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Reportagem
Comunicação livre: delito ou direito?
Por André Gardini
10/10/2006

“Radiodifusão sem autorização é crime federal” e “É livre a expressão da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença”, são duas frases que mostram as contradições, confusões e falhas do princípio legal de comunicação no Brasil. A primeira pode ser encontrada na definição de rádios comunitárias do Ministério das Comunicações (MC) e, a segunda, pode ser lida na Constituição (art. 5° - VIII). A partir desse paradoxo, como explicar as transmissões, por um número aproximado de 5 mil rádios que funcionam sem concessão, no Brasil? Afinal, a comunicação em nosso território é livre ou é crime?

No centro desse debate estão as rádios livres e as rádios comunitárias. A definição de cada uma é bastante distinta. A primeira, é entendida pelas autoridades como uma atividade subversiva. Já a outra, é legal, desde que não contrarie a Lei 9612/98, que estabelece certas regras. Para o MC, uma rádio comunitária “é um tipo especial de emissora ... deve divulgar a cultura, o convívio social e eventos locais; noticiar os acontecimentos comunitários e de utilidade pública; promover atividades educacionais e outras para a melhoria das condições de vida da população ... não pode ter fins lucrativos nem vínculos de qualquer tipo, tais como: partidos políticos, instituições religiosas”. Ao mesmo tempo, não é possível encontrar uma definição para as rádios livres, tanto nosite do MC, como no site da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), pois essas instituições não reconhecem a legitimidade delas.

Na prática, muitas rádios comunitárias funcionam como pequenas rádios comerciais, mantêm o mesmo modelo de gestão, com diretores, locutores e editoriais, e muitas cobram o “jabá” para tocarem músicos locais. As livres se organizam em coletivos horizontais, isto é, rompem a barreira entre locutor e ouvinte e funcionam sem fins lucrativos.

Raquel Paiva, coordenadora do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que a comunicação, cada vez mais, será livre, independente de governos, partidos e grupos empresariais. “Com o advento de novas e novíssimas tecnologias, vai ficar muito mais difícil a adoção de políticas e medidas coercitivas. Este é um avanço na nossa era e, finalmente, conseguiremos superar o obscurantismo da Idade Média que ainda grassa em países subdesenvolvidos como o Brasil”, critica Paiva.

Para ela, não se percebe, no atual governo, ações efetivas em prol da democratização das informações. Pelo contrário, as ações adotadas aumentaram a repressão contra as rádios ilegais e comunitárias, que aguardam suas concessões. “As ações, apenas reforçam as grandes empresas já existentes, as famílias que lotearam o sistema de comunicação nacional e os políticos partidários”, afirma Paiva.

O surgimento das ilegais

A idéia de rádios piratas, pode confundir-se com a de rádios livres. No entanto, as piratas, apesar de também operarem sem autorização, são rádios com algum tipo de apoio comercial ou de associação. É interessante notar que o governo utiliza o termo pirata para se referir também às livres.

A história das rádios piratas é anterior. Segundo Magda Cunha, professora de radiojornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), rádios piratas e rádios livres formam duas frentes de corrosão do monopólio estatal das telecomunicações, vigente na Europa, até meados do século XX. Ela explica que nas rádios livres, as faixas de onda são consideradas propriedade coletiva e cabe à coletividade usufruir delas. “Nascem no bojo de movimentos políticos contestatórios e estimulam as pessoas a passarem da condição passiva de ouvintes para a de agentes ativos de seus discursos e a colocar no ar as suas idéias, os seus prazeres, as suas músicas preferidas, sem precisar de autorização para isso”, completa Cunha.

Sayonara Leal, doutoranda do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), conta que o conceito de rádios livres surge na Europa, pós II Guerra, para designar as rádios não oficiais, ou seja, não autorizadas pelo Estado, que atuavam em prol de uma comunicação livre, em grande medida alimentadas pelo sentido da contra-informação. Depois, nos anos 1970 e 1980, estiveram engajadas em projetos políticos e culturais, em geral de esquerda, em defesa de temas ecológicos, processos migratórios, socialismo, democratização da informação, enfim, uma outra ordem de informação e comunicação. “No Brasil, algumas rádios locais se autodenominam livres para tentar preservar esse espírito de total liberdade e, até certo ponto, eu diria de contra-ordem e regulação exercida pelo Estado”, explica Leal. Ela continua: “penso que independente do termo para nomear essas mídias, elas são configurações do direito à liberdade de expressão inscrito em nossa Constituição”, defende.

Integrantes da Rádio Muda, a rádio livre que funciona na Unicamp, criticam o sistema atual de concessões que, segundo afirmam, privilegia o mercado através de uma ideologia do consumo. “A opção pela transmissão sem autorização é uma forma de questionar a política adotada pelo governo”, dizem. De acordo com eles, que preferem o termo “coletivo”, ao invés de identificações individuais, o regime de uso do espectro (de ondas de radiodifusão) favorece aos detentores do poder político e econômico, sob a argumentação técnica de finitude do bem público por onde trafegam as ondas. “O Estado regula os pontos emissores (e acaba regulado por estes) onde se identifica pelo menos duas inconstitucionalidades: 1) não há complementaridade entre os serviços públicos, educativos e comerciais nos meios de comunicação, prevalecendo o comércio e; 2) a comunicação social não poderia ser objeto de monopólio ou oligopólio quando, na verdade, uma única emissora de televisão é responsável por cerca de 84% da audiência”.

Morosidade estatal e interesses privados

“Tanto faz ser religiosa, livre, comunitária, política... Se não tiver autorização da Anatel, há o risco de interferência e isso pode ser perigoso. ... O direito de trabalhar com comunicação precisa ser feito dentro da lei”, afirmou em entrevista à Carta Maior o delegado Marcelo Previtalli, responsável pela operação Sintonia, da Polícia Federal. No início de agosto, 17 emissoras de rádio que operavam sem autorização foram fechadas em São Paulo por essa operação.

Para Cicília Peruzzo, professora de comunicação social da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), a Anatel e a Polícia Federal têm fechado muitas emissoras. “Algumas delas já pediram autorização há muito tempo – o que indica que não querem ser ilegais – algumas há dois anos, outras há sete anos ou mais, mas pela morosidade do Ministério das Comunicações não têm conseguido repostas aos pedidos”, informa Peruzzo.

Segundo o artigo “A democratização da comunicação passa pelo rádio”, de Álvaro Americano, baseado em dados da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), em 1996 as rádios livres eram responsáveis por cerca de 40% da audiência radiofônica do país, em especial no interior. O artigo traz ainda dados da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), que aponta, atualmente, para a existência de cerca de 5 mil rádios sem concessão funcionando no Brasil.

Álvaro Americano, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), acredita que a razão para a repressão é simples e tem a questão econômica como principal motivadora. “Algumas dessas rádios, que não contam com a permissão do Estado, têm conseguido índices surpreendentes de audiência e acabam também conquistando pequenas fatias do mercado publicitário”, informa. Geralmente, as denúncias de transmissão ilegal partem das rádios comerciais.

As rádios ilegais encontram muitas barreiras para obter a regularização. “A verdade é que sempre há muitos interesses ligados à concessão para o funcionamento de rádios e TVs. Infelizmente continuamos com a notícia que esses meios continuam servindo de barganha política”, critica Americano.

Raquel Paiva, da UFRJ, destaca que não existe diálogo entre governo e representantes das rádios em situação ilegal. “Temos notícias de que muitos dos responsáveis pelas emissoras saem algemados. Algumas das críticas que pairam sobre as emissoras ilegais são de que poderiam ter ligações com o crime organizado e com o tráfico de armas e drogas”, explica. Segundo informações da Abraço, as ações da Anatel e da Polícia Federal têm fechado indiscriminadamente emissoras, mesmo aquelas que têm processo de pedido de outorga em andamento no MC há anos. “Infelizmente”, afirma Americano, “há pouco diálogo por parte do governo federal e uma repressão contínua contra as rádios livres e comunitárias”.

A escolha do padrão digital e a existência das comunitárias

Uma questão importante na discussão sobre a mudança para o padrão digital no sistema de radiodifusão do Brasil é a situação das emissoras comunitárias e, em geral, das pequenas. Como o padrão ainda não foi definido, não se pode afirmar, com certeza, as conseqüências. Mas, se as coisas continuarem caminhando como estão, dificilmente as rádios comunitárias – e as não comerciais, poderão se integrar à nova ordem tecnológica.

A implementação do rádio digital no Brasil está em fase de testes. Dois padrões podem ser escolhidos de acordo com os resultados: o norte-americanoIn-Band On-Chanel (IBOC) e o europeu Digital Radio Mondiale (DRM). A Anatel, responsável pela autorização dos testes, afirma que os sistemas não concorrem entre si, apenas definirão qual modelo se aplica ao tipo de transmissão utilizada (ondas curtas ou ondas médias).

Magda Cunha, da PUC-RS, destaca que a escolha está vinculada ao histórico de exploração do sistema de radiodifusão no Brasil. Segundo afirma, não é preciso fazer novas licitações ou outorgas, pois não há modificações no espectro. “O modelo IBOC mantém o status atual das emissoras, além de preservar a base de ouvintes associada àquele dial”, afirma.

Álvaro Americano explica que é preciso ficar atento às oportunidades que surgirão com as novas tecnologias. Apesar de todas as dificuldades encontradas pelo rádio para sobreviver, é através dele que acontece a grande frente de batalha pela democratização dos meios de comunicação no Brasil. Para ele, é através das rádios livres e comunitárias, e não das comerciais, que uma pessoa ou uma comunidade pode utilizar um veículo de comunicação para se expressar livremente.

O DRM é um padrão aberto, desenvolvido por um consórcio constituído por 90 membros (associações, universidades, fabricantes, operadoras) de 30 países. Os testes referentes a esse padrão pretendem avaliar a área de abrangência, a qualidade do áudio e a robustez do sinal digital em ondas curtas em relação aos ruídos. Já o IBOC é desenvolvido pelaiBiquity Digital Corporation e utiliza a mesma freqüência do sinal analógico para as transmissões digitais. Existem 15 emissoras testando o IBOC. A Faculdade de Tecnologia da Universidade de Brasília (UnB) e a Radiobrás estão testando o DRM.

Para a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) o padrão preferido é o IBOC. Segundo afirma Daniel Pimentel Slaviero, presidente da Abert e diretor do Grupo Paranaense de Comunicação (GPP), afiliado ao SBT, o padrão norte-americano é o preferido das emissoras porque é compatível com o analógico.

“O importante é não perder o horizonte de que no mundo em que vivemos, fortemente influenciado pelos meios de comunicação, a democratização desses meios é uma das condições para a verdadeira democratização da sociedade”, finaliza Americano.