REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Somos uma gente que semeia e cria. Palavras sobre as culturas e os saberes da gente do campo*
Por Carlos Rodrigues Brandão
10/10/2016

Somos uma gente que semeia e cria!

Somos os homens e as mulheres

que aram em agosto e semeiam em setembro,

o que em março o sol e a terra ofertam como fruto.

Somos uma gente da terra e cor da terra

que à noite apaga o fogo do fogão

e dorme cedo, quando se calam os passarinhos

para que antes do sol da manhã um outro dia

nos encontre de pé a caminho da roça,

com o chapéu de palha na cabeça

e a enxada polida de suor nas mãos.

 

Colhemos com as mãos e não com máquinas

tudo o que depois alimenta os nossos corpos

e o corpo branco das gentes da cidade.

Os que comem do que nós colhemos

e imaginam que o que é fruto de nosso trabalho

nasce pronto no mercado dos donos que enriquecem

multiplicando por quatro o valor do que sai de nossas mãos.

Nós, os que regamos a muda o que colhemos o grão

com o suor do corpo curvado sobre a terra.

 

A um deus de quem aprendemos a esperar o bem

mesmo quando a seca seca o rosto do sertão,

dizemos entre contas nos dedos as nossas preces

em noites de chuva e dias de sol,

em tempos de lavrar e em dias de colher.

 

Somos as mulheres e os homens

do campo e do mar, dos rios e das florestas

e da caatinga verde e do cerrado das águas.

Somos de onde os que chegam de longe

e buscam nas paragens onde vivemos

apenas o azul da paisagem

a beleza turista e calma do campo

e o prazer pitoresco da "roça"

passam e sequer param para nos ver de perto.

E quando nos encontram acaso na beira da estrada

eles se espantam de haver "ali",

calçados de botinas ou de alpercatas

uma gente da terra, salpicada de barro.


E alguns, pedem a nossos corpos fatigados

e tingidos da cor ocre a poder do sol

que façam uma pose de "povo pitoresco".

E nos enquadram e disparam fotos

e seqüestram imagens de uma gente

a quem não perguntam o nome

e de quem nem importam a vida e o destino.

imagens de uma "gente-da-roça"

que em suas casas eles exibem aos outros

como se, entre os outros do campo,

fôssemos os mais curiosos animais do sertão.


Somos uma gente de muitos nomes:

camponeses, lavradores, agricultores

seringueiros, extrativistas, castanheiros

sertanejos, quilombolas, caipiras

geralistas, chapadeiros, beradeiros

barranqueiros, caiçaras, pescadores.

Mas entre tantos nomes, somos uma gente só.

Aquela que com o trabalho dos dias e a toada da vida

arranca da terra, das árvores e das águas

como quem  faz nascer a cada ano um filho,

a seiva da vida, a comida na mesa

o alimento dos dias, a fibra da roupa

a madeira da casa, o fruto e o pão.

 

Bem mais do que imaginam

os que longe do campo se alimentam

do fruto de nossas dores e suores,

somos aqueles que em nome

do que há de mais humano na vida

entre uma geração e a outra

aprendemos a cuidar da terra

e como ela reverdecer o mundo.

 

Desde quando eles chegaram, vindos de longe

resistimos ao poder do mal e dos seus terrores.

Pois somos mais uma outra geração

das gentes que depois de semearem

entre os avós e o netos e os filhos dos netos

a mesma terra, com as mesmas águas,

foram dela expulsos a poder de enganos.

 

E pela estrada saímos em busca do lugar

onde estamos, mas não as nossas raízes.

Lá entre terras de onde tiramos com a alma e as mãos

o milho e a mandioca, o arroz e o feijão,

os donos das terras que eram nossas

espalham agora a poder de máquina e ganância

o gado e o deserto, a soja e o desamparo,

a cana e tudo o que deixou de ser dom da terra

para ser o produto da mercadoria do dinheiro.

 

Mas nós, expulsos da terra e lutando por ela,

cercados entre o rio e o arame farpado,

nós, as gentes do campo, bem sabemos

o que eles não sabem ou esqueceram:

"Quando a última árvore for abatida,

quando a última terra for desertada,

quando o último fruto for colhido,

quando a última fonte for secada

quando o último peixe for comido,

os senhores da terra saberão

que o lucro não sacia a sede

e nem o dinheiro não se come".

 

Os saberes que aprendemos e sabemos

são bem mais do que as nossas ciências.

Ao logo dos séculos eles são a nossa sabedoria:

o saber do plantar, do criar,

do conhecer o tempo e dizer a poesia.

Entre uma geração e outra, entre homens e mulheres

partilhamos ao redor do fogão aceso,

em volta da mesa pobre de uma casa honrada

ou no círculo do trabalho enquanto se amanha a terra,

tanto o ensino do cuidar da lavoura

quanto o de tratar da safra dos filhos e das filhas.

E os nomes dos lugares e os segredos da vida,

e os ponteios da viola e os saberes dos ditos

que são a nossa cartilha e o dicionário,

e mais a memória não-escrita de quem somos

de quem viemos e de onde estamos e vivemos.

O que as gentes letradas da cidade

imaginam ser o "saber dos que nada sabem"

ou o conhecimento inútil do "caipira"

é a nossa sabedoria ancestral do campo.

Com ela alimentamos os doutores,

povoamos de bens a mesa dos maus

e falamos a um Deus que eles desconhecem,

pois a muito esqueceram o dom da troca,

a gratuidade da partilha e a vida solidária

em nome do desejo do ganho e do lucro

e, solitários, longe do amor, adoram o dinheiro.

 

Com a sabedoria das culturas que nossos antigos criaram

e nossos filhos recriam com os mesmos e outros gestos e  nomes

perdemos a conta dos anos em que a gente do campo

espalha pela Terra e a terra as sementes do bem.

Trabalhamos com as nossas mãos e as nossas mentes

o corpo da terra como uma mãe de todos.

Aquela que nos acolhe como filhos

e em silêncio nos espera a cada dia,

para que com o que aprendemos e fazemos

colhamos de seu ventre a seiva da vida.

 

Com o que aprendemos a saber

lavramos outras culturas que não o milho e o feijão.

Juntos criamos entre rimas os nossos cantos

entre o coco, o cordel e a moda de viola,

os bois-de-janeiro, as congadas e os reisados.

E inventamos as danças que à noite

bailam os netos, as filhas e as avós.

Nossa arte ancestral é para nós o canto e a prece

de uma vida camponesa que desde um tempo

anterior ao arame da cerca, ao trator e à ceifadeira

nós sabíamos e seguimos sabendo viver,

como a prece da rezadeira, o ritual da parteira,

o dizer do curador, o cantorio do cantador,

e os gestos coletivos do rito e o festar da festa.

 

E tudo isto e tão mais, tanto mais

é apenas a face festiva e festeira de quem somos.

Porque lá bem no fundo de nós e nossa gente

somos as mulheres e os homens

que cedo aprenderam a viver e a partilhar

a lei do amor, a ética do trabalho,

os costumes a honra e os preceitos da vida.

 

Somos os que sabem, sem o saber da escola

a sermos ao mesmo tempo serenos e guerreiros.

Por isso mesmo, expulsos e subjugados,

cercados no campo ou exilados na cidade

como nunca, como sempre, estamos de pé.

 

Estamos de pé e com os olhos no agora e no horizonte

não somente semeamos, resistimos.

Não apenas colhemos, nós lutamos.

Não apenas esperamos, nós agimos.

Porque mais do que ontem, mais do que nunca

somos uma gente da terra e do campo,

as mulheres e os homens, os jovens, adultos e velhos

que entre o milho e a mandioca semeamos também

a luta pela terra e a vida dos seres da Terra e da vida

Como seres que sabem o saber dos que semeiam a vida,

com a sabedoria que é nossa desvendamos os segredos do tempo,

e ao olhar o vento e o voo dos pássaros

aprendemos a conhecer os rumos do hoje e do amanhã.

 

Por isto, oprimidos, expulsos e explorados

somos uma gente de pé e vivemos da luta e da esperança,

pois não construímos apenas casas e nem semeamos milho.

Nós semeamos agora a lavoura do mundo de amanhã.

Nós espalhamos pela Terra a lenta e persistente luta

para que algum dia não muito longe

o mundo de todas as pessoas livres da Terra

seja a colheita da justiça, da igualdade, da liberdade

e do amor entre todos e todas, sem senhores e servos,

Em um tempo fraterno e solidário

em que o mundo inteiro venha a ser

o que foi e sonha ser o Mundo da Gente da Terra.

Carlos Rodrigues Brandão é professor colaborador do programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp e professor colaborador do POSGEO da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Escreveu artigos e livros nas áreas de antropologia, educação e literatura.

*Escrito a mão em um caderno, de improviso, em Salvador, Bahia - entre 1 e 3 de setembro de 2014 durante o IV Seminário de Educação do Campo e Contemporaneidade Campesinato, Culturas e Educação. Revisto precariamente em Campinas, em 5 de setembro do mesmo ano. Usos devidos, cópias, e até mesmo desejadas melhoras neste improviso podem sem feitas à vontade, sem necessidade de pedido de autorização.