REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Reportagem
“Passaralhos” marcam a rotina de jornalistas no Brasil
Por Sarah Schmidt
10/04/2016
No último dia 7 de abril, dia do jornalista, o assunto estava entre os trend topics do Twitter, com diversas manifestações sobre a data. Muitas delas, sarcásticas. “Tem mais dia do jornalista do que emprego pra jornalista”, escreveu uma usuária. “Hoje é dia do jornalista. Amanhã é dia do diferentemente do que foi publicado em todas as páginas”. “Depois de amanhã é dia de Catho”, postou outro usuário, remetendo a uma plataforma que divulga vagas de empregos. Os tuítes refletem o clima quando o assunto é a profissão, que tem passado por muitas transformações, com demissões em massa e redações cada vez mais enxutas.

O ano de 2015 trouxe um tsunami de “passaralhos” (o termo é usado no jargão jornalístico para designar demissões em massa). A lista é grande. A onda atingiu empresas como Folha de S. Paulo, Portal Terra, Rede Anhanguera de Comunicação (RAC, que edita os jornais Correio Popular, Notícia Já e revista Metrópole, em Campinas – SP), Editora Abril, O Globo, O Estado de Minas, Band, SBT, Infoglobo, Diário de Pernambuco, Grupo Estado, IG, Diário da Região, O Tempo, ESPN, TV Escola, A Tarde, Jornal de Londrina, entre outros, que não entraram para a conta. A Petrobras, que também empregava uma equipe de jornalistas, realizou demissões. Em levantamento, o portal Comunique-se apontou mais de 1.400 demissões na área de comunicação só naquele ano.

Estimar o número de “vítimas dos passaralhos” no Brasil não é tarefa fácil, pois nem todas as demissões são homologadas e noticiadas. Além disso, muitos jornalistas são “contratados” como PJs (pessoas jurídicas) ou atuam como “frilas fixos”, com carga horária e responsabilidades de jornalistas contratados, mas sem carteira de trabalho assinada. Quando são dispensados, não são contabilizados em dados oficiais.

Questionada sobre o número das demissões pelo país, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) informou que se baseia nos dados do Ministério do Trabalho. Fornecidos por meio de uma tabela do Caged, eles mostram números gerais de profissionais contratados como jornalistas, admitidos e desligados nas mais diversas empresas, e não apenas em redações. Isso dificulta o levantamento da conta. Na tabela fornecida pela Fenaj, a estimativa é que, de 2013 a fevereiro de 2016, um total de 2.646 postos de trabalho para jornalistas com carteira assinada deixaram de existir. Nessa conta não entram os demais profissionais de comunicação.

Para a vice-presidente da Fenaj, Maria José Braga, há um quadro com número expressivo de demissões. “Isso é muito preocupante. Não há crise que justifique esse número de demitidos. E, ainda, muitas delas fazem demissões de forma diluída, para descaracterizar as demissões em massa”, avalia. Ela ainda observa que em muitos casos têm ocorrido readmissões, mas existe um fenômeno de diminuição salarial. “Empresas têm demitido jornalistas mais experientes, que têm um salário maior, e contratado pessoas mais novas para a função, com salários menores. Isso preocupa porque influencia na qualidade do jornalismo. É preciso ter um convívio entre os jornalistas mais experientes e os mais novos”.

Ela observa que boa parte dos profissionais demitidos tem migrado para seus próprios portais, empresas de assessoria de imprensa e consultorias. Outra área que tem absorvido jornalistas é o filão do marketing de conteúdo. “O jornalista é muito requisitado para a produção de conteúdo. Porque ele produz informação adequada àquela realidade e para a rede social específica. Tem visão ampla, sistêmica, e passa isso para o público de uma empresa. Mas pedimos que esse profissional seja contratado como jornalista e não como produtor de conteúdo. Este último tem sido uma prática corrente, empresas tentam burlar a condição de 5 horas de trabalho por dia”, alerta a vice-presidente da Fenaj.

Percebendo a dificuldade de mostrar o número de demissões em redações de jornais no país – nem todos os sindicatos dos estados têm esses números discriminados – o jornalista de dados Sérgio Spagnuolo resolveu fazer um levantamento aberto sobre o assunto, batizado de “A conta dos passaralhos”. A plataforma tem infográficos, tabelas em Google Docs e textos contando sua saga. Spagnuolo estima que 1.433 jornalistas foram dispensados de redações entre 2012 e 2015. Segundo o levantamento, no mesmo período, houve um total de 5.205 demissões por cortes em empresas de mídia, envolvendo diversos profissionais de comunicação, e não somente jornalistas. “Minha metodologia de levantamento é baseada nas notícias de demissões, divulgadas em portais sobre a mídia. Tudo está sistematizado no site, com links para as matérias que serviram de fonte”, explica o jornalista.

Apesar de hoje não trabalhar em uma redação tradicional, Spagnuolo não saiu em um “passaralho”. Decidiu seguir o caminho de frilas e montou a própria empresa, a Volt Data Lab, uma agência de reportagens com foco em projetos baseados em dados, que oferece serviço a pequenas e médias redações e ONGs. Além disso, alimenta o site Aos Fatos, que faz verificação de discursos políticos.

Fora das redações dos jornais

“É claro que a gente sabia que haveria desligamentos naquele mês. Entrei na equipe do Diário do Povo em 2007 e, desde 2009, assisti a cortes sucessivos. Justificativas? Crise econômica, crise do mercado comunicacional, readequação de projetos etc. Além de mim, outros cinco colegas receberam a notícia do adeus no mesmo dia. Houve mobilização coletiva, posicionamento do Sindicato dos Jornalistas contra o fechamento de postos de trabalho (as vagas, até onde sei, foram fechadas). Até agosto de 2015, eram 66 os profissionais restantes”, lembra a jornalista Érica Araium, que saiu em uma dessas demissões em massa da RAC, de Campinas, em agosto de 2015.

O depoimento mostra a realidade de boa parte das redações do país: fechamento de postos de trabalho e equipes cada vez menores. Mas na vida pós-demissão, Araium trilhou um caminho novo, mostrando que, ao contrário do que muitos podem pensar, há, sim, vida após a redação. Ela faz parte do movimento apontado pela Fenaj, no qual muitos jornalistas criam seus próprios negócios.  

Com quatro especializações, em jornalismo literário e marketing, ela criou o Diálogos Comestíveis, em setembro de 2015. “Já escrevia sobre gastronomia e teimava em estreitar o relacionamento entre cozinheiros e produtores em toda pauta que conduzia. Hoje, produzo conteúdo, pela perspectiva da narrativa transmídia, multitela e uberconectada, fomento e produzo eventos, ministro palestras relacionadas ao universo da mídia e da gastronomia e estou formatando dois cursos de forma colaborativa”, conta ela, que também é professora na Universidade São Francisco (USF).

O jornalista Henrique Nunes também foi demitido da RAC, em novembro de 2014. Ele estava há sete anos na redação. “Saí junto com mais 15 pessoas e no momento em que acumulava diversas funções”, conta. Logo em seguida, comprou uma bicicleta, resolveu cuidar mais da saúde e foi passar dois meses no Peru. Quando voltou, viu que estava preparado para procurar um novo emprego e investiu em gestão de mídias digitais. Logo apareceu uma oportunidade em Atibaia (SP). “Hoje cuido das mídias sociais da prefeitura, do prefeito, do vice-prefeito e elaboro pautas estratégicas para fortalecer a imagem do executivo. A experiência em redação ajuda na hora de enxergar uma pauta, construir uma notícia valorizando alguns dados em detrimento de outros, mas escrever para mídias sociais é bem específico”, avalia.

Mas nem todo mundo consegue recolocação tão rápida. “Saí do Portal Terra em agosto, após 7 anos na empresa, em um “passaralho” que cortou 80% da redação, cerca de 60 pessoas. De lá pra cá, fiz alguns frilas bem legais, mas que não cobrem minhas contas, estou à procura de um emprego. Fiz algumas entrevistas, mas na que cheguei mais próximo de ser contratado, a vaga foi suspensa por tempo indeterminado. Também penso seriamente em mudar de profissão, mas não sei exatamente para qual área ir, pois trabalho com jornalismo há mais de 15 anos e nunca fiz outra coisa. Estou fazendo curso na área audiovisual, todavia”, conta um editor do megaportal, que preferiu não ter a identidade revelada.

Redações enxutas, jornais fechando e outros nascendo

Nos últimos anos, além de redações cada vez menores, o país acompanhou o encerramento de jornais tradicionais, que ora deixam de circular na versão impressa e mantêm o online, ora fecham de vez. Segundo levantamento feito pela revista Meio e Mensagem, é possível apontar que ao menos nove passaram por isso desde 2009. Gazeta Mercantil, Jornal da Tarde, Diário do Povo e Jornal de Londrina encerraram atividades. Jornal do Brasil, O Estado do Paraná, Diário do Comércio, O Sul e Brasil Econômico deixaram de rodar suas versões impressas, mas continuam no online. A Editora Abril também encerrou a versão impressa de diversos títulos e vendeu outros para a Editora Caras.

A onda de demissões e o fechamento de veículos não atinge somente a mídia brasileira. Recentemente o jornal britânico The Guardian anunciou planos de cortar ao menos 250 postos de trabalho. O também inglês The Independent revelou que deixaria de circular sua versão impressa em março de 2016. O tradicional Washington Post foi vendido em 2013 para Jef Bezos, fundador da Amazon. E não são apenas os veículos impressos que encontram dificuldades. O The Daily, primeiro jornal criado para tablets, durou apenas dois anos. A publicação pertencia ao conglomerado de Rupert Murdoch. Talvez sinalize que há uma crise nos modelos de negócios, como é possível acompanhar em outra reportagem deste dossiê.

Apesar da onda de demissões e encerramentos de jornais considerados tradicionais, há aqueles que avistam novos horizontes. Muitos veículos de nicho, que defendem causas e bandeiras específicas, têm surgido. É o caso da Agência Pública, da Ponte, Aos Fatos, Fluxo, Outras Palavras, Nexo, Draft, entre outros projetos de novas mídias que tem surgido Brasil afora. 

“Acho que há um caminho para os projetos que conseguem ficar em torno de um tema, um segmento. É menos tentar reproduzir o caminho dos veículos tradicionais e mais tentar fazer seu próprio caminho, tanto em linguagem quanto em modelo de financiamento”, avalia Raquel Almeida, que trabalhou no O Globo e hoje é mestranda no Labjor/Unicamp, com o projeto de pesquisa “Novos caminhos para o jornalismo na produção independente de notícias na cibercultura”. Recentemente, a Agência Pública lançou uma plataforma com um mapeamento da mídia independente no país. Se servir de consolação, parece que o número está aumentando.