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Reportagem
Von Martius: viajante-naturalista-historiador
Por Maria Guimarães e Mariella Oliveira
10/06/2006
Do azul escuro do mar, elevam-se as margens banhadas de sol e no meio do verde vivo destaca-se a brancura das casas, capelas, igrejas e fortalezas. Atrás levantam-se audaciosos rochedos de formas imponentes, cujas encostas ostentam em toda a plenitude a uberdade da floresta tropical. Odor ambrosiano derrama-se dessa soberba selva, e, maravilhado, passa o navegante estrangeiro por entre as muitas ilhas cobertas de majestosas palmeiras”. É esta a primeira impressão dos naturalistas Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix ao aproximar-se da “grandiosa entrada do porto do Rio de Janeiro”. O botânico e o zoólogo chegavam ao Brasil como parte da comitiva da arquiduquesa Leopoldina, que vinha casar-se com o futuro imperador Dom Pedro I.




Von Martius foi condecorado com a "Ordem de Mérito Civil"

Em sua viagem, Martius e Spix percorreram cerca de dez mil quilômetros entre 1817 e 1820. Os pesquisadores partiram do Rio de Janeiro, de onde rumaram para o norte pela Mata Atlântica, com a intenção de devassar o interior, pois o litoral já era bastante conhecido, como conta a historiadora Karen Lisboa, do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Livre de Berlim. A partir de Belém do Pará eles atravessaram grande parte da bacia amazônica, e de Belém embarcaram de volta à Europa.

Foi uma viagem longa e minuciosa”, diz Manoel Salgado Guimarães, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assim como o relato da expedição, Viagem pelo Brasil (Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1981). As descrições abarcam selva, gente, arquitetura, marés, história, costumes, doenças e muito mais. O livro traz até cantigas, representadas por partituras e versos.


Percurso Brasil afora percorrido por Spix e Martius

Salgado Guimarães explica que, embora fosse botânico por formação, Martius tinha o espírito das viagens filosóficas vigente na época, na tradição de Humboldt. Por isso, o empreendimento não podia ser voltado para questões específicas. Para compreender a natureza era preciso falar da geografia, de aspectos hoje chamados de antropológicos, de história etc. “Era um viajante-filósofo”, conclui o historiador da UFRJ. E o relato dos próprios viajantes justificam suas coletas: “O Brasil, fechado durante séculos consecutivos às investigações dos europeus, oferecia farta oportunidade de enriquecer com fatos aquelas ciências, e, quanto aos meios para atingirmos esse alvo, não tínhamos escolha. Pareceu-nos mais acertado colecionar, durante a viagem, exemplares tanto de formações geológicas, quanto de curiosidades etnográficas, e, em particular, de animais e plantas, dar assento em nosso diário, a descrições e notícias minuciosas tanto quanto possível, e com isso preparar uma exposição científica, uma vez de volta à pátria”.

De acordo com Salgado Guimarães a exposição nunca chegou a acontecer. De todo modo, as contribuições de Martius a partir da viagem e do material coletado foram inúmeras. Destaca-se a Flora Brasiliensis, um inventário das espécies vegetais brasileiras que reúne todo o conhecimento existente na época. São quase 23 mil espécies, com cerca de 4 mil ilustrações de imenso detalhe e rigor. Até hoje é esse o único inventário da flora brasileira, embora muitas espécies tenham sido descritas e muita informação acrescida no século que se seguiu à publicação da obra.

Uma obra moderna do século XIX

Até março deste ano, consultas à Flora Brasiliensis se restringiam a especialistas, pois os exemplares das bibliotecas universitárias são protegidosem salas de obras raras. Mas a iniciativa conjunta de diversas instituições de pesquisa de criar a Flora Brasiliensis On-line (ver notícia na ComCiência) mudou a situação. No portal na internet, desenvolvido pelo Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), qualquer pessoa pode ver as ilustrações da obra de Martius ampliadas em grande detalhe sem perda de definição, além de informações sobre o conteúdo das imagens, tais como o nome científico da planta, volume em que se encontra, número, página etc.. As estatísticas disponíveis no site mostram que desde o seu lançamento, a Flora Brasiliensis On-Line tem recebido cerca de 10 mil visitantes por mês.""

cha da Flora Brasiliensis, agora disponível na internet

Segundo Vanderlei Canhos, diretor do Cria, a Flora Brasiliensis foi selecionada para o projeto por ser a obra histórica com maior valor científico e cultural, em termos mundiais. “Entre 1840 e 1906, contribuíram para sua realização cerca de 60 especialistas internacionais, os melhores da época”, detalha. Entre os ilustradores, o grupo incluía o pintor de paisagens Thomas Ender e o desenhista de plantas Johann Buchberger.

Mas o projeto não se restringe a disponibilizar a obra de Martius ao público. Em julho deste ano, pesquisadores de diversas instituições internacionais se reunirão na sede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para discutir os rumos do projeto, que pretende elaborar uma listagem atualizada da flora brasileira. A obra de Martius contém quase metade do total de espécies vegetais estimado para o Brasil. Além de incluir no levantamento todas as plantas já conhecidas, o projeto visa atualizar sua nomenclatura. “Cerca de 50% dos nomes estão desatualizados”, diz Canhos. O workshop reunirá representantes das maiores instituições botânicas do mundo, como os jardins botânicos de Missouri e Nova Iorque (EUA), o Smithsonian (EUA), o Jardim Botânico de Kew (Inglaterra), o de Berlim (Alemanha) e o Museu de Paris (França). A idéia é ligar os bancos de dados das instituições, de forma a integrar a informação disponível a respeito de todas as plantas brasileiras. O evento, cujo programa será divulgado este mês, incluirá um simpósio internacional aberto a interessados e um workshop para especialistas.

E o projeto não pára por aí, “Martius foi só o começo”, afirma o diretor do Cria. Ele esteve recentemente no Museu de Paris, que abriga os cadernos e plantas coletadas por Saint-Hilaire, outro naturalista que percorreu o Brasil. A partir do ano que vem, Canhos pretende iniciar a digitalização desse material e, em seguida, de outros naturalistas-viajantes. “Todas as instituições que participarão do workshop têm material coletado no Brasil por outros naturalistas; nosso objetivo é recuperar toda essa informação disseminada pelo mundo”.

Raça e cultura

Além de ser um dos grandes sistematizadores da botânica brasileira, Martius descreveu também aspectos da sociedade brasileira. Suas anotações assustam, tamanha a desvalorização explícita do indígena. Para ele, os índios seriam vestígios de uma cultura sofisticada no passado, mas que ruiu. Um povo degenerado tanto cultural quanto fisicamente, incapaz de criar artes elaboradas ou qualquer esforço intelectual. Seus relatos demonstram sua crença na idéia de que as espécies podem mudar, mas tendem à degeneração e ao desaparecimento. “Ele via os indígenas como restos de uma cultura”, afirma a professora e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz e da UERJ, Lorelai Kury

Com seu espírito enciclopédico Martius buscava reunir o conhecimento em sua totalidade, ao invés de se prender unicamente às ciências naturais, daí a vontade de escrever sobre aspectos etnográficos do Brasil”, conforme relatam Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).



Ilustração de Viagem pelo Brasil, que mostra mameluca
(descendente de “pai caucásio e mãe de raça indígena americana”)
e cafuza (“raça intermediária entre o indígena americano e o negro”)

Esse interesse o levou a participar de um concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que buscava um novo plano para relatar a história da nação. Martius venceu o concurso com o texto "Como se deve escrever a história do Brasil", no qual propunha que a história fosse escrita não só a partir dos portugueses e seu papel de colonizadores – como já se fazia – mas englobando a língua e os costumes indígenas, a atuação dos jesuítas, a relação entre a igreja e a monarquia e o modo de vida colonial.

Apesar de premiado, seu modelo para escrever a história do Brasil não foi seguido. As idéias apresentadas pelo botânico eram filosóficas, humanistas, mas não agradaram a elite da época, que negou, até o início do século XX, a mistura racial que ele acreditava constituir a identidade nacional com efetiva participação das raças branca, negra e indígena, no desenvolvimento físico, moral e civil da sociedade.

Para os pesquisadores da UFMT os escritos de Martius foram essenciais para incluir as etnias na formação do Brasil. “Foi uma ante-sala do discurso da miscigenação, fundamental para definir a identidade nacional” diz Karen Lisboa.


Referência e modelo de difusão científica

Influenciado pelo pensamento histórico alemão do século XIX, Martius quis inserir o Brasil na história universal “Von Martius é uma referência fundamental para se entender o século XIX, através de escritos literariamente agradáveis, com descrições tanto da Mata Atlântica, como das sensações do viajante diante da paisagem e dos nativos”, relata Kury.

Terminada a viagem, o estado francês, interessado nos empreendimentos científicos, publica através do Ministério da Marinha e das colônias da França uma espécie de cartilha para os viajantes. O guia orientava os cientistas como recolher e preparar os materiais e amostras, enviá-las à França e também como redigir os diários de viagem. Além disso, enumerava os objetos mais desejados de cada região do planeta, a serem coletados pelos viajantes para compor uma coleção nas instituições européias.