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Artigo
Maior problema do SUS é o próprio Estado, que subfinancia o sistema
Por Flávio César de Sá
10/09/2016

Desde sua criação, o Sistema Único de Saúde vem sendo subtraído dos recursos necessários para que um programa tão essencial e ambicioso possa se implantar de forma adequada e definitiva. A Constituição de 1988 indicava que 30% da contribuição da seguridade social deveria ir para a saúde, o que nunca foi cumprido. Parte dos fundos gerados pela famigerada CPMF foram desviados para outras finalidades.


“Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar.”
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948

“Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.”
Constituição da Organização Mundial da Saúde, 1946

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.”
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988

Não há dúvida de que a todo ser humano deve ser assegurado o direito à saúde. “Direito”, neste sentido, compreendido como prerrogativa universal, inerente ao ser humano como ser social, independentemente de sua origem étnica, gênero, idade, religião, afiliação política ou nacionalidade. Por ser um direito de todos, a situação financeira do cidadão não pode definir o grau do seu acesso aos cuidados necessários à manutenção da sua saúde. Assim, este direito deve ser garantido e protegido pelo Estado, o que acontece no Brasil desde a Constituição de 1988.

A garantia de acesso universal e integral à saúde foi um passo enorme na direção da construção de uma cidadania plena para os brasileiros. Antes da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), o que tínhamos no Brasil era uma colcha de retalhos formada pela assistência aos beneficiários do INPS, serviços organizados pelas diversas categorias profissionais, serviços privados e serviços filantrópicos. Havia um número muito grande de brasileiros que não tinha nenhum atendimento médico assegurado e eram atendidos como indigentes nos hospitais filantrópicos e conveniados com a Previdência Social. Em 1986, o movimento conhecido como “Reforma Sanitária” culminou, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, com a proposta de criação de um sistema nacional de saúde, que se consolidou na Constituição de 1988 e na criação do SUS.

A necessária garantia do Estado ao direito à saúde é reconhecida mundialmente. Reino Unido, Canadá, Espanha, França, Itália, Áustria, Japão, para citar alguns, oferecem aos seus cidadãos acesso integral à saúde. A grande exceção entre as maiores economias do mundo são os Estados Unidos, cujo sistema de saúde é baseado no seguro privado e que é, reconhecidamente, um dos sistemas mais caros e menos eficientes do mundo. A mais recente tentativa de aumentar a cobertura do sistema, o Affordable Care Act, conhecido por “Obamacare”, conseguiu incluir cerca de 9,5 milhões de americanos, deixando ainda descobertos cerca de 48 milhões de cidadãos, não contados aqui os cerca de 12 milhões de imigrantes não documentados, que formam parte significativa da força de trabalho daquele país.

Quando falamos em acesso universal, integral e equânime à saúde, não falamos apenas em assistência médica, a porção mais visível do sistema. Estamos falando de tudo que envolve esse conceito, definido não apenas como a ausência de doença, mas como um estado de bem-estar físico, mental e social, como proposto pela Organização Mundial da Saúde. E eu acrescentaria ainda o bem-estar espiritual, dimensão também constitutiva do ser humano. Assim, são obrigações do Estado também, entre outras, o saneamento básico, vacinação, controle de epidemias e endemias, vigilância sanitária, controle e, eventualmente, produção de medicamentos essenciais, fiscalização sobre o uso de agrotóxicos e pesticidas, produção e consumo de alimentos transgênicos, cuidados éticos com as pesquisas envolvendo seres humanos e animais. Tudo isso é parte do Sistema Único de Saúde. E o Brasil tem tido enormes sucessos nessas atividades sempre esquecidas quando falamos do SUS. Para citar dois exemplos dessas ações pouco visíveis do sistema, tivemos um sucesso enorme na erradicação da poliomielite e do sarampo, através de bem-sucedidas campanhas de vacinação, apesar da dificuldade logística de manutenção das vacinas que devem ser refrigeradas e da aplicação em áreas de baixa densidade populacional e da necessidade da manutenção permanente de altos níveis de cobertura vacinal. Nossa vigilância sanitária foi importante para que atingíssemos um alto nível de qualidade na produção agropecuária, o que nos tornou o terceiro maior país produtor e exportador desses produtos no mundo.

A face mais visível e mais criticada do SUS é a assistência médica. Todos os dias, vemos reportagens sobre as filas para atendimento, demora na marcação de consultas e cirurgias, pessoas que morrem esperando por uma vaga. Mas mesmo na assistência médica, o SUS tem conseguido avanços e vitórias. O programa de controle do HIV/Aids do Brasil é modelo para todo o mundo e foi capaz de evitar uma potencial catástrofe, que se desenhava no início dos anos 1990. O programa da Farmácia Popular entrega milhões de doses de medicamentos essenciais para o tratamento de diabetes, hipertensão e asma. Medicamentos de alto custo estão acessíveis para milhares de pessoas em todo o país. Tratamentos de alto custo, como hemodiálise, transplantes, cirurgia cardíaca, quimio e radioterapia para pacientes com câncer, são oferecidos diariamente a milhares de brasileiros. Aliás, esses tratamentos de alto custo são frequentemente feitos no SUS por portadores de seguros de saúde, já que muitos planos cobrem apenas consultas, exames laboratoriais e tratamentos de baixo custo.

O maior problema do SUS, porém, é o próprio Estado que assume o dever de garantir a saúde. Desde sua criação, o SUS vem sendo subtraído do necessário financiamento para que um programa tão essencial e ambicioso possa se implantar de forma adequada e definitiva. A Constituição de 1988 indicava que 30% da contribuição da seguridade social deveria ir para a saúde, o que nunca foi cumprido. Parte dos fundos gerados pela famigerada CPMF foram desviados para outras finalidades que não o SUS (principalmente pagamento das dívidas interna e externa) e o orçamento federal para a saúde à época foi diminuído, fazendo com que a CPMF acabasse se tornando uma fonte substitutiva e não um acréscimo no orçamento. O Estado brasileiro oferece subsídios e financiamento para seguradoras e hospitais privados, dinheiro que poderia ser investido no aprimoramento do sistema. O Ministério da Saúde tem hoje menos de 50% do que teria se as determinações da Constituição de 1988 tivessem sido cumpridas. A PEC 241, proposta pelo governo Temer, que prevê o congelamento dos gastos, se aprovada, representará uma perda de mais de R$ 4 bilhões para o SUS já em 2017 (dados do Conselho Nacional de Saúde, órgão do Ministério da Saúde).

Esse crônico subfinanciamento do sistema pelo próprio Estado, que teria o dever de garanti-lo, aponta na direção da construção de um outro modelo de sistema de saúde, fortemente baseado no setor privado, que desrespeita o princípio ético básico de que saúde é um direito fundamental.

Assim, voltamos ao início deste texto: garantir o acesso universal, integral e com equidade à saúde é um imperativo ético, se acreditamos que saúde é um direito fundamental das pessoas. No Brasil, a forma escolhida pelos cidadãos, expressa na Constituição, de assegurar esse direito é a sua garantia pelo Estado. Vivemos, porém, uma época em que imperativos éticos não têm guiado os poderes constitucionais. É preciso cobrar o Estado para que cumpra este preceito e não permitir que a aparente fragilidade do SUS faça o governo cogitar propostas como a dos “planos populares de saúde”, que apenas beneficiam os empresários da saúde suplementar.

Se receber o financiamento adequado, o SUS poderá também oferecer uma assistência médica à altura do que o cidadão merece, comparável à dos outros setores em que o sistema já demonstrou sua capacidade e excelência.

Flávio César de Sá é graduado em medicina pela Unicamp (1980). Fez residência médica em infectologia (1983), doutorado em saúde coletiva pela Unicamp (1996) e pós-doutorado na área de bioética clínica na Universidade Cornell, Nova York, EUA (2013/14). É professor doutor da Unicamp na Faculdade de Ciências Médicas, Departamento de Saúde Coletiva, onde coordena a Área de Ética e Saúde.