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Artigo
O enfrentamento da pandemia
Por Maria Fernanda Macedo
10/05/2006

Desde o seu reconhecimento em 1981, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) vem fazendo vítimas em número cada vez maior. São 25 anos de pesquisas para encontrar soluções profiláticas e terapêuticas em que algumas conquistas importantes foram alcançadas. No entanto, o impedimento do avanço dessa doença implacável tem sido um fracasso. Hoje, os números que aparecem são de mais de 40 milhões de infectados, sendo que cerca de 2 milhões de crianças e 60% desse total está na África subsaariana. Esses números são mais do que 50% das estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), feitas em 1990 para 2005.

Mas, quais são as razões para isso? As patentes são o único vilão da história, ou além delas existem outros? O que poderia ser feito para reverter esse quadro sombrio? Qual a responsabilidade dos governos e organismos internacionais nesse processo?

Para responder a essas perguntas é necessário visualizar todos os fatores determinantes do sucesso de um programa de controle da doença. O acesso aos medicamentos e a barreira que as patentes representam são alguns dos aspectos a serem considerados nessa guerra contra o HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana). Eles são inegavelmente muito importantes e representam a diferença entre a esperança de uma boa qualidade de vida para os pacientes de Aids e para os infectados pelo HIV e o desespero e dor pela morte iminente.

O entendimento da problemática envolvida requer uma abordagem, ainda que de forma simplificada, de alguns dos principais componentes de um programa integrado de controle da Aids pertinentes a qualquer país.

Elementos essenciais da profilaxia e tratamento

A determinação do momento em que um indivíduo infectado pelo HIV deve iniciar o tratamento anti-retroviral, bem como o monitoramento dos indivíduos que já estão em tratamento, são feitos por uma avaliação clínica que é complementada por métodos laboratoriais, principalmente através da contagem de células T-CD4+ (avalição do grau de imunodeficiência do paciente) e pela quantificação da carga viral (avaliação da quantidade de vírus no sangue do paciente). Esse acompanhamento é importante no estabelecimento do tratamento adequado.

O acesso aos medicamentos é, sem dúvida alguma, um fator preponderante no controle da doença. Esse acesso envolve vários fatores, tais como produção suficiente de intermediários químicos e de princípios ativos, garantia da qualidade dos produtos disponíveis no mercado, preços razoáveis para aquisição pelo paciente ou pelo programa governamental (nos raros países em que ele existe) e logística adequada para garantir a disponibilidade, em termos de quantidade e no momento de necessidade, para o paciente. A administração do conjunto desses fatores é altamente complexa, especialmente em países onde há dificuldade de acesso às áreas rurais, e requer a decisão política de considerar o controle da Aids uma prioridade de governo. O Brasil tomou essa decisão, conseguiu superar esses obstáculos e se tornou um exemplo a ser seguido por todos os países, inclusive os desenvolvidos.

O acesso à assistência médica é outro fator preponderante no tratamento e acompanhamento dos pacientes de Aids e dos indivíduos infectados pelo HIV, como o que é feito em centros de referência em Aids, por exemplo, o da Coordenação do Programa Estadual de DST/Aids.

Por fim, a assistência farmacêutica também fica seriamente comprometida pela não priorização da política social e pela descontinuidade de outras políticas que afetam a disponibilidade de medicamentos, tais como a política industrial (produção de fármacos e de remédios), de pesquisa e desenvolvimento (por exemplo, engenharia reversa para produção de fármacos e medicamentos conhecidos), de importação e exportação para criar ambiente favorável à produção local de medicamentos e outras de igual importância. Em linhas gerais, a assistência farmacêutica compreende a seleção, programação, aquisição, armazenamento e distribuição, controle de qualidade e utilização de medicamentos. No caso da Aids, essas ações são centralizadas e promovidas pelo Programa Nacional de DST e Aids em colaboração com as coordenações dos Programas Estaduais de DST/Aids. Além dessas atividades, a assistência farmacêutica também é responsável por campanhas de esclarecimento que são fundamentais na abordagem profilática do controle de transmissão da Aids. Vale ressaltar que o Brasil tornou-se referência para o mundo ao estabelecer a premissa da essencialidade de unir prevenção e tratamento.

Por que as patentes têm tanta influência no acesso ao tratamento?

Cada cidadão sente o peso no bolso de um medicamento patenteado quando vai à farmácia comprar um remédio. Todos sentem, mas não sabem porque isso acontece. Por exemplo, somente uma pequena parcela da população que sofre de hipertensão pode comprar o anti-hipertensivo Lipitor ou Citalor devido ao seu elevado preço. A explicação para isso é que esses medicamentos estão patenteados no Brasil. Da mesma forma, os medicamentos anti-retrovirais Nelfinavir, Kaletra e Tenofovir consomem grande parte do orçamento do Ministério da Saúde dedicado à aquisição de medicamentos. Não é por acaso que isso acontece. Esses remédios estão patenteados no Brasil.

O Brasil é um dos poucos países do mundo que fornece os medicamentos anti-retrovirais gratuitamente, mas o gratuito significa que o povo paga esses elevados custos. Um outro fato preocupante em relação à sustentação do Programa Nacional de DST/Aids é o elevado preço pago pelos medicamentos patenteados, mesmo comparando com os países em estágio de desenvolvimento equiparável ao Brasil (países de renda intermediária – low-middle-income countries). As diferenças mais gritantes são com relação aos remédios Kaletra (USD 1,17/comprimido no Brasil e USD 0,26/cápsula na África do Sul) e Tenofovir (USD 7,28/comprimido no Brasil e USD 4,62/cápsula em El Salvador ou USD 2,50/cápsula no Irã). Não precisa ser brilhante economista para prever sério abalo na sobrevivência do Programa Nacional DST/Aids se os preços dos remédios anti-retrovirais patenteados, praticados no Brasil, se mantiverem nos atuais níveis.

Mas não são somente os remédios que têm preço elevado por causa das patentes que os protegem da concorrência de livre mercado. Também a grande maioria dos kits de diagnóstico e os reagentes estão sob patente, o que significa que o monitoramento e os “testes de Aids” consomem somas crescentes do Programa Nacional de DST e Aids e das secretarias estaduais de saúde.

Por que os produtos patenteados são mais caros?

A patente é um privilégio, dado ao seu proprietário, de exploração exclusiva, por um certo tempo (20 anos), de uma invenção. Isso significa, na prática, um monopólio, ou seja, a oposição às leis de livre mercado que impedem o aparecimento de concorrentes enquanto a patente estiver em vigor.

O que mais preocupa é a exigência sobre a “qualidade inventiva” da patente. A tendência mundial é a concessão cada vez maior das chamadas patentes incrementais. Só para se dar um exemplo mais popular o Omeprazol, com versão genérica no mercado, é bem mais barato que o Esomeprazol (Nexium), remédio que está patenteado no Brasil. E qual é a diferença entre esses dois remédios? No tempo, o Omeprazol foi sintetizado no final da década e 1970 e o Esomeprazol foi desenvolvido na década de 1990; na constituição química, são duas substâncias iguais que diferem somente na sua aparência tridimensional (são os chamados isômeros). A passagem do Omeprazol para o Esomeprazol foi feita usando técnicas muito conhecidas de separação de compostos químicos. Portanto, neste caso, os chamados “vultosos investimentos” alegados pela indústria farmacêutica não têm sustentação lógica, porque, na verdade, eles não existiram. Foi mais uma “invenção de marketing”, ou seja, uma modificação para “reviver” uma patente prestes a expirar do que uma “invenção de nova molécula”. Vale acrescentar que, mesmo que haja algum benefício terapêutico devido ao incremento tecnológico, poder-se-ia premiar esse aperfeiçoamento com um tipo diferenciado de proteção, mas nunca com os 20 anos de vigência de patente concedida para uma “invenção real”.

Esses casos são cada vez mais comuns. Por exemplo, o Lopinavir (um dos componentes do Kaletra) é uma modificação química do Ritonavir (o outro componente do Kaletra). E há outros casos mais escabrosos, as chamadas “combinações de dose fixa” (em inglês fixed dose combinations) são remédios que resultam de técnicas de produção farmacêutica sobejamente conhecidas. Outro exemplo impressionante dessas “patentes incrementais” é o caso do Tenofovir, cuja patente expira este ano (2006), mas que já foi requerida uma nova patente para o sal de Tenofovir que é obtido por processo químico amplamente conhecido e simples.

Há meios para reduzir o impacto causado pelas patentes no acesso ao tratamento?

Desde a entrada em vigor do Acordo de Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), um dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, ficou mais difícil a implementação de políticas de saúde em todos os países membros da OMC (ou seja, praticamente todos os países do mundo). As regras que acabaram predominando, no Trips, foram aquelas impostas pelos Estados Unidos e, em menor grau, pela Comunidade Européia e Japão. No entanto, algumas medidas ainda podem ser aplicadas, apesar da dificuldade em fazer prevalecer a prioridade da saúde sobre a propriedade intelectual como firmado na Declaração de Doha. A aplicação da licença compulsória é uma delas e é a mais importante.

Então por que, nos países em desenvolvimento (os que mais precisam), é tão difícil aplicar a licença compulsória?

É simples: dinheiro e poder da mais importante potência mundial – os Estados Unidos da América do Norte. Basta um simples anúncio de aplicação de licença compulsória feita pelo governo de um país em desenvolvimento, como tem acontecido com o Brasil, para suscitar a ameaça da aplicação unilateral de sanções comerciais pelos Estados Unidos. Além das ameaças, existem práticas mais sutis, tal como o “presente” que foi oferecido recentemente (abril/2006) para a Tailândia de favorecimentos comerciais em troca da não aplicação de licença compulsória e produção de genéricos. Vale lembrar que os Estados Unidos da América são o país que mais aplica a licença compulsória, inclusive para patentes farmacêuticas. Alguns exemplos de licenciamento compulsório de patentes farmacêuticas nos Estados Unidos são: patente de produtos de citocina de propriedade da Novartis (1997), patente da substância 9-AC (utilizada no tratamento de câncer) de propriedade da Pharmacia & Upjohn (1995), patente da diciclomina de propriedade da Dow Chemical (1994).

Resumo da história

Enquanto não houver compromisso dos governos na adoção de medidas que tornem a saúde mais importante do que a propriedade intelectual (Declaração de Doha) e omissão dos organismos internacionais, como a OMS e a OMC, no enfrentamento das dificuldades/adversidades e pressões do governo dos Estados Unidos da América e das empresas multinacionais produtoras de remédios inovadores e genéricos continuaremos a assistir o genocídio institucional das populações dos países, principalmente da África subsaariana. Mas, é preciso lembrar que os vírus e outros microrganismos não reconhecem fronteiras e sabem criar suas próprias armas para resistir às defesas de organismos que involuntariamente os hospedam, inclusive o homem. Eles viajam em navios, aviões e transportes terrestres, atravessando países e fazendo vítimas cada vez em maior número.

Infelizmente, este é o saldo de 25 anos convivendo com o Vírus da Imunodeficiência Humana.

Maria Fernanda Macedo é consultora em propriedade intelectual.