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Editorial
A propósito do belo e da beleza
Por Carlos Vogt
10/07/2006

Robert Blanché (1898-1975), que foi professor na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Toulousse, França, deixou uma obra importante dedicada à filosofia das ciências, à lógica, e ao seu papel fundamental para a organização do pensamento e a estruturação dos conceitos nas diversas formas do conhecimento tecidas nas relações do homem com o mundo, em sociedade, isto é, do homem com o homem nos palcos dos mundos que o seu conhecimento vai construindo, para suas apresentações e representações, ao longo da história.

 

Blanché tem as qualidades da clareza e da objetividade, além de um sentido didático de exposição que torna os seus livros, nos diversos temas abordados, obras de referência indispensáveis, em particular no que diz respeito às relações da lógica com as ciências, as humanidades, a epistemologia e a filosofia.

 

Foi por sua Introduction à la logique contemporaine (1968) que nela ingressei e foi em seu Structures intellectuelles (1969) que aprendi a admirar, definitivamente, o seu esforço bem sucedido de organização lógica das formas de apreensão e de entendimento racional e emocional do homem diante de si mesmo, do outro, da natureza, do mundo, de seus iguais e dessemelhantes.

 

O belo é uma categoria estética, da mesma forma que, seguindo a divisão aristotélica das três classes proposicionais, o verdadeiro é uma categoria alética e o bom, uma categoria ética.

 

Blanché, também nesse caso, publicou um pequeno grande livro, feito do mesmo tipo de esforço intelectual e com resultados de transparente clareza e clara elucidação: Des catégories esthétiques (Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1979, 1ª ed., 1955).

Como o tema deste número da ComCiência vem dedicado ao tema da Beleza, que se faz do belo que, por sua vez, constitui, tradicionalmente, a categoria estética por definição, pensei em traduzir, aqui neste espaço de interlocução com o leitor, o primeiro capítulo do livro de Blanché dedicado a aprender e a conformar

 

A noção de categoria estética

 

Belo, bonito, sublime, gracioso, pitoresco, trágico, etc.: essas qualificações que funcionam como predicados em nossos julgamentos estéticos são, sob sua forma substantiva (o belo, o bonito, etc.) aquilo que hoje se convencionou chamar as categorias estéticas.

 

Antes de tomar o sentido amplo e bastante vago, que ocorre na linguagem usual, como um sinônimo aproximativo de classe, conjunto, grupo, divisão (mercadorias da mesma categoria, a categoria Junior, etc.), a palavra categoria havia sido introduzida no vocabulário filosófico por Aristóteles, com um sentido mais técnico. Formada do verbo catégoreïn, que significa afirmar ou, mais precisamente, atribuir; designava as diferentes maneiras nas quais se podia fazer uma afirmação, isto é, a atribuição de um predicado a um sujeito: conforme a qualidade, conforme a quantidade, conforme o tempo, conforme a relação, etc. Aristóteles, no entanto, ainda que a palavra poïeïn, que significa fazer, figurasse entre suas categorias, não entrecruzou a sua lista de dez categorias com sua divisão ternária das atividades humanas: saber, agir e fazer; por isso eram suscetíveis de entrar numa mesma categoria de predicados relacionando-se com a ciência, com a ética e com a estética.

 

De fato, os julgamentos a que se atinha Aristóteles eram principalmente aqueles pelos quais exprimimos nosso conhecimento das coisas, aqueles a que, em seguida, chamamos “julgamentos de realidade”, para distinguí-los dos “julgamentos de valor”. Estes julgamentos de avaliação funcionam numa outra dimensão diferente da dos julgamentos de conhecimento. Se levarmos adiante a análise em termos de precisão, seremos levados a uma nova divisão das categorias, que poderia recortar a precedente. Reconheceríamos duas espécies fundamentais, que poderíamos chamar ontológicas ou constativas e axiológicas ou apreciativas. Voltaríamos, assim, para cada uma das espécies, à divisão aristotélica em três classes, conforme o atributo da proposição se relacione com o verdadeiro, com o bom, ou com o belo: categorias aléticas, categorias éticas, categorias estéticas. O belo seria assim a categoria fundamental da estética.

 

Verdadeiramente, até uma época relativamente recente, não havia ainda se estabelecido o uso de chamar a beleza uma categoria. Mas, na falta do nome, tinha-se, contudo, a idéia. Que o belo fosse visto como uma categoria estética, ou antes, como a categoria estética por excelência, é o que atesta suficientemente a definição tradicional da estética  como <<ciência do belo>>. Definição tenaz que se encontra ainda neste século no Vocabulário de la philosophie de Lalande e no Dictionnaire analogique de Robert. Mas quando a palavra categoria entra explicitamente no vocabulário da estética1, é precisamente para rejeitar, ou como muito vaga, ou como muito limitada - conforme o sentido que se dê à palavra belo -

a definição da estética como ciência do belo. Não é porque algo tenha valor estético que seja necessariamente belo, podendo muitas vezes e mais justamente ser qualificado, conforme o caso, como bonito, gracioso, sublime, etc...

 

É preciso, portanto, dissociar as duas idéias de beleza e de valor estético, olhar o belo como uma categoria a ser posta no mesmo plano que as outras qualificações estéticas possíveis, renunciando, assim, à definição tradicional da estética como ciência do belo. Com efeito, ela equivale a definir o gênero por somente uma de suas espécies - a menos que compreendamos a palavra no seu sentido mais amplo e também mais vago, mas privando o esteta da palavra própria e relativamente precisa de que ele necessita para designar uma das grandes categorias que constituem o objeto de seu estudo.

 

Efetivamente, na falta da palavra e da noção por ela recoberta, a idéia já aparecia na estética tradicional. Primeiro, sob uma forma tímida, no sentido de que não se podia, evidentemente, desconhecer a pluralidade das qualificações estéticas. Contornava-se o problema vendo nessas diversas qualificações especificações da qualificação estética mais geral, tomada também como a qualificação estética por excelência: a do belo. Exprimia-se essa idéia falando das <<modalidades>> do belo, ou ainda de suas <<mudanças>>. O belo, valor estético supremo, caracterizando-se por um equilíbrio perfeito entre seus elementos constitutivos, acontecia que esse difícil e frágil equilíbrio, garantido pela satisfação que dava intuitivamente à razão, fosse rompido em detrimento desse elemento racional, em benefício ou do deleite sensorial, ou de sua componente emocional. Instalava-se, de algum modo, a beleza, sob sua forma mais pura, em uma região média, flanqueando-a de todos os lado com formas mais ou menos degeneradas, ficando o bonito e o gracioso do lado sensorial e o sublime ou o trágico do lado emocional.

 

Alguns autores haviam ido mais longe, com a percepção de uma originalidade natural de tal ou tal qualificação estética, o que poderia colocá-la em contraste franco com a do belo. A orientação ia para uma espécie de dualismo estético que, pela multiplicação de tais oposições, chegava, na seqüência, a um pluralismo. O caso mais característico é sem dúvida o do sublime, para o qual um dos traços essenciais é a intervenção de sentimentos de ordem moral. Sem que remontemos até ao Traité du sublime atribuído a Longin (século III), essa noção havia começado, no século XVIII, a ser distinguida expressamente da noção de belo, e a ser posta em paralelo, melhor dizendo, em oposição com ela2. Essa dualidade tornou-se clássica com a Critique du jugement, de Kant (1790), cuja primeira parte analisa, em dois livros distintos e com o propósito claro de diferenciá-los, o belo e o sublime. Pela mesma época, a graça havia sido igualmente objeto de análises diretas, algumas vezes em ligação com noções mais especificamente morais3. No século XVIII ainda, o pitoresco, que, como a palavra indica, designa originalmente o que é suscetível de produzir um efeito feliz em um quadro, conhece uma grande voga, sobretudo na Inglaterra4, onde logo termina por tomar, notadamente com R. Price, um sentido mais amplo, estendendo-se ao conjunto das artes como sendo uma de suas qualificações possíveis a ser claramente distinguida da noção de belo. Um pouco mais tarde, com o romantismo alemão, novas qualificações passam ao primeiro plano, opondo-se expressamente à do belo clássico, em particular a do maravilhoso. Lembremos, enfim, que as reflexões sobre a arte dramática, que balizam toda a história da literatura, também não avançam sem comportar algumas repercussões sobre a essência do cômico e do trágico.

 

Entretanto, enquanto a palavra técnica não é encontrada para designar o que têm em comum qualificações diversas, a idéia de categoria estética não consegue aparecer claramente. As obras de estética continuam a se apresentar como tratados do belo, com freqüência nos títulos5, e quase que exclusivamente nos seus desenvolvimentos. Os problemas que apresentam são aqueles das relações da beleza artística e da beleza natural, ou a questão de saber se a qualificação do belo pertence realmente ao objeto ou apenas reflete um sentimento do sujeito. Quanto às outras qualificações estéticas, que eles não podem deixar de mencionar, elas não são  senão afloradas. Para tomar somente o caso mais ostensivo depois de Kant, o do sublime, constata-se que nos dois livros clássicos franceses da primeira metade do século XIX que tratam, parcial ou totalmente, de estética, a saber o livro de Victor Cousin (Du vrai, du beau, du bien, 1853, retomando lições de 1815-1821) e o de Théodore Jouffroy (Cours d’esthétique, 1843), que o primeiro, sobre uma centena de páginas consagradas ao belo, tem somente uma sobre o sublime, e que o segundo, em quarenta lições, não tem mais que uma, relegada ao final, sobre essa mesma noção.

 

* * *

 

A introdução expressa no vocabulário da estética da palavra categoria, no sentido em que a entendemos hoje, com o conceito que recobre, não demoraria a causar mudanças profundas na orientação dos trabalhos de estética, e mesmo na idéia que se fazia do objeto desses trabalhos.

 

Primeiramente, seu efeito mais evidente é o de dissociar claramente os dois sentidos da palavra belo, que até então permaneciam mais ou menos confundidos. No sentido amplo e clássico em que a noção de beleza era vista como constituindo o próprio objeto da estética, vem juntar-se agora, tendendo a substituir-se, um sentido mais estreito e mais preciso, o do belo como categoria distinta. Esta nova noção distingui-se assim da precedente como uma espécie se distingue do gênero no qual ela está incluída na comunidade de várias outras espécies. Se não a tomamos apenas nesse sentido técnico é porque a definição tradicional da estética como ciência do belo tornar-se-ia muito limitada: é como se se dissesse que a zoologia é o estudo do cavalo. Na verdade, a confusão não era muito grave na época clássica, quando a espécie quase coincidia com o gênero, sendo que o ideal que atraía os artistas era essencialmente o de alcançar essa nobreza serena, esse equilíbrio harmonioso, essa delicadeza de gosto, que caracterizam precisamente o que hoje chamamos a categoria do belo. Mas se o esteta pode decretar que é neste sentido restrito que ele entenderá a palavra, não pode, contudo, impedir que, tanto no vocabulário corrente de hoje, como no uso clássico, a palavra tome o sentido mais amplo no qual designa todo e qualquer valor estético em geral. Sem dúvida, o melhor é reconhecer francamente essa ambigüidade e admitir que a mesma palavra é tomada em dois sentidos distintos, nos quais um engloba o outro como um caso particular.

 

Contudo, ainda é insuficiente calcar a sua distinção sobre a distinção da espécie para o gênero e não ver nela senão uma diferença de amplitude; há também uma diferença de plano. No sentido amplo, a palavra belo funciona como predicado de um julgamento de valor. Dizer que uma coisa é bela significa que se lhe atribui uma grande qualidade estética; é fazer um julgamento admirativo, laudativo, cuja negação torna um sentido desfavorável, depreciativo. Enquanto que afirmar que uma coisa é bela, no outro sentido da palavra, é enunciar um simples julgamento de realidade: nós a descrevemos, nós a caracterizamos com uma palavra para distingui-la de outras coisas que possuem outras qualidades estéticas, por exemplo, serem graciosas, pitorescas, etc...

 

É como quando se diz: isto é cachorro e não um gato, isto é vermelho e não azul: simples constatação, e não apreciação. Sua negação não tem como efeito desvalorizar o objeto de que se fala, mas somente o de recusar-lhe um certo conjunto de traços. E a distinção entre tal conjunto de traços e tal outro não implica por si mesma nenhuma hierarquia entre eles. Enquanto objetos de estudo, todas as categorias devem ser postas no mesmo plano. Isso não impede que não possamos preferir uma coisa à outra, como preferimos, por exemplo, os cachorros aos gatos, mas a estética, enquanto disciplina que visa à cientificidade, deve, como já defendia Taine, deixar de ser normativa para tornar-se simplesmente descritiva.

 

De fato, as duas distinções que acabamos de fazer, entre o gênero e a espécie e entre a apreciação e a constatação, têm, freqüentemente, tendência a se associar. Quando ouvimos a palavra belo no sentido específico da categoria, a maior precisão do conceito, que ao mesmo tempo restringe sua extensão, tende a reduzi-lo à simples descrição, axiologicamente neutra. Enquanto que, na medida em que damos ao conceito um valor laudatício, nós afrouxamos a determinação e a especificação, de modo a torná-lo ajustável a outras categorias estéticas diferentes da do belo, alargando assim seu domínio de aplicação. No entanto, essa associação entre a descrição e o valor permanece bastante solta já que, segundo as épocas e as sociedades, a hierarquia dos valores entre as diversas categorias é variável, sem que por isso essas diferenças de gosto mudem o que quer que seja em suas características próprias. Quando se diz, no sentido descritivo, que uma coisa é bela, isso não implica absolutamente, como uma conseqüência necessária, que a estejamos situando no ponto mais alto da escala. De fato, esta mesma categoria do belo pode tomar, segundo os gostos dominantes em um dado momento e em um dado meio, um valor mais fraco e mais ou menos depreciativo, ao ponto de tender, às vezes, para os valores negativos. Sabe-se bem, por exemplo, que em nossa época essa categoria não apenas não se situa no ponto mais alto, tendo sido destronada por suas rivais, mas que até mesmo, na boca de alguns, dizer que uma coisa é bela é dizer que ela não é nada além de bela, o que é uma maneira de denegri-la.

 

O que acaba de ser dito a propósito do belo deve ser estendido a todos os predicados estéticos. Eles podem tender, em certos casos, para a pura descrição, mas freqüentemente acrescentam uma nuança mais ou menos marcada de apreciação, o que faz deles, ao mesmo tempo, predicados de valor. Se digo de uma mulher que ela é graciosa ou elegante, não é apenas uma maneira de caracterizá-la, mas também uma maneira de elogiá-la, pois a graça e a elegância são geralmente vistas como pertencendo aos valores estéticos favoráveis. Mas é preciso ficar atento na análise e estabelecer claramente a distinção entre os dois componentes, descritivo e apreciativo, das qualificações estéticas, sem por isso deixar de reconhecer que estão freqüentemente ligadas de modo estreito, ou que uma domina claramente a outra. Essa exigência é particularmente imperiosa no caso do belo. Cada vez que o esteta empregar esta palavra, ele deverá se perguntar se se trata de um belo-valor ou de um belo-categoria. É naturalmente neste último sentido que devemos, em princípio, entendê-lo quando fazemos o elogio das categorias estéticas.

 

Os filósofos reconhecem, de acordo com o uso que é feito das palavras que designam as categorias estéticas, e principalmente a do belo, que essas qualificações resultam da confluência de duas correntes semânticas.

 

<<Os materiais, escreve um deles, de que dispomos para estabelecer a etimologia da palavra “beleza” nos permitem ver na categoria do belo aspectos associados necessariamente: o aspecto gnoseológico (reflexo de certos aspectos e de certas qualidades da realidade) e o aspecto axiológico (expressão na categoria do belo da relação ideal e emocional com os aspectos estéticos da realidade como com seus valores sócio-humanos particulares)>> (L. N. Stolovitch, “L’étymologie du mot ‘beauté’ et la nature de la catégorie du beau”, Revue d’esthétique, XIX, p. 257). Sua conclusão, sempre, para a categoria do belo é que “sua função gnoseológica não é dissociável de sua natureza valorativa”. No uso, sem dúvida. Na análise, contudo, como ele próprio o faz, é bom separá-las.

 

* * *

 

Reconhecida essa distinção, poder-se-ia ainda, rigorosamente falando, manter a definição tradicional da estética como ciência do belo; mas isso só poderia ocorrer, evidentemente, sob a condição que se diversificasse a própria idéia de beleza, nela incluindo suas “modalidades”.

 

Desse modo, com a introdução da noção de categoria, no sentido técnico que o esteta dá a esse termo hoje, e com a multiplicação das categorias, o próprio objeto da estética se transforma. Seu problema maior agora encontra-se centrado nessa nova noção. Estabelecer a lista das categorias, determinar suas relações mútuas, precisar pela análise os caracteres próprios de cada uma: tais são hoje as tarefas que se propõe o esteta. Em ligação estreita com a dissociação entre as duas acepções da palavra beleza, o sentido amplo e normativo de um lado, o sentido específico e descritivo de outro, a elaboração do conceito de categoria tem assim como outro efeito o de dar aos trabalhos dos estetas uma nova orientação. A distinção do belo natural e do belo artístico, com o problema de suas relações, que tinha grande importância na estética tradicional, recua agora para um plano de fundo. A estética não é mais a ciência do belo; tornou-se a ciência das categorias estéticas.

 

Não é um acaso que essa reviravolta não se dê senão no final do século XIX. Até o século XVIII, os caracteres que se reconheciam próprios do belo, objeto da estética, eram aqueles da beleza clássica. Os seus modelos haviam sido fornecidos pela arquitetura, pela escultura e pela poesia dos Gregos; a arte não podia senão deles se inspirar. O século de Péricles, o quattrocento, o reino de Luís XIV marcam os grandes momentos da arte, e é pela imitação mais ou menos perfeita de suas obras que se julgava a beleza e por sua justa apreciação que se julgava o bom gosto. Conhecia-se, é claro, outras formas de arte além da arte clássica, mas que eram afastadas com desdém, qualificando-as de bárbaras ou de góticas. Ora, desde o começo do século XIX – quando o romantismo então nascente já questionava seriamente a assimilação do ideal artístico e do valor estético só à beleza clássica – os trabalhos dos historiadores, dos pré-historiadores, dos arqueólogos, assim como os dos etnógrafos, alargaram prodigiosamente nosso campo de visão do ideal artístico e, ao mesmo tempo, modificaram a idéia, melhor dizendo as idéias, que dele se faziam as diferentes sociedades. Tornava-se cada vez mais difícil centrar o estudo do ideal artístico apenas sobre a análise da arte clássica. O ideal não era mais o padrão; tornava-se uma das formas históricas do ideal artístico, a menos que se chamem clássicas – num outro sentido da palavra – as obras exemplares, aquelas que situam no topo de um estilo histórico. Jogando com o duplo sentido da palavra, poder-se-ia dizer que o classicismo não é senão uma das múltiplas maneiras de buscar o clássico. O que significa relativisá-lo. “Não há senão instantes clássicos – os pontos mais altos de movimentos que continuam sua curva por sua própria natureza. Crer que um classicismo possa escapar de sua órbita de astro para tornar-se um modelo permanente, é acreditar em estrelas fixas... O grande estilo não é mais privilégio de uma cultura”6. A noção geral de beleza explodia. Percebe-se como essa diversificação chamava a das categorias estéticas, ao mesmo tempo em que suscitava um interesse crescente por uma análise da arte fundada na sua história.

 

Sobre este último ponto, a reviravolta foi dada por Hegel. É verdade que ele continua a caracterizar a estética como “a filosofia, a ciência do belo”, mas acrescentando uma correção capital: “mais precisamente, da beleza artística com a exclusão da beleza natural”7. Por isso, sua monumental Esthétique é uma filosofia de arte fundada na sua história, em que se reconhecem três formas sucessivas do ideal estético e na qual a arte clássica está envolvida por uma arte simbólica, que a precede, e uma arte romântica que a sucede: para ele, em suma, aí estão, como hoje as chamaríamos, as categorias fundamentais do julgamento estético. Essa maneira nova de abordar a estética iria, pouco a pouco, ganhar terreno. Se se havia pedido a Cousin e a Jouffroy para fazerem um curso de caráter geral e filosófico para os alunos das Belas Artes, nenhuma dúvida de que ainda tratassem do belo. Mas quando, na geração seguinte pede-se a Taine que o faça é com sua Philosophie de l’art, fundada sobre sua história, que ele ensinará (de 1865 a 1869). Pode-se exprimir naturalmente esse estado de coisas dizendo que o objeto da estética se desdobra: filosofia do belo, filosofia da arte. De fato, é freqüentemente o conjunto dessas pesquisas que se reúnem sob o termo estética. Mas um uso novo tende a se estabelecer, que é o de reservar a palavra estética para o primeiro desses estudos, excluindo, portanto, a não ser como meio, a filosofia da arte que, sem se confundir com sua história, apóia-se, contudo, nela de forma indispensável. Nessas condições, a estética torna-se a ciência não do belo isoladamente, mas do conjunto das categorias estéticas, cujo estudo pode incidir tanto sobre a natureza como sobre a arte.

 



1 Karl Groos, Einleitung in die Aesthetik, 1892, p. 46-51. Victor Basch introduziu, em seguida, a palavra francesa no seu Essai critique sur l’esthétique de Kant, 1896; ela foi retomada e expandida por Ch. Lalo: L’ Esthétique experimentale contemporaine, 1908,  Sentiments esthétiques, 1910, Notions d’esthétique, 1925.

 

2 Ed. Burke, A philosofical inquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful, 1761; Em Kant, Beobachtungen über das gejühl des schönen und des Erhabenes, 1764; M. Mendelssohn, Ueber das Erhabene und Naïve, 1771.

 

3 J.Winckelmann, Von der Grazie in der Werken der Kunst, 1759; H. Home, Elements of criticism, 1762-65, cuja segunda parte trata da dignidade e da graça; Fr. Schiller, Ueber Anmut und Würde, 1793.

 

4 Cf. E. H. Gombrich, L’Art et son historie, trad. Fr., 1963, p. 313 :  “Ingleses, rendidos ao charme das paisagens de Lorrain, tentaram transformar paisagens verdadeiras de seu país até fazê-las parecer com as invenções do pintor. Um parque, uma paisagem que fazia pensar em Claude Lorrain, eles a consideravam como <<pitoresca>>, como fazendo parte dos prestígios da pintura”.

 

5 Le P. André, Essai sur le beau, 1741; Diderot, Traité du beau, intitulado também Recherches philosophiques sur l’origine et la nature du beau, 1750 ; Pr. Vischer, Aesthetik oder wissenschaft des schönen, 3 v. 1847-1857 ; Ch. Levèque, La science du beau, 2 v. 1861 ; G. Santanya, The sense of  beauty, 1896 ; Th. Lipps, Aesthetik, psychologie des schönen und der kunst, 3 v. 1903, 1905, 1921; Vernon Lee, The beautiful, 1913.

 

6 A. Malraux, Psychologie de l’art, v.I, Le musée imaginaire, 1949, p. 145-146.

 

7 Esthétique, lições feitas de 1818 a 1829; trad. S. Jankélévitch, 1944, t. I, p. 7. A razão dessa exclusão, que não nos interessa diretamente aqui, é que “o belo artístico é superior ao belo natural, porque é um produto do espírito” (Ibid., p. 8).