REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Artigo
Dois caminhos férteis para o encontro do cinema com a ciência
Por Denise Tavares
10/11/2016

Documentários no Brasil têm sido cada vez mais produzidos. Há alguns motivos bem concretos para que isso ocorra. Talvez o principal seja mesmo o acesso mais amplo aos equipamentos de filmagem e edição desde que o digital passou a ser um mundo que atravessa nosso cotidiano. Também ajuda muito o fato de a realização de um documentário não implicar obrigatoriamente em demandas de produção profissional tais como atores, locações específicas, roteiros estruturados etc. Na verdade, o que temos visto cada vez mais quando encontramos um bom documentário é sua realização conjugar capacidade de se debruçar sobre a realidade, interagir com esta e a partir deste “material bruto” – digamos assim – fabular um outro real que, paradoxalmente, faz pensar sobre um real conhecido.

É claro que esse é apenas um esquema muito simplificado que só está valendo porque o assunto é outro. O que quero trazer aqui, e que não é nenhuma novidade, é que apesar da produção de documentários ter aumentado muito, seu público, pelo menos nas salas de cinema, continua muito aquém dos filmes de ficção. Há, evidente, muitas ressalvas que têm que entrar no pacote. Por exemplo, o número de cópias com que são lançados os documentários é mínimo. Não bastasse esse sufoco, a degola da sala de cinema chega muito mais rápido para o documentário do que para qualquer filme de ficção, seja nacional ou não. Sem falar na própria trajetória do cinema que se tornou indústria potente no viés ficcional e mudar essa cultura...Bem, não é fácil! (fiquemos nesta obviedade).

De todo modo, a turma do documentário não cruzou os braços. Disposta a enfrentar essa situação buscou, nos últimos anos, construir caminhos de visibilidade da produção que se multiplicou em quantidade e qualidade também. Entre as veredas trilhadas nessa direção, sem dúvida a televisão pública ocupou um papel relevante, na medida em que foi reconhecida como um espaço que precisava ser cultivado. E foi. Tanto que não só no Brasil, mas também na América Latina, um grupo de cineastas que reconhecia no cinema uma potência transformadora nos anos 1960/1970 arregaçou as mangas junto com uma nova geração de entusiastas, gestores públicos e também novos diretores, e foram às portas dos países vizinhos, agora já vivendo a realidade de fim das ditaduras que tanto horror trouxeram à região. O resultado desse esforço e convicção (e temos provas disso!), foi uma costura ampla de redes públicas de televisão que, entre outras atividades, jogou no ar um punhado de documentários que circularam e ainda circulam, livre e continuamente, entre mais de 20 países da América Latina.

E se a festa pode não ter sido uma festança, em termos de público foi muito mais do que a média costumava (e costuma) apontar. Ou seja, aquele número de espectadores que estava lá embaixo saiu da casa da centena e muitos documentários puderam ostentar públicos significativos, além dos debates férteis que também são uma das características coladas ao gênero. Fora isso, o novo modelo de circulação ainda garantiu um extra bacana, que foi voltar a entrar em contato com a produção dos países vizinhos, algo que praticamente tinha desaparecido nos anos de chumbo desses países. Mas, como agora os tempos estão revoltos, não se sabe se essa vida mais consistente e disposta à ampliação vai estar sub júdice ou se os bons acordos continuarão agregando mais resultados positivos. De todo modo – e eis que aqui, finalmente, chegamos à essência do objetivo dessa fala – o que se pode demarcar é uma mudança crucial de paradigma em relação à lida com o cinema no(s) país(es): finalmente, a questão da distribuição e circulação dos documentários entra no jogo com a importância e relevância que tem. E também traz no bojo dessa mudança outra quebra de paradigma: a televisão deixa de ser vista apenas como o lugar da alienação e passa a ganhar nova e necessária embalagem de meio de comunicação público. Aplausos!

Só que, além de comemorar o feito conquistado até agora, é preciso olhar esse movimento aproveitando a deixa para ir mais longe: será que não era hora de também rever um outro bicho-papão? Falo aqui justamente da relação de audiovisual e ciência. Ora, nessa preponderância de vida rodeada de telas em que estamos imersos hoje, por que ainda continua tão difícil desalojar o falso proprietário desse enlace – ciência e audiovisual –, desbancar o capitalismo predatório como o agente quase exclusive dos destinos da ciência e tecnologia na relação com o audiovisual? Por que ainda há no chamado campo democrático tanta resistência e até dificuldade para incluir a ciência e a tecnologia como temáticas tão essenciais ao nosso prazer de conviver com o cinema, tanto quanto é ótimo ver filmes sobre os dramas familiares, negócios escusos, espionagem etc.?

Não se trata, claro, de demarcar instrumentalmente fórmulas que garantam essa produção. O que colocamos é que, se os debates sobre a questão hoje batem de frente com a nova realidade de poder, isso não pode impedir que nós, que amamos o cinema, aproveitemos a deixa que chega do público, apesar das tantas condições adversas já citadas quanto à dificuldade deste conseguir encontrar os documentários produzidos fartamente. E, que deixa é essa?

Acredito que a resposta seja mesmo recuperar o caminho convencional de tabulação de público, algo que, no Brasil, tem sido garantido pelos mecanismos oficiais do governo federal (e aqui é impossível não colocar um ponto de interrogação no novo cenário de fusão de Ministérios etc). De qualquer forma, o acumulado do período, pensando desde os anos 90, por exemplo, indica que os documentários que melhor acionaram público foram os que focam biografias, em especial os musicais, além de alguns mais “desgarrados” em termos temáticos, como os voltados a times de futebol, por exemplo. Mas, para além desse indicador de cinema, há também outros indicadores, talvez mais subterrâneos, que reforçam o que é apontado no modelo clássico de aferição de público: o circuito garantido pelo DVD e, mais recente, o acesso via internet são dois destes. E neles encontramos dois grupos de produção documentária que, a meu ver, consolidam mais duas temáticas que o jornalismo já sabe há um bom tempo: a temática da saúde e do meio-ambiente.

Sem querer entrar em números, até porque o espaço não permite, documentários como O Renascimento do Parto (Brasil, 2014, direção de Eduardo Chauvet), por exemplo, que continua fazendo a festa via DVD (é um dos mais vendidos do país), ou Muito além do peso (Brasil, 2014, direção de Estela Renner) ou, ainda, O veneno está na mesa (Brasil, 2014, direção de Silvio Tendler), entre tantos outros que desde que lançados mantêm-se vivos no cenário cultural pelos caminhos ainda invisíveis do acesso escolar, grupos de discussão, encontros e debates, me parecem consolidar um caminho que se insere, generosamente, no contexto da política de popularização da ciência. Isto é, se não se apresentam, exatamente, como integrantes de pesquisa científica – algo que Arlindo Machado defende como critério para o batismo “documentário científico” –, estes e outros documentários que se debruçam sobre os nós da saúde e do meio-ambiente hoje dão vitalidade a essa expectativa de enlace sólido entre o audiovisual e ciência. Uma jornada que deve passar mais ao largo do didatismo que quase sempre marca as produções do documentário televisivo que perambulam, em especial, nos canais fechados. Ou seja, são documentários em que a presença do cineasta (e não estamos aqui mensurando competências) indica uma opção de produção que a meu ver acaba equilibrando a difícil equação pautada pelo reconhecimento que a cidadania plena, em termos largos, envolve uma convivência objetiva com a temática que integra o nosso cotidiano, ou seja, a ciência.

É óbvio que a discussão é muito mais ampla e cheia de trilhas do que o que está colocado aqui. De todo modo, nossa pretensão ao tocar tão rapidamente nesse tema espinhoso é contribuir para que a inclusão do debate sobre saúde e meio-ambiente incorporado pelo campo democrático mais recentemente, seja problematizado nessa perspectiva de que já passou da hora de também nos debruçarmos sobre mais cenas que integram o nosso cotidiano atual. Em outras palavras, o que estou propondo é que se continue a cultivar esse público que já mostrou adesão aos filmes de temáticas ambientais e de saúde em um processo que nos permita, logo logo, adensar as articulações com o conhecimento científico e tecnológico que se expandem para além desses núcleos. Trata-se de um procedimento que aposta em uma percepção cumulativa da potência do cinema como parte integrante e essencial da cultura e arte, desde que o imbricarmos à vida moderna.

Nessa trilha, não é possível mais o século XXI, que já está caminhando tão rapidamente para completar a sua segunda década, continuar se realizando à margem desse território que para o bem e para o mal ganhou status de eixo norteador da nossa caminhada: a ciência e a tecnologia. Tal dupla, até mesmo pela perspectiva de boa parte dos cientistas, tem que ser percebida em sua dimensão cidadã, isto é, seus passos têm que envolver debates inclusivos, sob o risco dela, nos países ditos periféricos, continuar uma jornada rumo à estagnação. Um bom exemplo disso é a paralisia da sociedade diante do desmonte evidente da ciência no Brasil, como se o país não precisasse da contribuição essencial desse conhecimento para as emergências que temos. Quebrar tal inércia, é claro, não pode ser creditada ao cinema. Mas este, enquanto integrante vivo e pleno da cultura, pode sim abraçar tal causa, rompendo, definitivamente, como dito lá no início, com um paradigma que excluía essas áreas – ciência e tecnologia – das suas jornadas preferenciais ou majoritárias. Tenho profunda convicção (me repito) e um bom tanto de provas de que tal terreno é muito mais fértil do que os números oficiais que temos hoje, de público, apontam.

Denise Tavares é professora do departamento de comunicação da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação Mídia e Cotidiano, da mesma universidade. Jornalista, é mestre em multimeios e doutora em integração latino-americana.