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Entrevistas
Rogério de Jesus Pedro

A busca por uma vacina que impeça a infecção do HIV segue como promessa desde que tiveram início os primeiros testes em 1987. Seu desenvolvimento, no entanto, não garantirá a erradicação da doença, conforme prevê o infectologista Rogério de Jesus Pedro, responsável pela Unidade de Pesquisas Clínicas da Unicamp, que atualmente testa oito medicamentos contra o HIV. “Uma doença transmissível por via sexual não desaparece da humanidade, porque mexe com o instinto”, enfatiza, lembrando que a cura não impediu que a sífilis continue presente há quase cinco séculos. Em um percurso pelos 25 anos da Aids, o especialista relembra os avanços significativos que ocorreram e reforça que, apesar de modelo no combate à doença, o Brasil ainda investe pouco em pesquisa e os medicamentos ainda estão longe de ser ideais. Rogério de Jesus contribui para o melhor entendimento da doença atuando nas áreas de ensino, pesquisa e atendimento dos soropositivos e, apesar de otimista sobre o desenvolvimento científico, admite que ainda falta muito para se falar em erradicação do vírus. Até lá, a palavra de ordem continua sendo prevenção.

Germana Barata
09/05/2006

ComCiência: O Grupo pela Vidda divulgou que 30 pessoas morrem de Aids diariamente no Brasil, outras 107 são internadas e 68 casos são registrados. O Brasil é considerado modelo no combate à doença e parece haver um sentimento de que a Aids não é mais um problema.

Rogério de Jesus Pedro: A Aids é uma doença com a qual, nestes 25 anos, aprendemos muito. Passamos do desconhecimento do agente etiológico para conhecer os detalhes do ciclo evolutivo do vírus, a maneira de replicação, como ele penetra e é eliminado das células, quais são as passagens que podem sofrer pressão de medicamentos para impedir que o vírus se replique. Mas, apesar dos conhecimentos estarem acumulados, esta é uma doença em evolução e a cada dia conhecemos mais detalhes. Aprendemos a controlar, mas estamos muito longe de pensar na erradicação do vírus, tanto no indivíduo infectado quanto na comunidade. Primeiro porque é uma doença que veio para ficar na humanidade, que aprendemos apenas a controlar quando usamos os mecanismos mais eficientes disponibilizados pela ciência, e porque temos que falar fortemente em prevenção. De maneira que a afirmação do Grupo pela Vidda é absolutamente esperada, normal.

Aprendemos, no entanto, como retardar sua evolução e, quando chegarmos à perfeição, aprenderemos a fazer com que a doença não progrida. Nossa pretensão atual é essa e não de erradicar o vírus. Temos muitos passos a dar até que um dia, que certamente virá, tenhamos condições de não apenas controlar, mas de erradicar o vírus.

ComCiência: Como o senhor vê a atuação do Programa Nacional de DST/Aids e o que falta para evitar novos casos?

Rogério de Jesus: Nosso modelo de saúde é surpreendente para o Brasil. Com tanta ineficiência do sistema público de saúde, o país, nesse aspecto, compreendeu a doença e tomou a iniciativa, muito consistente, de assumir sua existência entre nós. O Programa de Aids expõe nosso sistema de saúde como uma estrutura modelo. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem que ser cada vez mais aperfeiçoado, mas como programa de saúde é muito interessante, completo e tem poucos modelos com a mesma consistência no mundo. Isso não quer dizer que vivemos num sistema de saúde perfeito. A execução e o modelo têm que ser aperfeiçoados, mas o fato é que temos um modelo, de sistema único, que permite capilaridade de ações, para um país da extensão do Brasil, com questões de gerenciamento que atingem rapidamente todas as bases. E o Programa Nacional de Aids foi implantado nesse sistema e pôde ter uma ação universal. É uma conquista da sociedade, resultante de movimentos de organizações não governamentais, de cientistas, de técnicos da saúde, que compreenderam a abrangência da doença e executaram o programa. Os países que não têm um sistema de saúde organizado, precisam discuti-lo antes de implantar o programa de combate à Aids.

Nestes últimos anos, acho que o Programa não está tão eficiente, perdeu a ousadia. Houve muitas restrições e poucos progressos. Trabalha-se muito mais na sua manutenção do que em criar novas ações e ter uma maior abrangência. Mas continua sendo modelo para o mundo e mesmo para o Brasil, para outras doenças. Veja que está se usando o modelo para hepatites virais e pode ser replicado – usando um termo que é muito próprio dos vírus – para outras doenças brasileiras que estão sendo mal assistidas, como a tuberculose.

ComCiência: Como estão os recursos voltados para a pesquisa em Aids no Brasil?

Nesse campo não somos exemplo. O Brasil é um país que gasta muito menos com pesquisa do que deveria. O que é surpreendente é que recebemos muitos recursos internacionais, que são gerenciados ou executados em centros no Brasil, como o nosso. Mas os recursos para pesquisa no país estão muito aquém da expectativa, mesmo assim o nosso Programa viabilizou o reconhecimento nacional, pois ele é executado com competência, o que ajudou a obter financiamentos internacionais.

ComCiência: Os tratamentos disponíveis ainda são tóxicos, apesar dos avanços científicos que hoje possibilitam uma sobrevida de qualidade nos soropositivos. Qual é ainda a grande dificuldade de lidar com o HIV?

Rogério de Jesus: Houve, com certeza, muitos avanços na terapêutica. Passamos até 1987 com ausência completa de drogas ativas contra o vírus para depois começar, paulatinamente, a oferecer uma série de medicamentos que são reconhecidamente ativos e disponibilizados. Mas os tratamentos continuam sendo muito imperfeitos. Nosso caminho agora é evoluir para drogas que tenham um perfil mais favorável: menos toxicidade, de tratamento mais simples, que permitam melhor adesão e que, sobretudo, que não sejam tão indutoras de resistência do vírus. A resistência de anti-retrovirais é inexorável. E ainda, temos que considerar que a adesão ao tratamento é fundamental. O paciente não pode dizer, por exemplo, “agora cansei”, mas precisa entender que sobrevive com infecção enquanto não houver replicação viral, que é contida pelo tratamento. Uma vez que o paciente entenda isso e que os esquemas sejam mais simples, conseguimos levar isso ao longo da vida. É como um indivíduo que tem uma doença crônica. A produção de drogas retrovirais é um campo muito fértil, onde surgem novos medicamentos e esquemas a cada dia, mas não temos ainda drogas ou vacinas que sejam indicadas para impedir a infecção pelo HIV. Ainda estamos muito longe disso, pois o vírus é um especialista em formar mutantes que são diferentes do vírus selvagem e, portanto, consegue contornar os tratamentos.

ComCiência: A questão da vacina, desde o princípio, era esperada para os próximos cinco anos. O que mudou na medicina em relação à sua expectativa de combater os males da humanidade.

Rogério de Jesus: A Aids é uma doença que veio para ficar. Mesmo quando temos vacinas e medicamentos eficientes, é difícil erradicar uma doença. Mas o vírus da Aids é estranho, porque consegue ficar dormente dentro de células por muitos anos, na memória imunológica. Um complicador importante é que uma vez ativada a célula, ela se replica e expõe o vírus novamente. Além disso, a ciência não tem conseguido estimular a produção de anticorpos que tenham ação duradoura contra o vírus. Existem muitos estudos e investimentos para desenvolver uma vacina, de maneira que não acho que seja uma guerra perdida. Pelo contrário. A ciência vai encontrar, num determinado momento, um modo de produzir uma vacina efetiva. Mas daí a ter a aplicação prática dessa vacina, e controle da infecção, há uma distância muito grande. Uma doença como a sífilis, por exemplo, tem o Benzetacil® benzilpenicilina benzatina para o tratamento, no entanto, ela está há quase 500 anos na humanidade e não é erradicada, apesar de ter maneiras simples para isso. Uma coisa é produzir a vacina, a outra é controlar a disseminação da doença.

A Aids é uma doença que pode acometer qualquer um, não se pode ter ilusão de que exista alguém imune. Esta é uma doença que se transmite pela via sexual. Isso é uma tragédia. Uma doença transmissível assim não desaparece da humanidade, porque mexe com o instinto. E o indivíduo não está preocupado em se prevenir em determinados momentos. É a questão da sífilis: não é porque temos tudo na mão que essa doença vai desaparecer. Quando olho para a Aids sem vacina, eu acho que está muito pior do que a sífilis, mas se houvesse a vacina seria a mesma coisa que ocorre com a sífilis. Você acha que todo mundo vai se vacinar, todo mundo vai ter a mesma imunidade? Creio que, com as ferramentas na mão, a erradicação seja algo a ser almejado e, talvez demore, mas teremos uma vacina que impeça que as pessoas adquiram a infecção pelo HIV.

ComCiência: Uma das polêmicas sobre a origem da Aids e se o HIV seria mesmo o agente causador da doença, por não atender aos postulados de Koch. Como anda essa discussão atualmente?

Rogério de Jesus: Hoje temos evidências, em estudos de campo muito bem conduzidas por pesquisadores de várias origens, mas principalmente ingleses e norte-americanos trabalhando na África, que demonstram que o HIV 1 veio dos chimpanzés. O HIV 2, que é um outro agente e que tem pouco no Brasil, veio do macaco verde. Todos os dois, ao que parece, tiveram origem na África e a partir de retrovírus que infectam esses primatas. Assim, o rastreamento do vírus está, de certa maneira, definido. Houve adaptação do vírus à infecção humana, modificação e transformação num outro vírus, mas com muita homologia em relação a outros vírus de onde ele se origina, como indicam estudos filogenéticos. Este retrovírus existe nos animais há muitos anos; o homem apenas entrou e rompeu o equilíbrio desse nicho ecológico, por razões de contato com esses primatas de várias ordens, principalmente comendo a sua carne. Mas os postulados de Koch se aplicam. Se injetarmos o HIV num humano, se reproduz a infecção e a doença. De maneira que o HIV é o patógeno causador da infecção, sem dúvida nenhuma. A questão de dizer que isso é uma questão de comportamento, que o HIV é simplesmente um a mais, é uma visão ultrapassada.

ComCiência: Muitos médicos utilizaram a interrupção do tratamento como forma dos pacientes se recuperarem dos efeitos das drogas. Como está essa condução no tratamento?

Rogério de Jesus: Uma das coisas que estava em questão até muito recentemente era de propormos programas de tratamento, com uma diminuição da exposição do indivíduo a drogas, com o objetivo de diminuir as reações tóxicas, baixar custos etc. Mas no momento atual esse tipo de esquema está sendo desaconselhado, frente aos conhecimentos atuais que demonstram que nos grupos que interromperam o tratamento a infecção avançou mais do que nos grupos que o mantiveram. Então, a interrupção do tratamento não está mais na ordem do dia, não se justifica.