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Artigo
O protagonismo das pessoas vivendo com HIV/Aids no combate à epidemia
Por Nelio José de Carvalho
10/05/2006

Desde o início da epidemia no Brasil, no inicio da década de 80, as pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) tiveram importante papel no combate à epidemia.

Sem levar em conta a constatação óbvia de que se não houvessem pessoas infectadas não haveria um programa brasileiro de combate a essa epidemia, em seus primórdios as pessoas infectadas tinham sua morte social decretada porque provinham das populações mais vulneráveis, à época, destacadas como “grupos de risco”. Eram homossexuais masculinos, profissionais do sexo de todos os gêneros e usuários de drogas injetáveis, cuja estigmatização levada ao paroxismo pela ideologia moralizante que refloria risonha e franca, sob a égide neo-liberal globalizante e conservadora de R. Reagan, Margareth Thatcher e João Paulo II, e que “elevavam” essas pessoas à categoria de “culpados” pela infecção do/ao HIV, ao lado de outra categoria, a das “vítimas”, que eram os hemofílicos, as crianças nascidas soropositivas, os transfusionados de sangue nas intervenções cirúrgicas, e profissionais de saúde acidentados. Essa separação entre “vítimas” e “culpados”, além de reforçar e originar toda sorte de preconceitos ocultou para toda sociedade a possibilidade de infecção de outros segmentos significativos da população.

Qualquer pesquisador, qualquer sanitarista e/ou infectologista, com um mínimo de honestidade acadêmica ou científica, sabia que o HIV, como todo e qualquer vírus, não “escolhe” infectar suas vítimas baseado em critérios morais socialmente hegemônicos, e os modos pelos quais a epidemia avançava na África subsaariana e no Haiti já comprovavam que, em princípio, o conceito de “grupos de risco” descambava para a ideologia moralizante que acabava por prejudicar ações efetivas de prevenção em outros segmentos populacionais: mulheres, adolescentes, terceira idade, etc...

Em meados da década de 80, soropositivos famosos como Betinho, Herbert Daniel entre outros já alertavam para o fato de que viver com o HIV/Aids não era apenas um problema a ser enfrentado pelas pessoas infectadas, mas uma busca por soluções que deveria ser debatida amplamente por toda a sociedade, porque dizia respeito a todos e todas.

Atuando nas várias ONGs que surgiram (Pela Vidda, Gapa, entre outras) esses soropositivos, juntamente com o Programa Nacional de DST/Aids, profissionais da saúde e voluntários comovidos com a sorte das pessoas infectadas, procuravam alertar que a epidemia de Aids só poderia ser combatida se deixássemos de lado as questões morais mais conservadoras e partíssemos para a abordagem franca e despida de preconceitos, mais objetiva, portanto, levando-se em conta que tínhamos o SUS aprovado na Constituição de 88, que poderia vir a garantir um tratamento mais digno e humano aos infectados.

Nesse contexto proliferaram ONGs que não só prestavam assistência aos infectados como realizavam trabalhos de prevenção nas populações mais vulneráveis.

O programa brasileiro de combate à Aids do Ministério da Saúde, subsidiado com financiamentos do BID, Banco Mundial, Unesco dentre outros agentes financiadores, começa então a repassar financiamentos às ONGs que executavam ações de apoio aos infectados, ações de prevenção em populações específicas e também ações de defesa de direitos humanos dessas populações. Esses financiamentos possibilitaram uma gama de ações nas quais o programa brasileiro de combate à Aids estruturou-se, possibilitando a configuração de um amplo movimento social que abarcava além dos órgãos governamentais, a sociedade civil organizada em ONGs, em sua maioria constituídas de pessoas infectadas e voluntários abnegados que passaram a lutar pelos direitos de cidadania das pessoas infectadas e de pessoas que pudessem vir a ser infectadas: homossexuais, usuários de drogas, mulheres, adolescentes, idosos, presidiários, motoristas de caminhão, profissionais do sexo, profissionais de saúde, populações de baixa renda etc. exercendo um efetivo e gigantesco trabalho de promoção de direitos humanos, civis e sexuais de toda a população.

Em que pese a existência da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, na história recente pós-ditadura militar, é o movimento social da Aids aliada ao Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, dentro dos princípios do SUS, nos âmbitos federal, estaduais e municipais quem efetiva ações em defesa dos direitos humanos da grande parte da população.

Para que não se perdesse de vista as ações específicas de assistência voltadas para as pessoas infectadas pelo HIV/Aids, em 1995 surgiu a RNP+ (Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids) que entre tantas outras vozes decide relembrar aos integrantes desse movimento social mais amplo que as PVHA tinham capacidade própria para reivindicar suas exclusivas necessidades, sem desconsiderar outros atores do movimento mais amplo.

Suas lideranças, em grande parte, vinham da luta política contra o regime militar e tiveram contato com as redes existentes nos países desenvolvidos, notadamente a rede de homossexuais que se solidarizava com as pessoas infectadas em San Francisco, Califórnia, EUA.

Essa atitude afirmativa que partiu das PVHAs continha, de um lado, a postura negativa de atitudes exclusivamente beneméritas/caritativas recusando-se a ser tuteladas até a morte física e postulava uma presença mais marcante das PVHAs no mercado de trabalho que se configurava no terceiro setor pela proliferação contínua de ONGs/Aids; de outro lado, assentava seus pilares nos grupos de ajuda-mútua que, enquanto grupos de apoio de soropositivos para soropositivos busca a inserção e/ou reinserção psico-social das pessoas infectadas, a troca de experiências, etc. Muitos desses grupos tornaram-se núcleos de PVHAs que atuavam informalmente nos ambulatórios e até mesmo nas casas de alguns de seus membros.

Com o surgimento dos antiretrovirais o movimento social mobiliza-se com intensa participação das pessoas soropositivas e a distribuição gratuita desses medicamentos na rede pública, a partir de 1996, trouxe alento e maiores perspectivas de sobrevida com qualidade: a RNP+ passa, juntamente com os fóruns estaduais de ONGs, voluntários e gestores de saúde, a integrar esse amplo movimento social que caracteriza o programa brasileiro de combate à epidemia de Aids no país.

Em 1997/1998 realiza encontros de PVHAS em todas as regiões do país buscando maior capilarização e desenvolvimento. Em 98 surge o primeiro núcleo institucionalizado da RNP+ na cidade de Campinas, seguido do núcleo do Rio de Janeiro.

Em 2005 realiza seu I Encontro Nacional em Florianópolis com 400 delegados oriundos de todas as regiões do país, cujo lema “Antes nos escondíamos para morrer, hoje nos mostramos para viver”, ilustra a capacidade de seus membros em dar visibilidade às suas ações, além de contemplar em sua nova Carta de Princípios a luta pela prevenção contínua de toda a população.

Nesses quase onze anos de existência, a RNP+ Brasil possui núcleos de PVHA espalhados por todo o país e tem representações em todas as instâncias decisórias e consultivas das políticas públicas de saúde em DST/Aids nos níveis federal, estaduais e municipais e algumas representações no exterior: reconhecida pelo Programa Nacional de DST/Aids na Cnaids (Comissão Nacional de DST/Aids); CAMS (Comissão de Articulação com os movimentos sociais ) do Ministério da Saúde e Programa Nacional de DST/Aids; Comitê de Vacinas; GT Unaids; GT Comunicação, Comissão de Preservativos, GT OG/ONG, Conselho Nacional de Saúde, Conselhos Estaduais de Saúde, Conselhos Municipais de Saúde, etc. e filiada a REDLA+ (Rede Latino-americana de Pessoas Vivendo com HIV/Aids) a RNP+ Brasil continua a desenvolver seu trabalho em busca de uma melhor qualidade de vida às PVHA.

O exercício pleno da cidadania e do controle social das verbas públicas para DST/Aids faz da RNP+ Brasil a rede de PVHA que luta junto com o movimento social do qual é membro integrante, um exemplo de articulação política que deve e pode ser seguido por portadores de outras patologias em particular e de usuários do SUS em geral e de parceria com outros movimentos sociais e populares: movimento de mulheres, GLBTT, movimento negro, adolescentes, idosos, usuários de drogas, deficientes físicos e outros.

Seu primeiro encontro estadual ocorreu em Campinas, em 1998, onde nos dias 02, 03 e 04 de junho de 2006, no Hotel Vila Rica, estará realizando seu IV Encontro Estadual.

Nelio José de Carvalho é representante estadual da RNP+ SP.