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Reportagem
ONGs devem ter papel complementar
Por Patrícia Mariuzzo
10/11/2006

A ONG Viva Rio existe desde 1993, com sede no Rio de Janeiro. Seu foco é a prevenção e o combate à violência. A ONG tem projetos sociais variados, desde a capacitação profissional, passando pela educação de jovens e adultos até programas de micro-crédito para empreendedores com baixa renda. Muitos projetos têm investimento de grandes empresas como Coca-Cola, Grupo Ipiranga, IBM,Volkswagen e Rede Globo e também do governo de municípios e do estado do Rio de Janeiro. O crescimento das ações sociais de empresas e ONGs, entretanto, pode nublar o papel social a cargo do Estado. Ao mesmo tempo que o esforço nessa área é positivo, empresas e ONGs recebem incentivo e isenção fiscal para fazer o papel do Estado o que pode levar ao que alguns críticos chamam de terceirização da atividade social dos governos.

As ONGs podem receber recursos públicos para execução de projetos, por meio de convênios ou termos de parceria com o governo (seja na esfera federal, estadual ou municipal). “Nesse caso, além de prestarem contas ao órgão público que repassou recursos, são fiscalizadas pelo Tribunal de Contas”, explica Maria Nazaré Lins Barbosa, advogada e pesquisadora do Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas (CETS/FGV). Existem estímulos fiscais de diferentes tipos. Em sentido amplo, o setor sem fins lucrativos é incentivado porque tem imunidade ou isenção de diversos impostos. “A lógica é simples: se elas têm finalidade social e não distribuem lucros, estão colaborando com o poder público. Por isso, não teria sentido serem tributadas em suas atividades. Em todos os países ocidentais existe esse tipo de estímulo. Mas existe um tipo de estímulo mais específico, conhecido como incentivo fiscal, que se refere a incentivos para que as empresas façam doações a ONGs”, completa.

A Constituição Brasileira de 1988 afirma que é direito de todos os cidadãos brasileiros o acesso à educação, saúde, aposentadoria etc. e que o conjunto da sociedade gerido pelo Estado deve garantir o acesso à esses direitos. Para Hebe Signorini Gonçalves, especialista em psicologia jurídica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, poucos países ousaram implementar este modelo que ela chama de Sociedade de Bem-Estar, que vai além do Estado de Bem-Estar Social. No modelo brasileiro a função reguladora do Estado é compartilhada entre Estado e sociedade o que representa um importante passo no processo participativo. O Estado, entretanto, não abre mão de ser o gestor deste processo. Mas, o que significa ser gestor? Diante da falência da política de bem-estar social, como ficam os papéis do Estado, das empresas e das ONGs? Ao dizer que o conjunto da sociedade deve garantir o acesso de todos os cidadãos aos direitos sociais, o Estado chama empresas e organizações não-governamentais a dividirem com ele a responsabilidade pela garantia à direitos básicos como educação, saúde e segurança. Isso torna legítima a participação do Viva Rio e de milhares de outras ONGs no esforço pela melhoria dos serviços públicos oferecidos pelo Estado.

Signorini defende que o Estado não pode abdicar desta função de gestor da coisa pública sob pena de ocorrer uma distorção de papéis. “No Rio de Janeiro, por exemplo, há casos de ONGs que assumem a proteção de adolescentes ameaçados de morte. Isso é um problema sério. Nos termos da Constituição a segurança dos cidadãos é função exclusiva do Estado e isso não pode ser delegado para uma ONG”, diz Segundo a psicóloga no desenho do Comunidade Solidária, do governo FHC, a gestão e execução de programas sociais era delegada às ONGs. Hoje muitas organizações reclamam do seu isolamento, da omissão do Estado. “O Brasil ainda não avançou para um modelo de cooperação sob coordenação política do Estado. A gente passou por um período em que o Estado acreditou que ele pudesse suprir as duas funções por intermédio das ONGs. Agora estamos num período de transição atestado pela iniciativa do Estado em promover as chamadas Parcerias Público Privadas, onde empresas são chamadas a participar da execução de políticas públicas, mas sob a gestão do Estado”, acredita.

A pesquisa Voluntariado empresarial, estratégias de empresas no Brasil, conduzida por Rosa Maria Fischer e Andres Pablo Falconer, do Centro de Estudos em Administração do Terceiro Setor da Universidade de São Paulo, Ceats-USP, detectou que a maioria dos programas de responsabilidade social enfoca a criança e o adolescente, principalmente os problemas de qualidade de ensino e de capacitação profissional.

Mesmo assim o Brasil ficou em 72° lugar no ranking da Unesco sobre educação, atrás de países como a Bolívia e o Paraguai, uma mostra de que empresas, aliadas ou não a ONGs, não conseguem cumprir uma função que é do Estado. Apesar de executarem projetos muitas vezes bastante amplos e em várias áreas, o principal foco das ONGs deve ser o de interferir nas políticas públicas. Essa é a opinião da pesquisadora Dulce Pandolfi, uma das diretoras do Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, também uma ONG. “O que podemos fazer são ações pontuais, mais importante do que isso é provocar, produzir debates, é estimular o Estado a adotar políticas nas áreas em que atuamos, sejam elas saúde, educação ou cultura”, diz. Um exemplo de ação da sociedade civil que gerou uma nova diretriz nas políticas do governo foi a Ação da Cidadania. A partir desta mobilização foi criado o Conselho de Segurança Alimentar no governo Itamar Franco (1992-1994). “Foi um movimento da sociedade civil que conseguiu alertar para a questão da fome, até então uma questão marginal para o Estado. Se hoje temos programas como o Bolsa Família, sabemos que ele começou a partir daquela mobilização”, acredita Dulce.

Na mesma linha, Rubem César Fernandes, antropólogo e diretor executivo do Viva Rio, acredita que o papel da ONG é fornecer exemplos de experiências bem sucedidas que podem ser adotadas pelos governos em grande escala. “O papel do Estado é universalizar ações”, afirma. Ele dá o exemplo do programa Acelera Jovem idealizado para atender a estudantes em defasagem idade-série e jovens que abandonaram a escola com apenas sete anos de estudo. O projeto é fruto de uma parceria entre a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, a Fundação Roberto Marinho e a Viva Rio. O programa já atendeu mais de 100 mil alunos. “A educação de jovens e adultos ainda é um setor marginalizado pelo sistema, com problemas de recursos, de metodologia, muito desigual quanto à sua aplicação nos Estados e nos municípios. No entanto, o problema dos jovens que deixam os estudos no Brasil é muito grave, deveria ser problema central. Achamos que o nosso programa tem qualidade, que pode ser modelo, o objetivo é que ele se torne uma política de Estado”, afirma.

Neste sentido a ONG seria como um laboratório de experiências a serviço do Estado. Segundo Signorini este modelo de organização, freqüente na Europa, não aconteceu no Brasil por várias razões. No Brasil não temos clareza histórica do que é a coisa pública como acontece na Europa. Não temos também um sistema eficaz para avaliar estes programas e finalmente, nem sempre existe a possibilidade do Estado incorporar os resultados desses projetos. “Historicamente nem mesmo as políticas públicas foram alvo de avaliação e reajuste. A avaliação do ensino nos moldes do Enem, por exemplo, é algo muito recente. As políticas foram traçadas à distância das demandas da população e nunca se dispuseram a avaliar a si próprias. Todas as nossas falhas estão aparecendo agora”, diz. O grande desafio que se coloca para o Estado brasileiro é qualidade. “O problema do Estado não é ser menor ou maior, é ser eficiente e gerar credibilidade. O sistema único de saúde está no país inteiro, assim como o sistema educacional, a questão é torná-los eficientes”, pensa Fernandes. A missão dessas organizações é contribuir para que o Estado seja mais eficiente.

As ações do terceiro setor têm que ter um viés transformador em sentido mais amplo. Não se trata, portanto, do que Signorini chama de filantropia da redenção que, segundo ela, pauta muitos programas de responsabilidade social de empresas. Isto estaria ligado a uma questão anterior que a tem ver com a distribuição de riquezas. “Temos uma idéia de que a 'boa' empresa é aquela que reinveste parte dos seus lucros em favor das populações que foram alijadas do processo de produção de riqueza. Existe por trás disso uma percepção de que o lucro da empresa é excessivo. E é excessivo mesmo. O que tem que ser discutido, na verdade, é a desigualdade gerada pela apropriação do capital. A função de distribuir melhor a riqueza não é da empresa e sim do Estado”, critica. Para ela, as empresas recebem duplamente porque tem isenção de impostos e porque agregam valor à sua imagem. Isso é confirmado pela pesquisa de Fischer e Falconer. Os resultados atestam que a maioria das empresas não estabelece relação entre sua atuação social e suas estratégias negociais, mesmo assim elas obtém resultados positivos para seus negócios. Signorini considera problemática a ausência de um gestor público orientando a aplicação dos recursos disponibilizados pelas empresas que tem total liberdade para escolher os projetos e os setores onde vão investir.

A escolha de setores vincula-se, ao mesmo tempo, à necessidade de valorizar e também de proteger a imagem da empresa. A pesquisa da USP detectou que o atendimento de necessidades de educação e saúde de crianças e adolescentes são, de longe, as prioridades sociais das empresas brasileiras. Para Fischer e Falconer, isso pode marginalizar questões sociais importantes, mas que talvez não sejam tão atraentes para as empresas como os deficientes físicos e mentais, os idosos de baixa renda, os portadores de síndromes e doenças incuráveis e de tratamento dispendioso. Fernandes, por outro lado, considera esta escolha por parte da empresa um aspecto positivo na relação com o Estado e com projetos sociais. “É bom que a empresa possa decidir onde investir parte do imposto que paga porque, para fazer isso, ela tem que parar e se fazer essa pergunta: onde vamos investir esse dinheiro? Esta é uma pergunta altamente cidadã. Compromete a empresa e a obriga a olhar em volta”, defende. Segundo ele, as opções de investimento social da empresa dependem muito do movimento da opinião pública. “É um pouco como a dinâmica do mercado que tem suas vantagens e desvantagens”, acredita o antropólogo. “Para os projetos delicados você tem outros caminhos como as fundações que podem se aproximar de temas que, em geral, as empresas evitam. Na verdade são vários atores”, completa.

No Brasil, infelizmente, não há incentivo para doações de pessoas físicas às entidades da área social. Nos EUA os incentivos fiscais para as doações – tanto de pessoas físicas como de empresas – são o estímulo principal ao terceiro setor. Agregar esse outro ator poderia gerar mais transparência para as atividades de ONGs e empresas envolvidas em programas de responsabilidade social. Barbosa acredita que este tipo de incentivo permite a fiscalização do imposto de renda – que já existe – e também um controle social, porque o doador tende a escolher entidades que conhece para fazer a sua doação. Outro aspecto defendido por ela é que deveria haver normas que exigissem a utilização das ferramentas de tecnologia da informação na administração pública. Ferramentas como workflow, gerenciamento eletrônico de documentos e assinatura digital, permitem que o processo em papel deixe de existir e que seu conteúdo possa estar disponível na internet para consulta de qualquer cidadão. No caso específico de convênios ou parcerias com ONGs qualquer um poderia saber o que ocorre no processo e não apenas os órgãos repassadores e controladores, que apenas a posteriori examinam os processos de papel e cuja consulta é impossível para os cidadãos. “Isso a meu ver seria observar realmente o princípio da publicidade. Na prática, a administração pública no Brasil se caracteriza pela opacidade, ao contrário do que pede a nossa Constituição. E não é por falta de tecnologia disponível”, conclui.