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Reportagem
Diferentes modos de ser belo
Por Patrícia Mariuzzo
10/07/2006

Nenhum outro animal na natureza transforma o próprio corpo tão violentamente como os seres humanos. Essa transformação é parte do processo de humanização, que transforma o corpo num artefato cultural. Perfurações, tatuagens, escarificações, pinturas, são exemplos de modificações que funcionam como sinais de identidade social. Esses sinais, por sua vez, podem variar conforme cada cultura e também conforme os diferentes segmentos sociais no interior de um mesmo grupo, de acordo com a religião e o momento histórico. Como explica o antropólogo da USP, Renato da Silva Queiróz, também varia em cada comunidade o modo como são avaliadas e como se atribuem aspectos positivos e negativos a diferentes partes do corpo. Por isso, algumas recebem ornamentação mais elaborada porque são as partes socialmente mais valorizadas. Os índios Bororo, que vivem na região da bacia do rio São Lourenço, estado do Mato Grosso, enfeitam os lábios dos bebês para fortalecê-los e fazê-los crescer.

 

Nas comunidades indígenas, entretanto, o conceito de beleza é bem diferente do das sociedades ocidentais, pautadas por uma beleza fortemente corporal e anônima, sem história, que desvincula a aparência física das ações e modo de ser do sujeito. Assim, para eleger um indivíduo como belo, é considerado também o comportamento e as qualidades morais, além dos atributos físicos. Segundo a Renate Viertler, antropóloga que pesquisa os Bororo, para eles beleza implica em saúde, conduta socialmente correta e, principalmente, generosidade. Aquele que nada dá também deixa de receber e, por isso, é visto como mau, triste, feio e perigoso. A tristeza é irmã da feiúra, pois, na medida em que nada dá, nem faz para o seu semelhante, o indivíduo também não recebe cuidados corporais, ornamentos, presentes e outras coisas alegres da vida.

 

Se embelezar, se proteger, pertencer

 

É indispensável o uso de adornos e pinturas, que servem para realçar a beleza mas também para criar qualidades e proteger. Já os enfeites também agem como remédios. Algumas pinturas no corpo e no rosto têm a função de proteger contra doenças e maus espíritos. Para esses índios, ser humano significa não ter pelos no corpo. Assim, a depilação é requisito fundamental à beleza corporal, purificando certas partes e realçando o efeito estético das pinturas e adornos. Por causa desse padrão, os Bororos acham feios os rostos e corpos dos não-índios, cobertos de pelos. Conforme conta Viertler, eles criticam e desprezam a aparência física e os hábitos dos “civilizados”, bem como dos representantes de outras etnias. “O belo é associado ao mundo do semelhante e do conhecido, portanto, benéfico e tranquilizador. Enquanto isso, o feio remete ao diferente, ao desconhecido e ao imprevisível, pousada do inimigo e morada dos maus espíritos, que amedrontam qualquer ser humano”, explica.

Para ser belo entre os Bororo não é necessário apenas saber quais são os alimentos adequados, é preciso saber como consumi-los, ou seja, é preciso comer pouco. “Desvalorizam-se todos aqueles que, comendo muito, comem como porcos, bem como aqueles que ostentam barrigas e adiposidades, sinal de indolência e incontinência sexual”, descreve Viertler. É comum apelar para o vômito para afinar e tornar leve o corpo, principalmente em casais de pais de bebês recém-nascidos e de rapazes solteiros. “Os vômitos são vistos como técnicas de purificação e de fortalecimento. Por meio deles, é possível beneficiar o corpinho frágil das crianças que são vistas como prolongamentos vivos de seus pais”, diz ela.

 

O ideal do rosto é representado por uma cara achatada, semelhante à face do herói Onça, personagem mítico. Cabe à mãe achatar o rosto ainda mole dos bebês, enquanto o pai toma para si o encargo de desenvolver a força e a resistência dos filhos homens e solteiros, por meio de extenuantes exercícios físicos. Eles não gostam de nada mole e solto. Partes moles da cabeça como lábios inferiores dos meninos e lóbulos das orelhas dos jovens de ambos os sexos são perfurados para serem enrijecidos pelo uso de adornos labiais e brincos. Os indivíduos devem se apresentar com boa aparência física, bem cuidados e perfumados com resinas, bem compostos, endurecidos e amarrados, para serem bem recebidos no seu meio social.

Por estar associada a virtudes sociais, a beleza também pode ser alcançada por homens e mulheres maduros, ou seja, a beleza não é prerrogativa dos jovens. “A filosofia de vida dos indígenas permite que um adulto, sem maiores atrativos físicos, segundo nossa ótica de 'civilizados', possa chegar a ser visto como belo e sedutor, na medida em que pode desenvolver uma série de virtudes e competências sociais. Dentre elas, ressalta-se o controle das emoções, qualidade pessoal bastante valorizada pelas culturas indígenas, resultante de um prolongado processo de educação, conduzido por parentes dedicados”, destaca a antropóloga. A beleza é alvo de um esforço coletivo a ser reconquistado por todo bebê que surge em determinado tempo e em seu espaço de origem.

 

Do mesmo modo que entre os indígenas, também entre os muçulmanos, a beleza não é dada apenas por meio de dotes físicos. Homens e mulheres devem se destacar por suas qualidades intrínsecas, capacidade, inteligência e pela obediência às tradições religiosas que recomendam o recato e a discrição. “A maneira de viver e de tratar o próximo é que conferem beleza”, explica Helmi Ibrahim Nasr, do Centro de Estudos Árabes da USP e que traduziu o Corão para o português. Segundo ele, a boa conduta é mais valorizada nas mulheres pelo fato da cultura islâmica, ao contrário do que pensam os ocidentais, valorizar o papel feminino, principalmente as mães. “A mulher é vista como uma jóia, como algo que deve ser guardado, protegido”, salienta Nasr. Elas devem usar roupas folgadas, com tecidos leves que impeçam que a forma do corpo seja percebida. A recomendação é para que se opte por modelos simples de modo a não atrair a atenção das pessoas. Ao mesmo tempo, a mulher não deve ser desleixada ou suja. Para as casadas, é obrigatório o uso do véu cobrindo a cabeça que, mais do que um modo de vestir, reflete um comportamento, uma forma de falar e de aparecer em público que identifica a mulher como sendo muçulmana. O homem deve adotar a barba, que, segundo a tradição islâmica é uma marca masculina. Segundo o professor da USP, na Arábia Saudita, 95% dos homens usam barba.

 

O islamismo é um exemplo de como a religião conforma comportamentos e define padrões de beleza que se tornam naturais para os indivíduos. “As recomendações dadas pela religião são vistas pelos praticantes como formas de proteção e não como castigo, como restrições. Restrição é a visão do ocidente”, destaca Nasr.

 

Fidelidade ao grupo através das roupas

 

Enquanto os muçulmanos protegem as mulheres no ambiente externo, outra comunidade, a dos ciganos, faz questão de afirmar sua identidade para o mundo exterior, sendo a mulher o principal instrumento desta afirmação. Diferentemente também dos grupos indígenas, os rituais de beleza entre os ciganos concentram-se especialmente no vestuário das mulheres. “A identidade cigana é expressa nas relações com os não-ciganos, predominantemente pelas mulheres, que trazem essa identidade no corpo, nos modos de vestir”, conta Eliane Medeiros Borges, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, que estudou esse tema. Segundo ela, isso não quer dizer que não haja a consciência ou o sentimento dessa identidade entre os homens, mas isso não precisa ser mostrado do ponto de vista do corpo masculino. Em geral, eles se vestem de forma muito semelhante aos não-ciganos. “Entre os ciganos o vestuário aparece desdobrado em várias conotações, muito além da função mais imediata de revelar uma cigana ou cigano como tal”, completa ela.

 

Os mais jovens têm a liberdade de usar roupas comuns como saias curtas e jeans mas, a partir do casamento, quando assumem sua responsabilidade como mulher e mãe na comunidade, as ciganas passam a usar obrigatoriamente as vestes tradicionais: sais longas e largas, blusas decotadas, lenço na cabeça, muitas jóias. Tudo com muitas cores. A prata e ouro constituem uma boa parte do tesouro familiar, freqüentemente mais considerável do que permitiria supor o mau estado de suas roupas. As mulheres casadas usam um lenço na cabeça, adotado no dia seguinte da noite de núpcias. As saias longas são justificadas pelo recato que toda cigana deve ter em mostrar as pernas. Ao mesmo tempo, chama a atenção as blusas com grandes decotes, mesmo para as mais idosas. Os ciganos não têm constrangimento em ver suas mulheres expor parte do corpo. “Aparentemente, os seios têm conotação maternal e não sexual como na nossa sociedade. Contudo, embora haja grande exposição das ciganas, que se apresentam em praças para ler as mãos, elas jamais estarão sozinhas, mas sempre acompanhadas de outras mulheres”, destaca a pesquisadora. As mulheres ciganas também não participam dos nossos padrões de beleza, como por exemplo a magreza excessiva. “Normalmente elas casam-se muito jovens, são muito bonitas e vão engordando aos poucos, com a maternidade e o tempo e isso não é depreciativo para elas”, conclui.

 

Nem sempre a magreza é fundamental

 

A cultura tem um papel importante no modo pelo qual as mulheres percebem a obesidade. Segundo uma pesquisa feita na Universidade de Yale, Estados Unidos, enquanto para as mulheres brancas a obesidade representa uma imagem corporal negativa e uma perda tanto de atração sexual quanto de auto-estima, na cultura negra, a obesidade foi definida de modo positivo entre as representantes de comunidades negras, estando ligada à atração e desejo sexual, força, bondade, auto-estima e aceitação social.

 

Em algumas comunidades africanas, a gordura é um sinal de riqueza e saúde e podem aumentar as chances de fazer um bom casamento. Em Níger, país da África Ocidental, mulheres da comunidade Djerma se preparam para o casamento fazendo um regime para engordar. As mais bonitas não tem manequim menor do que 48. Porém, também lá, a beleza pode ter um preço alto. Da mesma maneira que o ideal de magreza empurra muitas mulheres para dietas perigosas, o processo para ganhar peso entre as djerma também coloca em risco a saúde das mulheres. Entre os instrumentos de que lançam mão está o uso indiscriminado de suplementos alimentares (às vezes de uso animal, porque são mais baratos que comida) e remédios para abrir o apetite sem acompanhamento médico. O risco é encarado com naturalidade porque faz parte do “esforço” da mulher na época da engorda. Homens que têm esposas magras são alvo de piada. A gordura está associada com a capacidade de ter e criar os filhos, daí serem valorizados seios grandes, quadril e nádegas avantajados. A valorização da obesidade é um paradoxo em Níger que apresenta um dos menores índices de desenvolvimento humano do planeta (IDH), adotado pela ONU para medir a riqueza e o bem-estar das nações.

 

Cabelos e cabeça

 

Outra característica estética predominante em regiões da África são as cores fortes, os tecidos estampados e alegres em roupas longas. Os cabelos são arrumados em tranças e enfeitados com contas coloridas. Entretanto, a escravidão na América mudou o modo como os negros percebem a si mesmos, determinando novos padrões e formas de se embelezar. Para Fábia Calasans, autora de um estudo sobre as relações raciais na educação a partir dos cabelos de homens e mulheres negros, a beleza é um processo histórico construído pelos valores da classe dominante, valores eurocêntricos. Daí que a boa aparência desejada pelas mulheres negras ser conseguida através de grandes alterações na aparência capilar. “O cabelo crespo, o nariz chato, os lábios grossos, a pele escura, não são valorizados por uma cultura que aprendeu a ver o homem negro como diferente, e esse diferente como inferior”, diz ela. “Nos dias de hoje, o alisamento, a chapa e o creme de pentear ainda são instrumentos utilizados pelas pessoas que se espelham na televisão, nos grupos de pagode, nas mulheres eleitas como modelo de beleza negra”, completa.

 

Ao mesmo tempo, movimentos estéticos e políticos sempre estiveram relacionados e, nesse contexto, o cabelo também virou uma forma de expressão, um fator de afirmação racial. Segundo ela, movimentos como o Ilê Aiyê, que surgiu na década de 1970, foram responsáveis por uma revolução estética que modificou a forma de expressão do corpo de homens e mulheres negras de Salvador, que passaram a vestir vermelho e usar tranças nos cabelos em uma atitude de valorização racial.

 

O mundo exibe tantas e tão numerosas variações biológicas e culturais que é um erro supor um universo padronizado dos modos de definição, avaliação e representação da beleza. Cada cultura define a beleza corporal à sua própria maneira. “O inventário de todas as cicatrizes, dos signos que cada sociedade imprime nos corpos de seus integrantes constitui um excelente caminho para decifrar-lhes o código e, sobretudo, para se demonstrar na superfície dos corpos, as profundezas da vida social”, acredita o antropólogo Renato Queiróz.