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Artigo
No escurinho do cinema: (des)entrelaçando vidas além das telas e a constituição de (inter)subjetividades
Por Adriane Roso, Luiza Elesbão Sbrissa e Daiana Schneider Vieira
09/11/2016

Até a virada do século 21, para os jovens e adultos, o cinema parecia ter um sabor, um tempero, um cheiro, um perfume. Havia o dia do cinema. Ou era sábado ou domingo, mas sempre era dia especial. A fila se formava longa na calçada aventura-interação e, já ali, naquele instante, o filme começava. Pois a experiência do cinema não era apenas uma projeção na tela; começava na fila, na bilheteria, a partir da busca pelo olhar de uma possível paixão. O toque dos olhares na mesma tela formaria a ligação primeira com aquela pessoa especial – uma ligação intersubjetiva imaginada como eterna tal qual o efeito da história que estaríamos prestes a assistir. Um cinema entrelaçando vidas.

Nesse caminhar ao longo da fila, sujeitos-perfis se constituíam, ou tomando emprestado o pensamento de Suely Rolniki, formava-se “um modo de ser - de pensar, de agir, de sonhar, de amar etc. - que recortava o espaço, formando um interior” (eu/sujeito-perfil) “e um exterior” (outro/s e o cinema). Nesse perfil, se encontrava “uma superfície compacta e uma certa quietude, uma ideia de perfil imutável, assim como o interior e o exterior que ele separa”. Mas à medida que as pessoas entravam na sala do cinema, esse processo de constituição de subjetividade ia se modificando.

O filme poderia ser ruim, chato, empolgante, assustador ou belo. O que importava era o efeito – sob muitos aspectos inconscientes – de tudo aquilo (sala, tela, pessoas, atores, narrativas, imagens etc) na (inter)subjetividade. Então, as luzes se apagavam, e logo se ouvia a clássica música tema do canal 100 “Na cadência do samba (Que bonito é)”ii preparando os espíritos sedentos e curiosos para o desconhecido que se apresentaria. O coração pulsava de tanta emoção, como se as pessoas se preparassem para qualquer coisa que viesse a partir dessa musicalidade tão brasileira. Sentiam-se fortes, uma nação unida mesmo que viessem vozes estrangeiras. Depois de uma tática para suavizar a entrada de outras culturas, o filme começava. E cada um a seu modo, “no escurinho do cinema, chupando drops de anis, longe de qualquer problema, perto de um final feliz”iii, cada um se (re)construía, se produzindo sujeito na poltrona de madeira sem sentir o corpo, a pele... o olhar se fixa na tela e o olho absorve o afeto imagético; ele é “tocado pela força do que vê”iv na tela.

Concentração total; apenas o lanterninha sinalizando para a existência do mundo paralelo que se desejava pôr em suspenso. Naquele instante, importava apenas o filme e esse é que fazia a vida acontecer por meio de “olhos vibráteis”, para recorrer à expressão cunhada por Rolnik. Esses possibilitam a entrada no íntimo das palavras, sons e imagens, provocando um embate entre o eu e o cinema. Tornamos-nos “indissociáveis e, paradoxalmente, inconciliáveis: o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro. ... O dentro é uma desintensificação do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente ...; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile”v – não seremos mais os mesmo a partir do momento que nos deixamos tocar pelo cinema.

Do mesmo modo que pensou o filósofo Alain Badiouvi, o cinema desempenha um lugar essencial na nossa existência e no aprendizado da vida, das ideias. Badiou, ao conceder uma entrevista ao escritor e crítico de cinema Antoine de Baecque, argumenta que há algo sobre a relação do cinema com o mundo que nos educa e instrui em um modo singular. Simplesmente assistindo filmes, nós podemos aprender sobre a geografia de alguns países, sobre idiomas estrangeiros e sobre algumas situações sociais que são, ao mesmo tempo, específicas e completamente universais; sobrepondo passado, presente e futuro enquanto campo de possibilidades. Do filme mudo, preto e branco, ao filme repleto de efeitos especiais, todos eles mantêm sempre uma significância, pois se reatualizam a cada época e a cada vez que são assistidos através da interação conosco, os expectadores, ou melhor dizendo, o filme só se completa nessa interação. Expectadores, pois temos sempre expectativas e posição ativa no mundo e frente às telas.

Mais do que paixão, para nós o cinema constitui-se como co-participante do nosso viver, um teletransporte fantástico que nos insere, se nos permitirmos, nas brechas das existências, nos territórios mais inimagináveis, na relação com as pessoas. A experiência cinematográfica só adquire sentido, nessas relações, à medida que compartilhamos direta ou indiretamente o experimentado com o outro, com aqueles que estão a nossa volta – seja na sala de cinema ou em qualquer outro espaço cotidiano - e que farão ressignificá-la.

Com certeza, não é possível demarcar claramente qual a “culpa” do cinema nas nossas ações, pensamentos e na construção de representações sociaisvii acerca do mundo, das coisas, dos seres vivos. Depois que as histórias assistidas (vividas!) entram na nossa memória, não somos capazes de delinear bordas entre o que vem de fora (sociedade) e o que vem de dentro (desejos, sonhos, subjetividade). Afinal, o cinema se faz na dialogicidade entre o sujeito, a outra pessoa e o mundo. A vida pós-cinema, “não é mais ficção e realidade. A vida é reality”.viii

Talvez nenhum filme ilustre isso tão bem quanto Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen (1985).ix Ambientado nos EUA durante a depressão na década de 1930, conta a história de uma mulher chamada Cecília (representada por Mia Farrow) que vive infeliz no trabalho e com seu marido Monk, (interpretado por Danny Aiello) desempregado, alcoolista e infiel. Cecília começa a frequentar o cinema, assistindo sempre o mesmo filme. A certa altura, o personagem do filme assistido por Cecília, Tom Baxter (representado por Jeff Daniels), sai da tela do cinema para viver uma história de amor com ela. Em seguida, o ator que interpreta Tom também aparece na vida de Cecília e se apaixona por ela. Os dois disputam o amor dela: “- Eu sou honesto, confiante, corajoso e romântico”, diz o personagem que saiu da tela; “- E eu sou de verdade”, diz o outro. Cecília realiza, então, um de seus desejos – ser amada, mas não sem conflitos, sem culpa, já que sua fantasia não aniquila o contato com a sua realidade.

Por outro lado, a história vivida por Cecília por meio da fonte fílmica reforça um ideal de amor romântico, difundido historicamente, criando um duplo movimento, nem sempre nítido: o consumo de cinema como alienação e “poderoso instrumento de difusão ideológica”x quando a personagem encontra na ficção um modo de fugir do enfrentamento a uma vida sofrida, a partir de um ideal de amor (Cecília + Tom). Este consumo pode ser visto também como resistência a uma relação de dominação (Cecília x Monk), que expressa relações de poder que são estabelecidas de forma sistematicamente assimétricasxi.

Há, sem dúvida, uma homologia entre o que se passa nos filmes e o que fazemos com nossas vidas, ele é um canal de mão-dupla: pode tanto contribuir para a alienação, subjetivação ou para a invenção de vida. Isto porque o cinema não afeta todos da mesma forma visto que, avisam Guattari e Rolnikxii: o modo como cada um vive a subjetividade, oscila entre uma relação de alienação e opressão - no qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como recebe, ou, uma relação de expressão e de criação no qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade produzindo um processo chamado singularização. Todavia, pensamos, na tela, assim como na “vida real” alienação/opressão, resistência/singularização não são processos separados, dicotômicos, mas são fáceis de serem confundidos; são fluídos, rizomados.

Nos dias atuais, outras relações (materiais e simbólicas) com o cinema se anunciam, tais como o modo cinema-sofá, quando os filmes são assistidos na “proteção” e individualidade de cada casa, com o apoio dos aparatos tecnológicos digitais e dos filmes via streaming; o modo cinema-consumo, que acontece em salas de cinemas localizadas em shopping centers, cujo valor dos ingressos torna a experiência elitista e, portanto, excludente. Em ambos os modos há geralmente um cardápio prêt-à-porter a ser consumido com pouca resistência e que está espalhado mundialmente; e, ainda, o modo cinema-crítico, quando a crítica sobre as relações de dominação predomina no conteúdo cinematográfico e são produzidas fora do mainstream hollywoodiano, onde pode ser incluído alguns filmes populares e alternativos como os do cinema periférico de bordas.xiii

Os efeitos psicossociais dessas relações ainda são pouco estudados. Sim. Aprendemos com o cinema. Representações de mundo são transformadas pelo e com o cinema, mas que subjetividades e intersubjetividades são constituídas a partir daí? Quando os olhares já não se buscam e se encontram na intensidade das filas e bilheterias de “antigamente”, será preciso muita sensibilidade e flexibilidade para manter os olhos vibráteis. “Quem somos nós? O que desejamos? O que fazer com o que se assiste? O que fazemos com o que fazem de nós?”, são questões que persistem. No processo de análise crítica construtiva do cinema e na própria produção de narrativas fílmicas, a compreensão sobre a constituição de subjetividades e intersubjetividades precisará ser tecida levando em conta representações, afetos, desejos, ideologias, interesses mercadológicos, resistências e tecnologias, sempre sob uma ótica inter-relacional, transdisciplinar e polidiscursiva. A sessão está aberta para quem quiser entrelaçar vidas e rizomar, mas será preciso buscar outros modos para além do cinema-sofá/consumo!


Adriane Roso é doutora em psicologia (PUCRS). Pós-doutora em comunicação (UFSM). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Professora adjunta da graduação e pós-graduação em psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: psicosocial.ufsm@gmail.com

Luiza Elesbão Sbrissa é psicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista Capes. E-mail: luizasbrissa@gmail.com

Daiana Schneider Vieira é psicóloga. Especialista em saúde coletiva. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Coordenadora do Creas Jaguari, RS. E-mail: daianaschneidervieira@gmail.com.


Referências


i Rolnik, S. “Uma insólita viagem à subjetividade fronteiras com a ética e a cultura”. In: Psicologia, Ética e Cultura palestra. 1°Congresso Mineiro de Psicologia ‘Universo-Diverso’. Belo Horizonte, 14/09/95. p.1-11. Disponível em: http://www.caosmose.net/suelyrolnik/pdf/sujeticabourdieu.pdf

ii Gomes, W. C. Na cadência do samba (Que bonito é). (compositor: Luiz Bandeira). Série Feito Para Dançar. Rio de Janeiro: Gravadora Rádio, 1956.  LP

iii Lee, R.. Flagra (compositor: Roberto de Carvalho). Álbum Rita Lee & Roberto de Carvalho. Rio de Janeiro: Som Livre, 1982. LP

iv Rolnik, S. ibidem.

v Rolnik, S. ibidem.

vi Badiou, A. Cinema. Texts selected and introduced by Antoine de Baecque. Malden, MA: Polity, 2013. p.1-21.

vii Moscovici, S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Rio de Janeiro: Vozes, 1961/2012.

viii Faria, A. F. “A criação do desejo no filme publicitário”. In: Dunker, C. I. L.; Rodrigues, A. L. Cinema e Psicanálise. v.1, A criação do desejo. São Paulo: nVersos, 2012. p.32.

ix Allen, W. diretor. Rosa Púrpura do Cairo Filme. Orion Pictures, 1985.

x Barros, J. d’A. “Cinema e história: entre expressões e representações”, pp.55-105.  In: Nóvoa, J.; Barros, J. D’A. (orgs.). Cinema-História. Teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012.

xi Thompson, J. B. Ideologia e cultura moderna - teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa (7a. ed.). Petrópolis: Vozes, 2007.

xiiGuattari, F.; Rolnik, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

xiii Lyra, B. Cinema periférico de bordas. Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v. 6, n. 15. p. 31-47, mar. 2009. Disponível em http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comunicacaomidiaeconsumo
/article/view/6836/6171
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Notas

1.Pessoa contratada para zelar pela disciplina do cinema, que circulava com uma lanterna repreendendo e orientando comportamentos.

2.Não há um único modo de definir representações sociais, haja vista as diferentes correntes dentro da própria Teoria das Representações Sociais, elaborada pelo romeno Serge Moscovici. Para nós, representações sociais podem ser entendidas como fenômenos histórico-culturais e psicossociais, em movimento, omnipresentes, omniscientes, gerados pelos pensamentos em articulação como todo nosso ser. Elas engendram, via memória subjetiva e coletiva, saberes sobre as pessoas e o mundo, que, por sua vez, vão impulsionar certas práticas e disparar certos discursos. Desta forma, não são nada mais nada menos que dispositivos-potência de devires (vir-a-ser) infinitos, isto é, ao representarmos alguma coisa (como aquilo que assistimos no cinema), transformamos(-nos) incessantemente via fabricação/dissolução/reconstrução... Por isso, qualquer tentativa de definir exatamente o que são representações sociais está fadada ao fracasso.

3.“Ainda que determinada produção fílmica seja montada para a expressão de um modo de vida de alguma classe dominante, ou que o filme seja empregado como parte de estratégias políticas específicas ..., haverá sempre algo que se impõe ou se percebe por meio da imagem e que pode revelar inesperadamente os demais modos de vida, ou algo que se há de impor como contra-discurso e entredito e que se constrói à sobra dos diálogos que entretecem o discurso principal” (Barros, 2012, p.65).

4. O cinema periférico de bordas caracteriza-se por produções audiovisuais realizadas de forma independente, com poucos recursos financeiros e ‘precariedade’ técnica: câmeras e materiais popularmente mais acessíveis e produções artesanais. Esses filmes trazem como marca um caráter regional e são produzidos por cineastas autodidatas que residem em pequenas cidades ou ao entorno e na periferia de grandes metrópoles. Esse tipo de cinema é considerado alternativo, de entretenimento e possui um público específico de consumo (Lyra, 2009).