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Reportagem
Feminização traz desafios para prevenção da infecção
Por Carolina Cantarino e Paula Soyama
10/05/2006

A epidemia de Aids no Brasil, em seu início, na década de 1980, se caracterizava por afetar mais os homens. Acreditava-se que a doença seguiria um padrão de transmissão restrito aos homossexuais masculinos, aos usuários de drogas injetáveis e às pessoas que recebiam transfusões de sangue, como os hemofílicos. Antes mesmo de completar uma década, a tendência crescente de aumento de infecção pelo HIV entre as mulheres já se tornava evidente. A chamada feminização da doença revelava também que as relações heterossexuais haviam se tornado a principal via de transmissão do HIV. Esse novo perfil da epidemia trouxe desafios para a prevenção da doença, que passam pelas negociações, entre homens e mulheres, sobre o uso de proteção, e sobre o desequilíbrio de poder da mulher para negociá-la. Nesse contexto, surge o preservativo feminino, a discussão sobre outras opções de proteção que não fiquem restritas à camisinha, e a necessidade de se considerar a complexidade da sexualidade humana na elaboração de campanhas oficiais de prevenção.

Segundo o último boletim epidemiológico lançado pelo Ministério da Saúde, em novembro de 2005, a taxa de incidência da Aids se manteve em 19,2 casos por 100 mil habitantes devido à persistente tendência de crescimento de casos entre as mulheres que, nesse mesmo ano, atingiu 15 casos por 100 mil mulheres. A razão entre os casos masculinos e femininos, em 2005, continuou decrescente, ficando em 15 casos masculinos para cada 10 femininos. No início da epidemia, a razão era de 16 casos em homens para 1 em mulher. Entre as mulheres, a transmissão heterossexual representa quase a totalidade dos casos em maiores de 13 anos: 94,8% dos casos em 2004.

A idéia de que existiriam grupos de risco comprometeu as avaliações iniciais sobre os rumos da doença, prejudicando as estratégias de prevenção que, hoje, tendem a operar com a idéia de vulnerabilidade. A partir dela, seria possível pensar num padrão da epidemia de Aids que opera em duas fases: num primeiro momento, afeta coletividades em função de comportamentos específicos como a prática do sexo anal, uso de drogas injetáveis ou hemofilia. Numa segunda fase, atinge populações com riscos individuais relativamente baixos, mas de grande magnitude em termos do número de pessoas vivendo em situações de vulnerabilidade, e é aí que se enquadra a população feminina.

Regina Barbosa, médica sanitarista e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, ao escrever sobre a relação entre mulher e Aids lembra que “a maioria das mulheres que estão sendo atingidas pela epidemia não apresentam qualquer comportamento sexual particular, mas, ao contrário, agem segundo o que se espera que façam: são casadas, conheceram (sexualmente) poucos homens na vida, não costumam exigir nem fazer muitas perguntas a seus parceiros e, portanto, não usam camisinha”.

O uso do preservativo masculino tem aumentado de maneira significativa no mundo e no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde, sua distribuição passou de 12 milhões e 780 unidades, em 1994, para 2002 milhões de unidades em 2005. A meta do governo federal é distribuir 1 milhão de unidades em 2006. Mas esse aumento tem sido observado mais nas relações casuais do que nos relacionamentos estáveis, segundo pesquisa nacional do Ministério (2000). É também crescente na população adulta jovem, resultando na redução das taxas de incidência da Aids nas faixas etárias masculinas de 13 a 29 anos. Nas faixas posteriores, principalmente entre 40 e 59 anos, a taxa de incidência da doença têm aumentado.

Usar ou não usar camisinha não é a questão

A feminização da epidemia de Aids ocorreu justamente por conta de padrões de comportamento que permitem ao homem ter uma vida sexual mais liberada, reservando às mulheres um lugar mais submisso nessa questão. Além disso, existem diferenças de poder consideráveis nas relações entre homens e mulheres e ainda persiste o mito do amor romântico nas relações afetivas, onde cumplicidade e fidelidade seriam pressupostos inquestionáveis ”, diz Dirce Guilhem, professora da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB). A falta de poder e autonomia das mulheres nas relações sexuais e afetivas se deve aos padrões culturais, à desigualdade de gênero e ao controle da sexualidade feminina que ainda persistem, ultrapassando classes sociais e educação formal, conforme lembra a pesquisadora.

Manter orelacionamento e o vínculo amoroso motiva mais as pessoas do que a manutenção da saúde, a prevenção de doenças ou gravidez, segundo a tese de doutorado de Maria Amélia Lobato Portugal, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Em seu trabalho, a psicóloga investigou as negociações entre homens e mulheres sobre o uso do preservativo feminino, comercializado no Brasil desde 1997, e distribuído, na rede pública de saúde, a partir de 2000. As escolhas sobre métodos de prevenção do HIV e das DSTs envolvem uma série de valores postos nos relacionamentos, que se revelaram nas histórias de vida dos entrevistados e que vão além da questão da proteção. Na rejeição ao uso do preservativo masculino nas parcerias estáveis, por exemplo, podem prevalecer, mais do que a noção de risco, a idéia de uma prova de amor. “Se a rejeição da camisinha masculina pelo parceiro pode ter o sentido de marcar sua virilidade e presumida fidelidade, a rejeição pela mulher pode ser um sinal de que ela confia nele, que existe um 'compromisso' transformador do ato sexual em algo sublime. Assim, o ideal conjugal romântico fica mais próximo do vivido”, afirma a psicóloga.

O uso do preservativo feminino, por sua vez, passa por questões que vão desde a explicitação do desejo feminino – através da iniciativa de obtenção do preservativo que denotaria uma “preparação para o sexo” considerada constrangedora por muitas das entrevistadas – até dificuldades de lidar com o próprio corpo durante a inserção do produto (que exige o auto-toque vaginal do qual muitas mulheres relatam “sentir vergonha”). Mas o uso do preservativo feminino também foi descrito como uma experiência positiva, em contraposição, muitas vezes, ao uso da camisinha: “Se eu tiver duas opções, vou escolher a feminina! Ela não aperta!”, afirma Guto, um dos entrevistados na pesquisa.

O preservativo feminino é uma possibilidade de prevenção que pode ser um veículo para a autonomia das mulheres nos relacionamentos afetivos-sexuais ”, afirma Dirce Guilhem. No entanto, estudos têm demonstrado que o uso se mantém estável, mesmo diante da feminização do HIV/Aids, o que poderia ser explicado por alguns alguns fatores: o preço superior ao do preservativo masculino; esteticamente, ele pode causar constrangimentos para a mulher e negativa do homem; o barulho ocasionado durante a relação sexual com preservativos femininos tem sido relatado com freqüência como um impeditivo para sua utilização; nem sempre os serviços de saúde têm estoque para as usuárias. Seu uso tem sido recomendado para o caso de mulheres ou casais mais idosos, quando o homem tem dificuldade de manter a ereção durante a colocação do preservativo masculino.

A disponibilização de recursos materiais como artefatos tecnológicos de prevenção como o preservativo feminino não garantem sua incorporação na prática cotidiana, caso não haja capital simbólico suficiente para gerenciar conflitos e dificuldades no processo ”, lembra Amélia Portugal. Por isso, a chamada rede de apoio (escola, amigos, profissionais da saúde, mídia, parceiros sexuais, religião ou família) seria importante no que diz respeito à orientação, trocas de experiências e acompanhamento adequado. Nesse contexto, o sistema público de saúde é importante. “Os bons programas de prevenção priorizam os indivíduos e suas trajetórias de vida, e não informações técnicas”. Não basta, portanto, só distribuir camisinhas. Tendo em vista essa pluralidade de significados presentes nos relacionamentos sexuais e afetivos, não existe método de proteção que seja universal, que valha para toda e qualquer pessoa. “Usar ou não usar camisinha não é a questão, por mais paradoxal que possa parecer. As questões principais são aquelas diretamente ligadas à sexualidade, construção social historicamente dada; mudanças de hábitos e promoção da saúde”, lembra Amélia Portugal.

Campanhas oficiais

Mesmo com a modificação do perfil das pessoas infectadas pelo HIV, as campanhas publicitárias continuam basicamente estruturadas no uso do preservativo masculino, quando a intenção é evitar a transmisssão da doença pela via sexual. Para Wildney Feres Contrera, professora da Universidade Cruzeiro do Sul e membro do Conselho Consultivo do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa) de São Paulo, a incorporação do uso do preservativo masculino é uma forma de prevenção séria e que dá resultados. Ela acredita que focalizar as campanhas no uso da camisinha é importante mas não é suficiente: a questão dos valores e do universo feminino e dos comportamentos das mulheres também devem ser abordados. O Estado tem desenvolvido pesquisas para focar as ações de prevenção nas mulheres mas esse público tende a ser visto de forma recortada, como no grupo das profissionais do sexo e das mulheres de baixa renda, por exemplo. Contrera sugere um olhar que perceba a mulher como uma “nova categoria”. Uma saída para esse impasse seria a camisinha feminina, que está longe de ser aceita como uma prática corrente. Para isso, é preciso haver um investimento sistemático em campanhas de massa.

Ao analisar as campanhas do governo federal veiculadas na televisão entre 1986 e 2000, Luís Henrique Sacchi dos Santos, professor da Universidade Luterana do Brasil, do Rio Grande do Sul, destaca que durante o período entre 1994 e 2000, as peças se voltaram mais para as mulheres como, por exemplo, a campanha “Quem se ama se cuida” (1994). Sacchi dos Santos acredita que as peças não consideram a relação de gênero ao focalizar exclusivamente nas mulheres as negociações envolvendo o uso do preservativo ou ao negar a se submeter à relação desprotegida. “É preciso que se invista também na saúde do homem, tornando-o um agente das ações preconizadas nos anúncios televisivos e nas campanhas de saúde de um modo geral”, esclarece.

Trajetória das campanhas no Brasil

Para o pesquisador, as campanhas de prevenção caracterizam-se pela seguinte trajetória. Entre 1986 a 1990, os anúncios televisivos se propunham a falar de uma forma mais geral, procurando informar ao público. Anúncios como “Eu não tenho cura” (1991) nortearam um discurso mais intimidatório, reforçando a discriminação contra os soropositivos nas campanhas de 1990 a 1994. Neste ano, o Banco Mundial passou a financiar projetos na área da saúde, alavancando o primeiro programa nacional, marcado também pela participação das ONGs. De 1994 a 2000, os anúncios enfatizaram determinados tipos de comportamento, usando humor e personalidades de prestígio (atores e cantores) para persuadir as pessoas, assumindo os princípios do marketing social.

O governo federal apostou na fórmula estruturada na prevenção, no tratamento e no acompanhamento de pessoas com Aids. Foram desenvolvidas campanhas publicitárias que priorizaram o incentivo ao uso da camisinha nos diversos grupos sociais, público-alvos das investidas (população de baixa renda, jovens, travestis, caminhoneiros, mulheres, homens, com exceção dos viciados em drogas e crianças). Em geral, a televisão é considerada o agente principal de divulgação de massa e as campanhas veiculadas por ela têm um tempo limitado de exibição, acontecendo principalmente durante o Carnaval e o Dia Mundial de Luta contra a Aids (1 de dezembro). Segundo Sacchi dos Santos, a campanha veiculada na televisão apresenta a idéia principal do que será desdobrado em outros produtos (spots de rádio, cartazes, folders, outdoors, por exemplo) e ações (distribuição de preservativos). Dessa forma, as campanhas não se restringem aos anúncios televisivos e nem ao Carnaval e ao primeiro de dezembro: "há ações que não são visíveis para o grande público, de modo que se considera que as campanhas se limitam a tais períodos ”, justifica. Desde 2001, R$ 10 milhões são investidos em campanhas publicitárias por ano, com exceção do ano de 2005, quando o governo federal gastou R$ 12 milhões.

Mas até que ponto as campanhas de prevenção influenciam na mudança do comportamento das pessoas? Wildney Contrera acredita que a publicidade consegue passar informação, mas não mudar diretamente o comportamento relativo à proteção. “As pessoas hoje estão informadas sobre a doença e suas medidas preventivas, mas não as usam. Elas não se identificam ou não se vêem como possíveis infectados, vulneráveis à doença”, indica. Segundo a pesquisadora, os trabalhos preventivos estão voltados a públicos específicos, a prevenção é adiada e o tratamento, priorizado. Dessa forma, seria necessário retomar um discurso mais universal. Em seu estudo sobre o discurso das campanhas governamentais sobre a Aids, ela concluiu que, apesar de as pessoas não usarem a informação imediatamente, as peças publicitárias criam uma esfera social de discussão, que se dá na conversa interpessoal, em lugares menores, que podem ter caráter mais mobilizador.