pesqueiras.