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Reportagem
Viagens, registros e representações
Por Cauê Nunes
10/06/2006

Diversos viajantes, desde o século XVI, exploraram o Brasil e registraram suas impressões sobre o povo brasileiro. Percorrer o país para encontrar evidências sobre sua formação e seu povo é algo que remonta à época dos jesuítas, e foram os padres os primeiros a fazer classificações de grupos indígenas no século XVI, reconhecendo os tupis e os tapuias.

Já no século XIX, o estudioso Carl von Martius fez novas divisões, reconhecendo nove grupos. Mas somente na segunda metade do século, houve um estudo mais sistemático com o etnógrafo alemão Karl Von Den Steinem, que realizou duas grandes viagens e fez contatos com diversos grupos.

Comuns nesse período, muitas das análises sobre os grupos indígenas traziam uma perspectiva evolucionista, como nessa passagem de Steinem: “Preciso confessar que eu não sabia muito bem se devia rir-me do indígena (...) ou se me devia entregar ao sentimento de perplexidade que se pode resumir na exclamação: quão diferente o mundo se espelha nessas cabeças!”. Assim, os relatos de viajantes dos séculos XVI ao XIX espelhavam uma determinada representação do índio brasileiro. Segundo o antropólogo e professor da Unesp, Edmundo Antônio Peggion, todo o processo de ocupação do território brasileiro nesse período estava pautado por um pensamento evolucionista. “A humanidade era concebida como se houvesse uma única cultura em estágios diferentes de evolução”, diz. Os índios estariam, portanto, em um nível de evolução inferior se comparado à “civilização européia”.

Peggion ressalta que a teoria evolucionista contribuiu para difundir a imagem de inferioridade associada aos grupos indígenas. “Nesse sentido, a antropologia legitimou e reafirmou uma condição que já estava colocada no senso comum”, diz.

De acordo com o professor da Unesp, a imagem do índio estava atrelada à imagem que se fazia do Brasil. “O país era visto como um lugar exótico e por isso o índio também”, afirma.

Já no início do século XX, outros estrangeiros vieram desenvolver suas pesquisas no Brasil. O alemão Theodor Koch-Grünberg fez pesquisas com grupos que vivem próximo ao rio Solimões e, além de classificar grupos, o etnógrafo também estudou sua iconografia e outras formas de produção.

O missionário francês Tastevin, que viveu no Brasil de 1906 até 1926, deixou, por sua vez, uma vasta documentação que serviu para muitos etnógrafos que vieram depois. Após 20 anos de experiência, Tastevin adquiriu um grande conhecimento sobre os diversos grupos que habitam a Amazônia.

O etnógrafo italiano Ermano de Stradelli também possui uma trajetória interessante. Ele deixou seu país, naturalizou-se brasileiro e viveu aqui até sua morte. Stradelli interessou-se pelas formas de escrita de alguns grupos, que usavam pedras para escrever, interpretou rituais religiosos e deixou artigos em vocabulário Nheêngatu-Português. Outro antropólogo de importância foi Nimuendajú, que não só estudou, mas viveu junto com grupos indígenas. O trabalho dele parte do princípio de que a construção do conhecimento deve ser compartilhada com os índios.

Peggion afirma que no final do século XIX, alguns antropólogos começaram a pensar a relação com os povos estudados de forma diferentes. “Frans Boas fez uma crítica dura ao evolucionismo. Para ele os evolucionistas não estudavam as diferentes formas de cultura dentro de seu próprio contexto e por isso tinham uma visão distorcida”, diz. Além disso, Boas desconstruiu o determinismo geográfico presente na antropologia. De acordo com Peggion, a partir dessa crítica muitos estudiosos passaram a se relacionar de forma diferente com os povos estudados.

Assim, os vários estudos historiográficos e iconográficos sobre esses registros sinalizam neles a formação de imagens ou de representações específicas, e diferentes em cada período, seja do índio, do país, e até da formação do povo brasileiro, já que os relatos de viagens são fontes importantes, por exemplo, para estudiosos como Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda.

Para Peggion, os “viajantes tradicionais” coletavam os dados através de informantes que, em geral, eram índios que já possuíam contato com os europeus. “Desse modo muitas informações vinham filtradas porque o informante classificava os grupos inimigos, por exemplo, de uma forma pejorativa”, diz. Em muitos casos, até o nome do grupo fornecido pelo informante não era o mesmo nome de autodenominação do grupo. Por isso, os antropólogos começaram a fazer suas próprias pesquisas de campo e o material produzido pelos viajantes passou a ser usado com mais parcimônia. “No começo do século XX, Malinowski desenvolveu seu próprio método de pesquisa e, a partir dele, outros fizeram a mesma coisa”, diz.

Rondon e o índio ideal

Ainda no início do século XX, o marechal Rondon coordenou uma expedição para implantação de redes telegráficas no Mato Grosso e na Amazônia. Nesse percurso, a Comissão Rondon, como ficou conhecida, fez uma série de registros fotográficos e cinematográficos dos grupos que encontrava. O material foi publicado em diversos livros assinados pelo próprio marechal.

Como Rondon estava ligado diretamente ao governo, as impressões da comissão acabaram transformando-se na “visão oficial” sobre o índio, mesmo que a intenção do marechal não fosse essa. De acordo com Fernando de Tacca, fotógrafo e antropólogo da Unicamp, no livro A imagética da comissão Rondon, a visão do índio retratada nas fotos divide-se em 4 categorias: a primeira é composta pela figura do bom selvagem, em que retrata o índio e seus costumes “primitivos”. O índio é tratado de forma genérica, como se não houvesse diferentes etnias. A segunda categoria é o índio pacificado, que teve contato com a civilização e já adquiriu alguns hábitos como o uso de roupas. A terceira categoria é a que compõe o índio integrado, ou seja, como a comissão tinha a perspectiva da construção de uma nação única e integrada, todos os habitantes teriam que compartilhar esse mesmo objetivo. A última categoria é a do índio civilizado, aquele que já incorporou vários hábitos e a educação da “civilização ocidental”.

Estudos etnográficos posteriores a esse período procuram desmistificar a imagem de índio ideal. Com o desenvolvimento da antropologia ao longo do século XX, as muitas “escolas” passaram a estudar os grupos indígenas de diferentes formas. O culturalismo, por exemplo, foi importante para contextualizar e buscar entender os grupos dentro desse universo. Já o funcionalismo trouxe grandes contribuições para se compreender as estruturas de cada sociedade. Assim, a idéia do índio ideal foi pouco a pouco sendo ultrapassada na antropologia. Peggion ressalta, no entanto, que a perspectiva evolucionista é ainda hoje encontrada no senso comum.

A antropologia e as viagens de pesquisa

Eu odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar minhas expedições”. É assim que ironicamente Claude Lévi-Strauss começa o livro Tristes trópicos, o qual relata sua experiência no Brasil, entre os anos de 1935 e 1938. O antropólogo argumentava que existem tantos empecilhos durante uma viagem de pesquisa, que o tempo que se perde com acontecimentos insignificantes é muito grande. “Não há lugar para a aventura na profissão de etnógrafo”. Isso não quer dizer que Lévi-Strauss não dê importância à pesquisa de campo, muito pelo contrário, a pesquisa é tão importante que não pode se resumir à aventura. É dessa forma, que as viagens de pesquisa mais recentes desmistificam a imagem da própria viagem difundida por viajantes de outros períodos.

De acordo com o antropólogo do Museu Nacional, Eduardo Viveiros de Castro, em meados do século XX a antropologia se profissionaliza. Os viajantes ou exploradores que caracterizaram a etnografia até então dão lugar aos antropólogos propriamente ditos. As pesquisas de campo passam a ter uma metodologia mais sistemática e organizada. É nesse contexto que se enquadra Lévi-Strauss. Segundo Castro, a viagem do francês ao Brasil foi de grande importância para a formação do antropólogo. “A viagem teve mais significado do ponto de vista da formação do que do sucesso na pesquisa propriamente dita”, diz. O próprio Levi-Strauss só se reconhece enquanto antropólogo depois dessa experiência.

Após deixar o Brasil, Lévi-Strauss passou um tempo nos Estados Unidos, onde teve contato com a teoria antropológica e pode completar sua formação. “Existem os dois momentos: o da pesquisa em campo e o do estudo de toda a teoria sobre o assunto”, diz Castro, que ainda define a importância do campo para a antropologia: "Se não viaja, não é antropólogo".

Apesar da afirmação, o antropólogo do Museu Nacional ressalta que ir a campo não significa fazer longas viagens para lugares longínquos. Todo o desenvolvimento da antropologia urbana necessita de pesquisas em lugares não tão distantes assim. Castro ainda ressalta que atualmente as viagens são de mão dupla. "Antes só nós íamos para lugares distantes fazer pesquisas, agora eles também vêm nos pesquisar", diz.

De acordo com a antropóloga do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Mariza Corrêa, as viagens são o modo de se aproximar de outros grupos sociais. "É no contato com essas pessoas, cuja visão de mundo é distinta da nossa que se dá a construção do conhecimento antropológico. Às vezes nem é necessário viajar tomar um ônibus até a periferia de São Paulo ou do Rio de Janeiro basta", diz.

Corrêa ainda chama a atenção para o fato de que o processo do conhecimento tem dois momentos: o da pesquisa e o da escrita. "Como diz Geertz, fazemos a pesquisa lá, mas escrevemos aqui e daí é preciso levar em conta a opinião de nossos colegas, outros antropólogos", afirma.

Transformação provocada pelo contato

Assim como a estada no Brasil foi importante para a formação de Lévi-Strauss, outros antropólogos também foram influenciados pelas experiências em viagens. Um caso muito interessante é o do francês Pierre Verger. Ele começa a carreira como fotógrafo e conhece diversos países como o Japão, Estados Unidos e China. Em 1935, Verger viaja para a África Ocidental e começa a se interessar por antropologia, mesmo sem ter formação na área. Publica na revista brasileira Cruzeiro uma série de reportagens sobre descendentes de escravos brasileiros que decidiram voltar para a África.

A partir disso, Verger passa a freqüentar as religiões africanas e se envolve com o candomblé não somente como observador de fora, mas sim como alguém que está dentro, participando dos rituais e exercendo funções. O envolvimento é tanto que ele chega a mudar de nome, como declara nessa carta a um amigo: "Encontrei sua carta no retorno de Kétou, onde eu cheguei Pierre Verger e de onde voltei Pierre Fatumbi Verger (...). Ademais rompi assim as últimas relações com o que ainda tinha de minha família e, se mais tarde me acontecer de mentir a um profano, terei mesmo mais restrição mental a fazer e lhe declarar: se isto não é verdade, que não me chame mais Pierre Verger".

Em 1946, Verger chega ao Brasil, mais especificamente em Salvador. Seu envolvimento com o candomblé, que já havia ultrapassado o mero interesse intelectual, fica ainda mais evidente. Após ser aceito na religião, Verger passa a exercer funções dentro da religião e ganha mais um nome: passa a se chamar Pierre Fatumbi Verger Ojuobá.

Se para Lévi-Strauss a viagem ao Brasil teve um significado de formação e construção de identidade enquanto antropólogo, para Pierre Verger as viagens representaram um processo de desconstrução de uma identidade, mostrando uma outra faceta do contato.