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Reportagem
O exótico e o pitoresco nas pinturas
Por Susana Dias
10/06/2006

Aanálise das imagens do Brasil produzidas por artistas viajantes desperta interesse entre pesquisadores há muito tempo. Em parte porque essas imagens dizem algo da história, do povo que aqui vivia, dos estrangeiros que para cá vieram, de como se organizavam as cidades, as formas de trabalho, e as plantas e animais que aqui existiam. Mas, sobretudo, porque as imagens dos viajantes dizem também da história dos seus autores, dos lugares e sociedades a que pertenciam, das influências que recebiam e que passavam para as suas obras, e das escolhas técnicas que faziam. Como diz Ana Maria Beluzzo, pesquisadora de história da arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo, em artigo publicado pela Revista USP, “o olhar dos viajantes espelha, também, a condição de nos vermos pelos olhos deles”.




O Tupinambá em "Adoração dos Magos", Vasco Fernades (1505),
Museu de Grão Vasco em Viseu, Portugal

As imagens dos viajantes participam assim da construção da identidade européia e brasileira num jogo de aproximações e distanciamentos, de estabelecimento de diferenças e semelhanças. Não é de admirar que predomine na maior parte das cenas pintadas pelos viajantes “um Brasil exótico, reiterando a necessidade de identificar o nativo do Brasil como um ser diferente, produto de um mundo que não é europeu”, como analisa a professora Elisa de Souza Martinez, coordenadora da Pós-Graduação em Arte do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB). Martinez destaca ainda que “em alguns casos, as semelhanças entre o homem europeu e o brasileiro são trabalhadas de modo a vestir este último com uma certa humanidade aceitável aos olhos do primeiro. Se por um lado a identificação do aspecto selvagem justifica a caça e o extermínio do nativo, por outro, a humanidade atribuída ao selvagem bom é um recurso para catequizá-lo e salvá-lo do inferno a que os canibais se destinam”.


Um índio ocupa o trono da tela O inferno”, autoria desconhecida,
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

Luciana Rossato, no artigo “Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris”, também ressalta a predominância de imagens exóticas e pitorescas do Brasil. Entretanto, mostra as diferentes escolhas feitas pelos artistas Choris e Jean Baptiste Debret. O pintor e litógrafo russo Choris achava que as vilas e as pessoas que as habitavam se tornavam secundárias diante da majestosa “natureza ainda selvagem” que o Brasil oferecia. Suas pinturas retratam essa pequenez do ser humano em meio à colossal e exuberante vegetação. Já o francês Debret deixa de lado a suntuosa riqueza natural brasileira e a humanidade em seu estado dito “natural” e se interessa pela sociedade brasileira, pelos acontecimentos e modos de vida nas vilas e no campo. O que é periférico para um é central para o outro. Como resultado, as pinturas desses artistas oferecem “Brasis” muito diferentes, embora o exótico e o pitoresco também apareçam nas telas de Debret.


A família real no Rio de Janeiro por Jean Baptist Debret (1934)

A viagem como experiência artística

Se as imagens produzidas pelos artistas dão muito o que pensar, o que não dizer da própria experiência da viagem como parte da produção artística. O desafio de ver com os próprios olhos o Novo Mundo e retratar as impressões e sensações experimentadas durante a viagem por meio de desenhos e pinturas atraiu muitos artistas.

Alguns vieram ao país em expedições científicas e, embora às vezes também tenham se dedicado a produzir obras de outra natureza, tinham como meta registrar detalhadamente a fauna e a flora local, a topografia, os tipos humanos, as cidades e seus costumes etnográficos. Nestes casos, as viagens apresentavam objetivos naturalistas e científicos e pretendiam preservar espécimes animais, vegetais, povos nativos, cidades, processos de colonização e ocupação por meio da imagem. Em "Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem" Lorelay Kury, da Fundação Oswaldo Cruz, lembra que “a viagem é em geral considerada pela história natural como uma das etapas necessárias para a transformação da natureza em ciência”.

Entre os artistas que produziam material para pesquisa havia, por vezes, uma busca por imagens mais exatas e confiáveis do objeto. Entretanto, não dá para falar em “pureza científica” na produção artística, pois, como ressalta Martinez “as obras desses pintores são fundamentalmente pinturas. Todas as obras de arte nos dizem algo sobre o artista, sua função social, os valores artísticos de sua época e as condições de produção”.


"Índia Tapuia" ou "Índia Tarairiu" Albert Eckhout (1641),
Coleção Nationalmuseet, Dinamarca

A impossibilidade de retratar as viagens pelo Brasil de forma objetiva e neutra também saltam aos olhos quando se lembra como acontecia a produção dessas imagens. Durante as expedições, grande parte dos artistas buscava colher a maior quantidade possível de informação visual em pouco tempo e, por isso, davam preferência ao desenho ou à aquarela sobre papel em pequenos formatos. Em outro momento, muitas vezes já longe do Brasil, como aconteceu com Albert Eckhout e Franz Post, as anotações, os desenhos rápidos e rascunhos se transformaram em pinturas a óleo sobre tela ou madeira em um processo de execução que poderia demorar vários meses. Nesse processo, uma viagem pelo imaginário, pela memória, pelos registros e pelas técnicas dava forma às cenas.

Além disso, Rossato lembra que muitas imagens eram retratadas a partir de lugares-comuns para se ajustarem ao gosto do público europeu. Ao retornarem aos seus países de origem os pintores adequavam suas observações aos gostos difundidos entre o público-alvo de suas obras. Na Europa, por exemplo, difundia-se uma estética que valorizava o passado, as paisagens naturais, cultivando-se o gosto pelo pitoresco e pelo sublime, numa visão estetizada da natureza, no momento em que a paisagem do velho Mundo era profundamente transformada devido à Revolução Industrial.

Mas não foram apenas motivações “científicas” que trouxeram aqui os artistas. Muitos vieram movidos pelo ideal romântico, como andarilhos que desejam viver o Novo Mundo para pintá-lo. Atravessaram as florestas em busca de um cenário magnífico. Entre eles destacam-se Tomas Ender, João Mauricio Rugendas, François-Auguste Biard, Henrique Nicolau Vinet e Jorge Grimm, tendo sido este último de grande influência para a formação de geração de paisagistas brasileiros ao decidir pintar ao ar livre, longe do ambiente artificial dos ateliês.

Influências dos viajantes

A vinda de pintores das mais diversas partes do Velho Mundo para o Brasil – entre eles russos, alemães, portugueses, holandeses e italianos – trouxe novos rumos para as artes no Brasil. Leci Maria de Castro Augusto Costa, pesquisadora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), destaca o papel relevante da família Taunay na inserção da pintura de paisagem ao universo cultural brasileiro, em função dos artistas viajantes, Rugendas e Thomas Ender, que introduziram na representação paisagística, entre outros elementos, “a intenção e emoção do artista, noções de composição na definição dos grandes espaços, noção de ordem no resultado da configuração da cidade, e de desordem na ilustração da natureza, e ênfase nas horas do dia para observação de suas variantes de luminosidade”.

Leci Costa aponta ainda, como resultado de sua pesquisa de mestrado, a influência de Johan Georg Grimm na pintura de paisagem. Segundo ela, antes da chegada de Grimm as aulas da cadeira de paisagem flores e animais na Academia Imperial de Belas Artes se baseavam na cópia de estampas européias, influenciadas pela estética neoclássica e com ênfase na técnica. Ao se tornar professor da cadeira, Grimm “iniciou um processo de afastamento dos modelos pedagógicos do ensino acadêmico, uma valorização da pintura ao ar livre e a ênfase à luminosidade como elemento de definição de volume”. (Leia mais no artigo Grupo Grimm: o paisagismo tropical).

Elaine Dias, pós-doutoranda da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ressalta também a importância das exposições locais, não apenas no Brasil, mas em outros países da América do Sul. As exposições permitiam o contato com as mais diversas técnicas, materiais e formas de pensar e produzir as pinturas. “O italiano Alessandro Cicarelli e o francês Quinsac de Monvoison, por exemplo, expuseram suas telas na Academia de Belas Artes e desempenharam um papel importante no Chile, na fundação da Academia de Belas Artes de lá, após passarem pelo Brasil”, diz. O alemão Rugendas, autor de obra Voyage Pittoresque dans le Brésil, membro da expedição de Langsdorff, também expôs suas obras na Academia de Belas Artes brasileira e depois no Chile.

Acervos espalhados pelo mundo

As obras dos artistas viajantes estão espalhadas por várias coleções, brasileiras e estrangeiras. “As paisagens de Franz Post, artista viajante que aqui esteve no século XVII, estão no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu do Louvre, National Gallery (Dublin), Masp, Rijksmuseum Amsterdam, além de outras coleções na Alemanha e Holanda”, exemplifica Elaine Dias. A pesquisador lembra também que existem coleções conservadas nos museus de São Paulo e no Rio de Janeiro, entre as quais a Coleção Geyer, de acervo pertencente ao Museu Imperial, em Petrópolis. O Museu Castro Maya e o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro também dispõem de exemplares importantes de várias obras. Em São Paulo, Dias destaca a importantíssima Coleção Brasiliana, da Fundação Estudar.

Muitas obras só estão acessíveis em livros, como as pinturas do artista russo Louis Choris que podem ser encontradas nas publicações Ilha de Santa Catarina: relato de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX e Vues et paysages des régions équinoxiales recueillis dans un voyage autour du monde, disponível na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. A biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, também possui uma cópia do Voyage pittoresque autour du monde, publicado em Paris em 1822. (Leia mais sobre acervos de artistas viajantes)

Martinez lamenta não existir no Brasil um museu dedicado aos modos de documentação e interpretação do Novo Mundo, no qual o trabalho realizado por artistas itinerantes europeus poderia ser estudado e valorizado. “Isso permitiria aos interessados, historiadores da arte ou pessoas com diversos interesses, não apenas ter acesso a documentos esparsos, mas também a compreender os processos históricos, econômicos, políticos, culturais e artísticos aos quais as obras estão vinculadas”, comenta.

Detalhes sobre alguns dos artistas viajantes que passaram pelo Brasil:

(1555) Jean Gardien acompanha Jean de Léry em uma viagem ao Brasil. A viajem resultou na publicação de Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil em 1578.

(1630-1654) Franz Post, Albert Eckhout, Georg Marcgraf e Zacharias Wagener acompanham João Mauricio de Nassau-Siegen durante o período do domínio holandês no nordeste brasileiro.

(1815-1818) A expedição “Rurick”, organizada pelo chanceler do Império Russo, Romanzov, traz o pintor e litógrafo Louis Choris. A passagem pelo país se deu apenas na ilha de Santa Catarina.

(1816) A Missão Artística Francesa, chefiada por Joaquim Lebreton, trouxe em 1816 artistas como os pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny. Esse grupo organizou, em agosto de 1816, a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, transformada, em 1826, na Imperial Academia e Escola de Belas-Artes.

(1817) A Missão Científica Austríaca chega ao Brasil como parte da comitiva da princesa Leopoldina, prometida em casamento ao príncipe D. Pedro. Entre eles o zoólogo Johann-Baptiste von Spix e o médico e botânico Carl Friedrich Philipp von Martius, ambos alemães, que editam após suas viagens grandes obras referentes aos seus estudos, entre eles, o livro Flora Brasilienses. Os valiosos desenhos atualmente estão acessíveis na internet graças ao projeto Flora Brasiliensis On-line, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Natura Cosméticos e Fundação Vitae de Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social. O austríaco Tomas Ender também fez parte da comitiva. Nos três volumes de Viagens ao Brasil nas Aquarelas de Thomas Ender é possível encontrar 796 imagens - entre paisagens rurais e urbanas, cenas do cotidiano e retratos de pessoas e objetos de uso caseiro - pintadas por ele entre 1817 e 1818.

(1821-1826) A escocesa Maria Dundas Graham Callcot, autora do Diário de uma Viagem ao Brasil publicado em 1823 foi, entre esse ano e 1826 preceptora da jovem princesa D. Maria da Glória, futura rainha de Portugal. Nesse período tornou-se amiga íntima da imperatriz, Arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria, com quem compartilhou seus interesses pelas ciências naturais.

(1824 e 1829) A expedição Langsdorff, que contou com a presença de grandes artistas viajantes como o alemão João Mauricio Rugendas e francês Hercules Florence.

(1882-1884) Johann Georg Grimm vem para o Brasil e torna-se professor na Academia de Belas Artes. Foi um dos artistas que levou os alunos para fora dos ateliês, para terem contato com a natureza, e influenciou os padrões acadêmicos da pintura das paisagens. Outros pintores estiveram no Brasil no século XIX, também com objetivos artísticos, como o suíço Abraham Louis Buvelot, o francês Henrique Nicolau Vinet, que se fixou no Rio de Janeiro, e o francês François-Auguste Biard.