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Artigo
Entre a beleza e a problematização das cidades
Por M. Cecilia Loschiavo
10/07/2006
Como é possível falar da beleza das cidades contemporâneas diante da crise avassaladora que paira sobre elas? As cidades contemporâneas configuram paisagens catastróficas, testemunhos da falência de nossos parâmetros de governabilidade. Multiplicam-se os desastres ambientais, a pobreza urbana promove a multiplicação das cidades de plástico e de papelão, construídas por aqueles que não têm onde morar. Qual é o regime estético que preside as intricadas configurações do ambiente urbano no qual vivemos?

Um dos aspectos marcantes da cidade contemporânea é a concentração espacial e urbana da pobreza, que vem se agravando desde o final do século XX e início do atual. Este fenômeno que sempre foi identificado como característico do Terceiro Mundo, agora constitui também um aspecto dominante em países do Primeiro Mundo.

O que são essas cidades? São as cidades construídas pelos moradores de rua re-utilizando, sobretudo, o plástico, o papelão e demais materiais e produtos descartados pela sociedade de consumo. A condição do morador de rua na sociedade capitalista, entendida como aquele que não tem o seu lugar próprio, que sempre está no lugar que não lhe pertence, levou-o a ocupar os espaços públicos, as praças e baixios de viadutos.

As imagens que se seguem demonstram que o mundo urbano apresenta situações desafiadoras e perversas, por exemplo, as questões relativas à habitação para os moradores de rua. Essas imagens que manifestam que o fenômeno do morador de rua não é um tema marginal, mas apresenta uma prevalência significativa em muitas cidades e, impressionantemente, ressaltam as relações entre o descarte de materiais e produtos e o descarte de seres humanos. Os números são crescentes e trata-se de importante tema para a arquitetura contemporânea.



Habitat Informal de moradores de rua em São Paulo, Rio Tamanduateí
Foto: Douglas Mansur




Habitat Informal de moradores de rua em São Paulo, Praça da Sé
Foto: Douglas Mansur




Habitat Informal de moradores de rua em Tóquio, Sumida River
Foto: Ken Straiton




Habitat Informal de moradores de rua em Tóquio, Sumida River
Foto: Ken Straiton




Habitat Informal de moradores de rua em Los Angeles, Skid Row
Foto: Mario Barros




Habitat Informal de moradores de rua em Los Angeles. Broadway
Foto: M. C.Loschiavo





Habitat Informal de moradores de rua na Índia, Calcutá
Foto: Ken Straiton




Habitat Informal de moradores de rua na Índia, Nova Delhi
Foto: Tony Pietropiccolo

As imagens apontam para um momento de mudança em nossa civilização. Certamente a arquitetura não é considerada como ferramenta única para resolver a situação, mas aos arquitetos e demais profissionais de projeto, cabe um papel extraordinário na manutenção da dignidade dessa população. Equipamentos adequadamente projetados poderão ser decisivos, por exemplo, na superação dos resistentes à albergue. A qualidade e adequação arquitetônica do edifício explicitarão ao morador de rua que ele não está adentrando a uma prisão ou depósito de seres humanos. O que é possível e desejável para abrigar esse imenso contingente de excluídos? O que é inaceitável? O que é adequado? Quais os conhecimentos necessários? Qual o papel dos arquitetos? Até muito recentemente as únicas opções para acomodação do morador de rua eram os rudimentares albergues, em condições precárias, com vagas insuficientes ou então dormir nas ruas, nas calçadas, sob viadutos nos intermináveis acampamentos, alvo de expulsões forçadas, gerando hostilidades, produzindo a Nimby (Not In My BackYard).

A emergência dessa complexa trama de relações nas cidades de plástico e de papelão, nas quais a maioria vive muito longe do mundo da economia formal indica que o mundo urbano do século em que vivemos aponta para outros paradigmas estéticos capazes de caracterizá-lo.

Embora, freqüentemente igualamos o conceito de estética ao conceito de beleza, esta definição é muito limitada. Os efeitos da estética são eminentemente perceptivos e não cognitivos. Entretanto, as imagens apresentadas possuem um poder perturbador, provocam um distúrbio nos conceitos de fruição do espaço urbano, ao mesmo tempo essas imagens manifestam o quanto nossas cidades estão despreparadas para enfrentar os espantosos índices de pobreza urbana. Como falar da beleza das cidades contemporâneas diante dos crescentes índices de pobreza urbana e das cifras sem precedentes da imensa massa de trabalhadores, que sobrevive da economia informal, sem nenhum tipo de garantia, de direito reconhecido, e, muito mais grave, imersos num quadro crítico de abuso contra mulheres e crianças?




Exemplo da síndrome Nimby, Avenida Paulista, São Paulo
Foto: Geoff De Verteuil



Nessas condições, as ruas de nossas cidades se tornaram o receptáculo de objetos desfuncionalizados e degradados, o lixo de nossa cultura industrializada e tecnológica, expondo publicamente as contraditórias relações entre tecnologia e sociedade. Muitas dessas ruas foram transformadas em um verdadeiro “museu da exploração”, como tão bem definiu o pesquisador Mike Davis em seu último livro – Planet of slums, com crianças de todas as idades expostas publicamente e trabalhando, em todos os tipos de trabalho, sob os mais primitivos regimes de exploração.

As imagens nos trazem a constatação de uma paisagem sinistra e caótica, onde a síndrome de Nimby prevalece e se amplia, originando todos os tipos de regulamentações, de zoneamento e, sobretudo, alimentando a intolerância.

Para lutar contra a intolerância, os movimentos sociais vêm criando uma consciência da rua e da cidade, bem como se articulando pela sua transformação, pela criação de um outro espaço. O papel desses movimentos fica cada vez mais evidente e se reflete no próprio crescimento dos fóruns sociais. A presença desses movimentos reitera uma significativa consideração do filósofo Michel Foucault sobre as ligações entre espaço, conhecimento, poder e política cultural. Em seu célebre ensaio “Des espaces autres”, ele ressaltou que essas ligações devem ser vistas ao mesmo tempo como opressivas e possibilitadoras, compostas não somente pelos perigos autoritários, mas também pelas possibilidades para resistência.

Ao perguntarmos sobre o regime estético que caracteriza as cidades contemporâneas creio que os aspectos da fragmentação, do descarte, da bricolage, e da resistência são elementos significativos. Mas esses aspectos coexistem lado a lado com outras imagens, que também integram a nossa experiência sensorial e estética da cidade: da moda, da arquitetura, do design de produtos, do design de sistemas, e mesmo do design gráfico dos anúncios publicitários que vertiginosamente cativam nossas escolhas de consumidores.

Assim, a cidade contemporânea toca a nobreza de nossos sentidos, mas também ela manifesta outras formas visuais diferenciadas, que manifestam os mais cruéis conflitos do nosso mundo urbano. Seria necessário muitos olhos no corpo e na alma para descrevermos esse universo. Mais do que isso, necessitamos de uma arqueologia da visão para caracterizar a estética da cidade contemporânea. Ainda que não diretamente vinculado à experiência da cidade contemporânea, Michel Foucault nos abriu uma perspectiva relevante nesse sentido, quando nos alertou sobre a diversidade dos vários regimes visuais presentes no espaço de uma determinada cultura.



M. Cecilia Loschiavo é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.