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Artigo
A evolução e distribuição social da doença no Brasil
Por Ana Maria de Brito
10/05/2006
Qualquer epidemia é o resultado de uma construção social, conseqüência do aparecimento de uma doença com características biomédicas, sanitárias e demográficas particulares. A identificação, em 1981, da síndrome da imunodeficiência adquirida, habitualmente conhecida como aids, tornou-se um marco na história da humanidade. A epidemia da aids, causada pela infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), é um fenômeno global, altamente dinâmico e instável, cuja forma de ocorrência nas diferentes regiões do mundo depende, entre outros fatores, do comportamento humano individual e coletivo.

A propagação da aids, no Brasil, revela uma epidemia de múltiplas dimensões que vem, ao longo do tempo, sofrendo extensas transformações na sua evolução e distribuição social. De uma epidemia inicialmente restrita a alguns círculos cosmopolitas das denominadas metrópoles nacionais – São Paulo e Rio de Janeiro - e marcadamente masculina, que atingia prioritariamente homens com prática sexual homossexual e indivíduos hemofílicos, depara-se, hoje, com um quadro marcado pelos processos da heterossexualização, da feminização, da interiorização e da pauperização. O aumento da transmissão por contato heterossexual tem resultado em um crescimento substancial de casos em mulheres, sendo apontado como o mais importante fenômeno para o atual momento da epidemia.

Tendência espaço-temporal da aids: a interiorização

A partir do eixo Rio-São Paulo, os casos de aids disseminaram-se para as demais regiões, inicialmente às metrópoles regionais – como Porto Alegre, Recife, Curitiba, Belo Horizonte e Salvador –, a partir do final da década de oitenta. As transformações no perfil da aids no Brasil, embora com dinâmicas regionais e populacionais distintas, devem-se, sobretudo, a difusão geográfica da doença a partir dos grandes centros urbanos em direção aos municípios de médio e pequeno porte do interior do País, ao aumento da transmissão heterossexual e à manutenção de casos entre usuários de drogas injetáveis (UDI). Atualmente, a epidemia já atinge 79% dos 5508 municípios brasileiros. Os cartogramas representados na figura 1 ilustram a progressiva expansão da epidemia do litoral sudeste para as regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste, considerando-se os municípios com pelo menos um caso de aids registrado, para os períodos de 1880 a 1988, de 1989 a 1996 e de 1997 a 2004.


Desde o inicio da epidemia, em 1980, até junho de 2005 foram notificados 371827 casos de aids. Desses casos, 14309 são crianças, 245484 adultos masculinos e 112034 adultos femininos. Com registro de ocorrência de casos em quase todo o território nacional, a distribuição da aids, no entanto, não é homogênea, quanto às regiões de residência, sexo, idade, grau de escolaridade nem no que se refere às categorias de transmissão. Observando-se uma maior concentração de casos nas regiões Sudeste e Sul, as taxas de incidência nos últimos anos evoluíram, em todo o País, de 12,1 por 100 mil habitantes, em 1994, para 17,2 por 100 mil habitantes, em 2004, com uma grande variação entre os diferentes estados da federação. Embora tenha ocorrido um crescimento da epidemia da aids no país, nos anos mais recentes, no entanto, verifica-se uma tendência à estabilização nas regiões mais desenvolvidas – Sul, Sudeste e Centro-oeste, com queda das taxas de incidência nos anos de 2003 e 2004 (figura 2). Nas regiões Norte e Nordeste, as taxas continuam em ascensão.


Casos notificados no SINAN e registrados no SISCEL até 30/06/05

A análise da distribuição dos casos de aids, segundo tamanho populacional dos municípios, mostra que os grandes centros urbanos detêm, atualmente, o menor aumento relativo de casos de aids, configurando uma desaceleração da velocidade de crescimento da epidemia. Por outro lado, o crescimento da epidemia tem sido maior, desde 1999, entre municípios pequenos, com menos de 50 mil habitantes. Trata-se, via de regra, de municípios mais pobres e de menor renda per capita, e com mais baixa capacidade de resposta para as demandas sociais, entre elas a saúde.

Mudanças na via de transmissão: a heterossexualização e a feminização

No início da epidemia, o segmento populacional constituído dos homens que fazem sexo com outros homens – homossexuais e bissexuais – foi o mais atingido. No ano de 1984, 71% dos casos notificados eram referentes a homossexuais e bissexuais masculinos. Entretanto, à extensa disseminação inicial, seguiu-se certa estabilização em anos posteriores, em especial entre aqueles homens pertencentes aos estratos sociais médios urbanos, em todas as regiões do País, em meio aos quais verificou-se relevante mobilização social e mudança de comportamento no sentido de práticas sexuais mais seguras, traduzindo-se em uma redução da participação desta subcategoria de exposição entre os casos notificados, correspondendo em 2004, a apenas 16,3% dos casos.

Presentemente, no Brasil, a via de transmissão heterossexual constitui a mais importante característica da dinâmica da epidemia, com expressão relevante em todas as regiões. Houve um incremento importante desta forma de transmissão: de 6,6 % em 1988, para 39,2%, em 1998, e, mais recentemente, em 2004, 61,3%. Esta característica tem contribuindo de modo decisivo para o aumento de casos em mulheres, traduzido na progressiva redução da razão de sexo (dada pela razão entre os casos do sexo masculino e os casos do sexo feminino), no tempo e em todas as categorias de exposição. Os valores da razão de sexo passaram de 26:1, em 1985, para 6:1 em 1989, situando-se em menos de 2:1, desde 1998 (Figura 3). Outro aspecto importante é o de que as menores razões de sexo são encontradas nos municípios brasileiros com menos de 50 mil habitantes. Aproximadamente 20% dos pequenos municípios que notificaram a doença já inverteram a relação de incidência entre os sexos. Entre as mulheres, cerca de 60% são donas-de-casa, em todos os níveis de escolaridade, na faixa etária de 20 a 39 anos.


Casos notificados no SINAN e registrados no SISCEL até 30/06/05 Fonte MS/SVS/PN DST e Aids

Quanto à categoria de transmissão sangüínea, alterações relevantes foram observadas, principalmente em hemofílicos e em indivíduos que receberam transfusão de sangue. Segmentos populacionais intensamente atingidos no início da epidemia vêm apresentando um importante declínio ao longo do tempo. Essa queda é conseqüência do controle do sangue e hemoderivados, principalmente com a disponibilidade dos testes laboratoriais para detecção de anticorpos anti-HIV, a partir de 1986. Em 1984, essas subcategorias representavam 62% dos casos da categoria de exposição sangüínea e, em 2004, representam menos de 0,5%. Enquanto isto, o segmento de usuários de drogas injetáveis, que desde meados dos anos 80, passou a ocupar posição de destaque entre os casos por transmissão sangüínea, mantém-se em difusão em determinadas áreas geográficas. A participação dos UDI, entre as ocorrências de aids, desempenhou papel central no processo de expansão da epidemia para municípios de pequeno e médio porte, a partir de uma disseminação inicial ao longo da faixa que conecta o Centro-Oeste ao interior paulista e, mais recentemente, no litoral sul do País, bem como tem contribuído para o aumento de casos entre as mulheres usuárias de drogas injetáveis ou aquelas que contraíram o HIV por meio de relações sexuais com parceiros UDI. Destaca-se um predomínio da transmissão sexual para ambos os sexos, com baixas proporções de casos registrados em UDI, nas regiões Norte e Nordeste.

Com relação à transmissão vertical do HIV, ou seja, a transmissão da mãe infectada para o seu concepto durante a gravidez, parto ou aleitamento natural, observou-se um progressivo aumento desta categoria ao decorrer do tempo, como conseqüência direta da maior participação feminina entre os casos de aids no Brasil. No entanto, desde 1997, após a introdução universal da terapia anti-retroviral para gestantes de todo o país, observa-se uma redução significativa de novos casos de aids em crianças nascidas a partir daquele ano. Em 2004, foram notificados apenas 414 casos em menores de 13 anos.

Perfil socioeconômico dos casos de aids: a pauperização

A escolaridade tem sido utilizada como variável proxi de situação socioeconômica, e o fenômeno de pauperização tem sido caracterizado pelo aumento da proporção de casos de aids com baixa escolaridade. Houve expressiva mudança no perfil da escolaridade dos casos notificados entre adultos. Em 1985, o percentual de casos com nível superior ou médio era de 76%, enquanto apenas 24% dos casos eram analfabetos ou tinham cursado até os primeiros quatro anos do ensino fundamental. Nos anos subsequentes, houve uma tendência progressiva de aumento no registro de casos com menor grau de escolaridade, observando-se em 2000, entre os casos com escolaridade informada, que 74% eram analfabetos ou tinham cursado o ensino fundamental, e apenas 26% tinham mais de 11 anos de escolaridade ou curso superior.

Ana Maria de Brito é médica, mestre em Medicina Tropical pela Universidade Federal de Pernambuco e doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. É também pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fiocruz, e professora do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco, da Universidade de Pernambuco.

OBS.: Os dados utilizados neste artigo foram retirados de documentos oficiais do Ministério da Saúde, disponível no site: www.aids.gov.br: Boletim Epidemiológico AIDST, Ano I nº 01- 01ª à 26ª semanas epidemiológicas - janeiro a junho de 2004 / e Ano II nº 01- 01ª à 26ª semanas epidemiológicas - janeiro a junho de 2005 - ISSN 1517 1159