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Propondo uma outra agricultura: a agroecologia como caminho
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Propondo uma outra agricultura: a agroecologia como caminho
Por Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco
10/10/2016

Afirmar que a agricultura brasileira já atingiu seu desenvolvimento através dos indicadores de desempenho econômico é considerar o meio rural apenas como um espaço de produção. Ao lado da grande expansão da produção agrícola registrou-se grande desfavorecimento de enorme quantidade de camponeses, índios e outras comunidades etnicamente diferenciadas em termos econômicos e culturais, além de enorme dívida ambiental. 

Parece haver consenso entre diversos setores da nossa sociedade de que a agricultura brasileira já atingiu seu auge: alta produção e produtividade, grande participação nas pautas de exportação, enorme incremento tecnológico, processos de industrialização etc. Enfim, a grande expansão da economia capitalista no campo. Olhar para esses resultados de forma linear significa assumir uma concepção interpretativa que associa mecanicamente o desempenho econômico de um determinado setor à ideia de eficiência. Significa ignorar toda a diversidade do “mundo rural brasileiro”, desconsiderando a existência de uma ruralidade multifacetária que torna o mundo rural um espaço ímpar de desenvolvimento. Afirmar que a agricultura brasileira já atingiu seu desenvolvimento através dos indicadores acima apontados, ou seja, de indicadores de desempenho econômico e setorial é considerar o meio rural brasileiro apenas como um espaço de produção agrícola (Mattei, 2014/2015).

Além disso, não se pode ignorar as mazelas advindas do intenso processo de desenvolvimento das forças produtivas capitalistas que, par e passo a essa alta eficiência em termos de produção e produtividade, deixou fora regiões, produtos e agricultores, o que lhe atribuiu o título de “modernização conservadora” da agricultura. Ao lado da grande expansão da produção agrícola, resultante da intensificação das relações entre agricultura e indústria, do incremento no uso de insumos e agrotóxicos, da mecanização e da inserção no mercado capitalista globalizado, advindos da chamada “revolução verde”, registrou-se um grande desfavorecimento de uma enorme quantidade de agricultores familiares (camponeses, índios e outras comunidade etnicamente diferenciadas) em termos econômicos e culturais.

Deve-se acrescentar a esses fatos uma enorme dívida ambiental, visto que os processos produtivos homogeneizadores, por meio dos monocultivos, quebram as cadeias agroecossistêmicas. E, em nome de eficiência produtiva, deixam de lado um problema crucial das sociedades contemporâneas: o desequilíbrio ambiental, com mudanças climáticas, compactação e deterioração dos solos, contaminação dos mananciais e problemas na saúde humana resultantes do alto uso de agrotóxicos.

É nesse contexto que diversos autores colocam a origem da agroecologia. Sevilla Guzman (2011) mostra o potencial do campesinato e das comunidades indígenas na luta por superar o capitalismo a partir da agroecologia. Faz uma crítica contundente às teorias do determinismo econômico, que indicavam a necessidade da industrialização da agricultura e anunciavam o desaparecimento do campesinato, colocando-o como uma classe residual. Em contraposição a essa concepção, o autor trabalha com o campesinato como categoria social que guarda relações e dimensões de resistência ao desenvolvimento capitalista.

A agroecologia passa a ser entendida como um processo histórico no campo, integrando teoria e prática e, com isso, construindo diferentes dimensões que poderão contribuir com a transformação da sociedade. A agroecologia, ainda segundo o autor, passaria pela história de resistência dos setores oprimidos do campo e da cidade, revelando um papel de inventividade e resistência. Trata-se de uma postura ativa na história da luta contra a opressão. Foi com base nesse referencial que Mazalla (2015) desenvolveu uma importante reflexão sobre agroecologia em uma perspectiva de transformação social, afirmando que é nessa experiência histórica de resistência e busca pela libertação das relações de dominação a que os agricultores mais pobres, o campesinato e os indígenas foram submetidos que se pode registrar o surgimento de um manejo específico de recursos naturais, além de um conjunto de técnicas ecológicas ressignificadas.

Assim, um dos principais estímulos ao surgimento da agroecologia seria a tentativa de oferecer uma contraposição ao processo de modernização da agricultura. A dinâmica da produção diversificada, combinando autoconsumo com a venda de excedentes, foi substituída pela lógica da produtividade intensiva. Intensificar a produção, utilizar ao máximo os recursos naturais (solo, água etc.) até seus limites, constitui-se no êxito da produção capitalizada no campo. Biase e Donato (2015 p.4) afirmam que “as diferentes técnicas de manejo do solo e da diversidade de sementes ficaram impotentes diante da combinação: sementes geneticamente selecionadas, híbridas e transgênicas, maquinários, fertilizantes químicos e agrotóxicos”.

Em outras palavras, esse pacote da “revolução verde” inviabilizou a permanência de uma diversidade de técnicas e de produtos agrícolas. No entanto não conseguiu, apesar de seu poder homogeneizante, inserir agricultores familiares, camponeses ou aqueles etnicamente diferenciados, na lógica capitalista de produção. Na verdade, assistiu-se a um processo de permanência e resistência desses segmentos da agricultura, apesar de tê-los submetido a um processo de pauperização, afetando sobremaneira “a relativa autonomia que possuíam”.

Em síntese, essas agriculturas primam pela diversidade de seus agroecossistemas, em contraposição à artificialização e simplificação, características peculiares nos sistemas industriais de cultivo. O estabelecimento dessas contradições entre as chamadas agriculturas “tradicionais” e “modernas” é responsável pelo desenvolvimento da agroecologia, tornando-se uma alternativa para a sustentabilidade. Isso significa que a agroecologia, concebida como um novo paradigma, tem seu objetivo fundamental na busca de um equilíbrio dinâmico que promova a sustentabilidade. Isso pode se dar através da adoção da prática de uma agricultura não agressiva aos recursos naturais e à natureza, ajustada às demandas sociais, econômicas e culturais, solidamente vinculadas aos princípios da solidariedade através da ética participativa de seus sujeitos (Fidelis, 2015).

Assim, “a agroecologia busca reconstruir uma agricultura sustentável capaz tanto de minimizar os efeitos devastadores da crise ambiental em que vivemos quanto de possibilitar a reorganização desses povos em torno de suas próprias práticas agrícolas, econômicas e socioculturais, em busca de autonomia, segurança alimentar e dignidade” (Biase e Donato, s/d).            

As diferentes abordagens da agroecologia

Pairam ainda sobre a agroecologia algumas confusões conceituais, embora não se possa negar a complementariedade de suas abordagens. Partindo do debate de sua epistemologia, Borsatto (2011) defende sua consolidação enquanto um campo acadêmico e aponta sua perspectiva militante sem negar que pode ser considerada uma prática, um movimento e uma ciência (Wezel, 2009).

A agroecologia se encontra na junção da ecologia e da agronomia em seus fundamentos teóricos e práticos. Na relação entre as duas ciências e nas experiências vivenciadas com populações rurais desfavorecidas, Gliessman (2001) vislumbra a possibilidade de uma agricultura menos agressiva ao meio ambiente. A valorização do “saber local” pelos cientistas naturais abriu caminho para a agroecologia em paralelo ao conhecimento científico. O foco principal da abordagem de Gliessman é a dimensão ecológica através das referências teóricas da ecologia de ecossistemas, tanto em seus aspectos ecológicos como socioeconômicos e culturais.

Altieri (2001), um dos grandes divulgadores da agroecologia na América Latina, a concebe como uma contra-estratégia de autonomia e desenvolvimento econômico sustentável para os(as) agricultores(as) pobres frente ao modelo hegemônico de produção agrícola. A agroecologia é para esse autor uma ciência que promove o desenvolvimento sustentável. Assim, concebe a agroecologia como uma “disciplina científica que enfoca o estudo da agricultura sob uma perspectiva ecológica e com um marco teórico cuja finalidade é analisar os processos agrícolas de forma abrangente. O enfoque agroecológico considera os ecossistemas agrícolas como unidades fundamentais de estudo; e nesses sistemas, os ciclos minerais, as transformações de energia, os processos biológicos e as relações socioeconômicas são investigadas e analisadas como um todo” (Altieri e Nicholls, 1989 p.26).

Para Altieri (2001) somente um conhecimento aprofundado da ecologia humana dos sistemas agrícolas pode resultar em medidas coerentes com uma agricultura realmente sustentável. O autor fundamenta suas reflexões no estudo das “etnociências”. É através delas que se dá o acesso aos conhecimentos tradicionais sobre o manejo da agricultura. É através desse conhecimento que se obtêm informações importantes que podem ser utilizadas no desenvolvimento de estratégias agrícolas apropriadas às necessidades de grupos específicos de agricultores e de agroecossistemas regionais.

Partindo-se da concepção teórica de Sevilla Guzmán, é possível compreender a agroecologia como uma ciência do campo da complexidade, ou um novo paradigma científico fundamentado na interdisciplinaridade, num enfoque holístico e em uma abordagem sistêmica (Caporal, 2009).

Altieri e Toledo (2011) afirmam que as iniciativas agroecológicas buscam superar os sistemas de produção agroindustrial de biocombustíveis e cultivos de exportação, estabelecendo as bases da agricultura local para produção de alimentos por camponeses e agricultores familiares a partir dos recursos naturais locais.

A agroecologia não pode ser concebida como um tipo de agricultura, como um sistema de produção e muito menos como uma tecnologia agrícola. Mais do que um modelo de agricultura de base ecológica, a agroecologia aborda a organização social, o comportamento econômico e uma postura política que venha contribuir com as transformações sociais necessárias para gerar padrões de produção e de consumo mais sustentáveis e equitativos (Mazalla, 2014).

Um alerta

Apesar de toda essa construção teórico-científica sobre a agroecologia, antes de finalizar essas reflexões, torna-se de fundamental importância deixar um alerta sobre a falta de centralidade que vem se registrando nos debates acadêmicos mais recentes.

Tem-se assistido a uma deterioração dos princípios agroecológicos, algumas vezes tomados como pacotes tecnológicos verdes que, ao invés de fortalecer os processos a partir dos conhecimentos locais, acabam por trilhar os mesmos caminhos da agronomia tradicional.

Nesse sentido, há que se ter muito cuidado na abordagem e na prática da agroecologia, retomando a centralidade de suas concepções, seu caráter transformador, a organização camponesa das bases produtivas e culturais da vida no campo e em sua relação com a natureza. Assim, é importante não perder de vista sua complexidade, ao resgatar elementos da realidade de forma pluridisciplinar, mas também seu caráter simplificador consubstanciado nas relações do homem com a natureza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Altieri M.; Toledo, V. M. “La revolución agroecológica en Latinoamérica”, Sociedad Científica Latinoamericana de Agroecología (Socla), 2011.

Altieri, M. Agroecologia: As bases científicas da agricultura alternativa. Tradução de Patrícia Vaz. Rio de Janeiro, PTA/FASE, 1989.

Biase L.; Donato R. “Na encruzilhada dos saberes e práticas: inserções antropológicas sobre estranhamento e alteridade no interior da agroecologia”. Revista Brasileira de Agroecologia v 7(2): 3-18 (2012).


Borsatto, R.S. “A agroecologia e sua apropriação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e assentados da reforma agrária”. 2011. 298f. Tese de doutorado em engenharia agrícola. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2011.

 

Fidelis, L. M. “Família, trabalho e terra: sementes da autonomia em comunidades do Vale do Ribeira paranaense”. Unicamp, 2015, 236p.

Gliessman, S.R. “Agroecologia: procesos ecológicos en agricultura sostenible”. Turrialba: CATIE, 2002.  

Mazalla Neto. W. “Agroecologia e movimentos sociais: entre o debate teórico e sua construção pelos agricultores camponeses”. 2014. 228f. Tese de doutorado em engenharia agrícola, Unicamp, 2014.

Sevilla Guzmán, E.  “Sobre los orígenes da la agroecología en el pensamiento marxista y libertario”. La Paz, Bolivia: Agruco/Plural Editores/CDE/NCCR, 2011.

 

Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco é professora titular da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Feagri/Unicamp), bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq e bolsista Capes (PVNS) na UFSCar, campus de Araras. E-mail: sonia@feagri.unicamp.br.