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Artigo
Drones, mediação vertical e classe alvo*
Por Lisa Parks
16/06/2016
Tradução: Carolina Neves e Marina Gomes

Com os Estados Unidos travando guerras com drones ao redor do mundo na última década, um novo mercado consumidor surgiu. Repentinamente, drones ganharam um lado mais leve e neoliberal. Usados não apenas para exploração militar e eliminação de alvos, estão sendo usados, cada vez mais, por especialistas em resgates, agentes imobiliários, grupos de produção de Hollywood, bombeiros, equipes policiais, e jornalistas. Dado esse crescimento do variado em seu uso, como podemos pensar essa tecnologia militar a partir de um ponto de vista feminista pós-estruturalista? Trariam drones a militarização ao cotidiano, por estarem infiltrados em tantos setores diferentes (policiamento, relatórios, especulação de propriedade, segurança pública, cultura midiática)? Ou seus múltiplos usos desestabilizam suas origens militares e abririam a tecnologia para novos tipos de contestações e experiências?

Apesar de décadas de pesquisas feministas na ciência, tecnologia e militarização, apenas alguns poucos artigos recém-publicados sobre drones se engajam explicitamente em epistemologias feministas. Parte crucial dessa pesquisa é baseada no trabalho teórico de Donna Haraway, destacando dinâmicas de gênero de sistemas não tripulados e as capacidades das interfaces dos drones. Mary Manjikian argumenta que drones estão mudando as construções de gênero de guerra, uma vez que os planejadores militares dos Estados Unidos os posicionam como “subordinados", como um novo tipo de ser que é dominado ou feminizado, enquanto ‘soldados ciborgues’, com aparatos tecnológicos, são apresentados como hipermasculinos.

Outros estudiosos feministas focaram nas fendas e fissuras que as tecnologias de drone criaram dentro de instituições militares. Focando na frase “não tripulado”, Lorraine Bayard de Volo diz que a “revolução dos assuntos militares” levantada pelos drones pode calibrar a dinâmica de trabalho entre gêneros no exército dos Estados Unidos, e reajustar a hierarquia masculina. Cara Daggett argumenta que “matar com drones causa desorientação”, pois rompe a dinâmica espaço-temporal que torna a guerra possível, e, no processo, rompe a reivindicação de posição e orientação masculina no exército. Por fim, o trabalho feminista na futura coleção Life in the age of drones destaca a lógica de racialização da tecnologia de drones e de guerra, por meio de análises jurídica, cultural e biopolítica.

A pesquisa feminista mencionada anteriormente faz intervenções importantes, mas a maioria das pesquisas acadêmicas sobre drones evita perspectivas feministas, seja ignorando-as por completo ou absorvendo apenas seus argumentos básicos, sem reconhecê-los. Esse é um descuido infeliz, já que os drones norte-americanos têm sido usados para fazer reconhecimento, bombardear, ferir e matar milhares de pessoas no Paquistão, Afeganistão, Iêmen, Somália, Iraque e Síria durante a última década, afetando comunidades de determinadas raças, mulheres e jovens nesses países. Como já escrevi em outra ocasião, as pessoas desses países visados já documentaram e protestaram contra dos ataques feitos pelos Estados Unidos com drones, e suas vozes circularam na internet e na mídia mundial. As guerras de drones dos EUA também incitaram a organização de mulheres ativistas chamada Codepink a adotar uma forte postura anti-drones e fundar a campanha Ground the drones (parem os drones), em 2009.

Argumentando que existe uma relação direta entre fabricação de drones nos EUA, militarização global, e assassinato de civis inocentes, ativistas Codepink fizeram atos nos quartéis-generais de fabricantes de drones, General Atomic, Northrup Grumman, Raytheon e Priora Robotics, e também para consumidores da Associação Internacional de Sistemas de Veículos Não Tripulados. Assim como essas intervenções de ativistas sugerem, separar a análise crítica de consumo de drones de seus equivalentes militares mais violentos seria problemático. Ambos se originaram em um complexo militar-industrial dos EUA, que é notório por transformar tecnologias militares em itens de consumo para o grande público, cujas vendas não apenas sustentam o futuro dos drones, militares e civis, mas também intensificam a militarização do cotidiano das pessoas.

Caren Kaplan e Rey Chow também apontaram isso em relação a outros produtos militares transformados em produtos de mercado. Em sua análise sobre o aparecimento de tecnologias de sistemas de informação geográfica (SIG) e satélites de posicionamento global (GPS), Kaplan sugere que “independentemente de servirmos ou não ao exército, ou termos como bancar as tecnologias mais recentes, residentes dos EUA são mobilizados em um modo de ser militarizado”, (em virtude da participação na sociedade estar cada vez mais estruturada por SIG e GPS).

Chow ecoa esse sentimento quando observa que “como uma condição que não é mais separada da vida cívica, a guerra foi completamente absorvida no tecido das nossas comunicações diárias – nossos canais de informação, nossa mídia de entretenimento, nosso maquinário para fala e expressão. Participamos na virtualização da guerra quando usamos – sem pensar – monitores televisivos, controles remotos, telefones celulares, câmeras digitais, palmpilots, e outros equipamentos eletrônicos que preenchem os espaços de nossas vidas”.

Para Kaplan e Chow, a militarização se mantém firme nos eletrônicos de consumo e tecnologias de comunicação historicamente feitas por organizações militares, paradigmas e contextos. Quando essas mesmas tecnologias são embaladas e compradas por bilhões de consumidores, os mandatos militares que sutilmente (não tão sutilmente) fundamentaram seu design começam a permear o cotidiano e sua atmosfera.

Essas tecnologias estruturam o modo como as pessoas se comunicam, como e com quem interagem, o que e onde ouvem e vem, e como se posicionam e compreendem sua localização. O cotidiano mediado é pontuado de inúmeras maneiras por lógicas militares e agendas, é cada vez mais difícil distinguir meios e comunicação da militarização.

Com base nessas observações, quero explorar brevemente como a utilização de drones militares pelos EUA (re)organizou a vida cotidiana em algumas partes do mundo, produzindo uma nova classe alvo, marginalizada, alvejada por meio de práticas que chamo de "mediação vertical."

No processo, argumento que a análise crítica da tecnologia de drones e utilitários de guerra precisa se estender além do reconhecimento importante de Paul Virilio, da fusão tecnológica do avião, câmera e arma, para incluir consideração mais cuidadosa dos campos verticais – recursos materiais (combustível, trabalho, terras, hardware, redes, dados, céu, órbita) e hierarquias de comando – que permitem a reestruturação aérea da vida na Terra.

Assim como é importante reconhecer como a guerra por drones é organizada por meio de sistemas de controle remoto, simulação e jogos, é igualmente importante determinar as suas dimensões em terra e corpos, as paisagens e as topografias que registram e arquivam seus usos e efeitos.

Como o uso de drones suplementa o "lado negro" da guerra contra o terror – o recorte de perfis, captura, transporte, detenção e tortura de suspeitos – com práticas de assassinato seletivo, também gerou uma nova e desprivilegiada classe alvo. Derek Gregory apontou que o âmbito admissível para "alvo" foi alargado no contexto da guerra pós-moderna, levando a um deslocamento do conceito de "civil". Eu sugeriria que essas condições também levaram ao surgimento de uma classe alvo. Em particular, habitantes do Paquistão, Iêmen e Somália, por exemplo, tornaram-se parte de uma classe alvo simplesmente porque vivem e se movem em áreas em que os suspeitos de terrorismo podem operar. Nessas áreas, toda e qualquer pessoa está em risco, e a vida diária é assombrada pelo espectro da monitorização e bombardeio aéreo.

Drones podem contornar o trabalho sujo de tortura, mas propiciam outros tipos de operações psicológicas, usando o céu para delinear e administrar zonas de vigilância e de medo, morte e destruição. Dentro deste contexto, a guerra assimétrica cria novas formas de privação de direitos para alguns e uma maior precariedade para todos. Um estudo da Brookings Institution de 2009 estima que para cada "militante" morto por um drone, havia dez ocorrências civis. Um relatório de 2010 da New America Foundation indicou que, desde 2004, 32% (cerca de um em cada três) dos mortos em ataques com drones eram civis.

Essa nova classe de alvos, desprovida de direitos, é produzida, em parte, por meio de práticas de mediação vertical. Por mediação, refiro-me não só à capacidade de sensores de drones para detectar fenômenos na superfície da Terra, para que rendam vídeos em interfaces finais, mas também para o potencial de alterar substancialmente ou afetar os fenômenos de ar, espectro, e solo. Como Sarah Kember e Joanna Zylinska, entendo a mediação como um processo que excede, em muito, a tela, e envolve a capacidade de registar a dinâmica de ocorrências dentro, sobre, ou em relação à variedade de materiais, objetos, locais, superfícies ou corpos em terra.

Conforme voa no céu, altera a composição química do ar. Como paira acima da terra, pode alterar movimentos no solo. Como projeta anúncios por alto-falantes, pode afetar pensamentos e comportamentos. E, como dispara mísseis, pode transformar casas em buracos e vida em morte. Não reduzida à exibição visual da tela, o trabalho de mediação do drone acontece extensivamente e de forma dinâmica no campo vertical – por uma vasta extensão que se estende na superfície da Terra, incluindo as camadas geológicas abaixo e ambientes construídos acima, dos domínios do espectro e o ar para os limites exteriores da órbita.

O ponto aqui é que drones não apenas flutuam acima da superfície da Terra – eles reescrevem e mudam materialmente a vida na Terra. Operações com drones moldam os locais onde as pessoas se movem e como se comunicam, quais construções permanecem e quais serão destruídas, quem deve viver e quem deve morrer. O drone é tanto uma tecnologia de inscrição quanto uma tecnologia de detecção ou representação.

Pensar em drones como tecnologia de mediação vertical também envolve reconhecer que as decisões para alvejar e matar a partir do ar são baseadas em lógicas da suspeita, especulação e incerteza. Pilotos de drone tomam decisões para atacar alvos com base em leituras de vistas distantes, em conversas com partes situadas dentro e fora da área de missão designada. Embora os alvos sejam normalmente confirmados pela inteligência no chão, muitas vezes é difícil para os decisores remotos diferenciarem "inimigos" de "amigáveis", para discernir uma arma de um pedaço de equipamento agrícola, ou para distinguir um menino de um homem, e tem havido numerosas vítimas civis e lesões resultantes de tais erros.

O que isso sugere é a necessidade de investigar mais profundamente as dimensões perceptivas de guerra de drones – para explorar e avaliar como pilotos remotos veem, o que eles sabem e quando eles agem. Apesar de drones serem sistemas automatizados, as vistas aéreas que recolhem e as bombas que deixam cair são recebidas por seres humanos em ambas as pontas. Uma crítica da mediação vertical envolve explicar os tipos de capacidades e as relações de poder que as máquinas aéreas e orbitais são utilizadas para aprovar ou mobilizar, e também permanecer atentos às limitações ou fracassos dessas tecnologias.

Em um esforço para divulgar mediações verticais por drones – a forma como a tecnologia utiliza o campo vertical nos esforços que alteram materialmente a vida na Terra – colaborei com um grupo de artistas libaneses e eslovenos (Marc Abou Farhat, Tadej Fius, Elie Mouhanna e Miha Vipotnik) para criar uma instalação multimídia intitulada Configuração Spectral. A instalação foi parte da exposição Colisões Verticais na Station Art Gallery, em Beirute, em maio de 2015.

A peça central da instalação é um corpo humano inerte, maciço, elevado, de quatro metros de comprimento, crochetado com um fino fio de alumínio. Como paira no ar, a superfície de arame desse cadáver colossal fica translúcida conforme projeções múltiplas cintilam em volta e em cima dele, feitas a partir de imagens de vídeo vazados de um complexo militar industrial dos EUA.

Essas projeções eletromagnéticas envolvem o corpo prateado (como um drone) dentro da pegada luminosa da história do mundo e da militarização, circulando por uma série de suspeitos espectrais, alvos emoldurados, e ataques aéreos que aparecem em luz visível e infravermelha.

Circunavegando a Terra em uma infinita trajetória de voo, essa "configuração espectral" não só captura e reflete ondas de calor e luz, mas muda a vida na Terra, alterando o direcionamento para o céu, a terra, e a pele.

Se, como Caplan e Chow sugeriram, tecnologias de mapeamento e de mídia estendem a militarização à vida cotidiana, então são vitais as críticas feministas, não só para expor essa militarização, mas também para fazer engenharia reversa, mesmo que simbolicamente.

Para fazer a Configuração Spectral, usamos as mesmas redes globais de informação, imagens geoespaciais, e tecnologias de captura de vídeo utilizados pelos operadores de drones norte-americanos. A diferença, no entanto, foi comandarmos esses dispositivos para conceituar e produzir uma forma e um evento para questionar a militarização do campo vertical, em microescala, e tentando fazer com que seus efeitos fossem inteligíveis e palpáveis para um público que vai além do drone de guerra.

Ao encenar a militarização do campo vertical num país próximo, ainda não submetido ao drone de guerra (Líbano), a Configuração Spectral também abordou a exploração das fronteiras e relações associativas por parte dos operadores de drones norte-americanos, e despertou preocupações sobre o uso da tecnologia na região. Dada a rápida expansão da guerra por drones na última década, como um método escolhido na guerra contra o terror, e a emergência de uma classe alvo, pesquisas e intervenções feministas nesse campo são mais cruciais do que nunca.

 

Lisa Parks é professora e ex-presidente do Departamento de Cinema e Media Studies da University of California Santa Barbara.

*O artigo original foi publicado na revista Feminist Studies 42, no. 1. 2016.