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Artigo
O controle social sobre a publicidade infantil
Por Edgard Rebouças
10/11/2006

Os debates da sociedade em geral em torno da ética na televisão por muito tempo ficaram concentrados nos programas jornalísticos. Há alguns anos, porém, a preocupação se ampliou para a programação de entretenimento – principalmente novelas e programas de auditório. Mas, recentemente, os olhares começaram a se voltar para a publicidade, mais diretamente a publicidade direcionada a crianças e adolescentes.

No caso do jornalismo, a preocupação com a ética é (ou deveria ser) quase que inerente à atividade profissional, pois está intimamente associada à credibilidade e a um vínculo de confiança historicamente estabelecido entre a imprensa e os leitores. Já no caso dos programas de entretenimento, inicialmente acreditava-se que tudo era em nome da alegria e do passa-tempo, mas quando negros, homossexuais, idosos, deficientes e índios, por exemplo, começaram a ser expostos de forma discriminatória e/ou ridicularizados diante de milhares de pessoas via satélite, uma parcela da sociedade preocupada com a defesa dos direitos humanos passou a se manifestar.

Para reunir as preocupações desse grupo é que foi criada há exatamente quatro anos, em novembro de 2002, a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”. Trata-se de um conjunto de dezenas de entidades que, em parceria com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, fazem um acompanhamento da programação da televisão com base em denúncias encaminhadas por qualquer cidadão pelo telefone 0800 619 619 ou pelo site www.eticanatv.org.br. Nestes quatro anos o número de denúncias fundamentadas já passou de 30 mil.

A atuação mais recente da campanha está voltada para a publicidade direcionada a crianças e adolescentes, um público que a princípio não deveria ser de forma alguma alvo da publicidade comercial, pois está em processo de formação de valores mais importantes para suas vidas do que o de se tornarem consumidores.

Desde 2001 está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) que altera o artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor. Segundo a proposta: “É também proibida a publicidade destinada a promover a venda de produtos infantis, assim considerados aqueles destinados apenas à criança". O entendimento da conjuntura econômica e política do país indica que tal proposta não teria a menor chance de aprovação no Congresso Nacional, daí o apoio dado à relatora do projeto na Comissão de Defesa do Consumidor, deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG). Ela reuniu vários setores da sociedade em audiências públicas sobre o tema e chegou a uma proposta de regulamentação da publicidade não somente para crianças, mas também para adolescentes. (Leia o texto da deputada).

O mais viável no atual momento é que haja uma regulamentação da atividade. Há especificidades e peculiaridades tão sutis na questão dos efeitos da publicidade sobre as crianças que seria muito precipitado simplesmente proibí-la. Devem ser ouvidos constantemente todos os lados da questão: pais, educadores, crianças e adolescentes, fabricantes/anunciantes de produtos, agências de publicidade, veículos de comunicação, acadêmicos/especialistas, governo e organizações da sociedade ligadas ao tema. O problema é que anunciantes, agências e veículos sequer admitem o debate, pois alegam que a iniciativa se trata de “censura”.

É preciso ficar claro que não há nenhuma posição contrária à televisão, sequer à publicidade. O interesse é a favor de uma sociedade mais justa, entendendo que os conteúdos da televisão deveriam simplesmente atender aos princípios constitucionais de ter finalidade educativa, artística, cultural e informativa; dentro do respeito aos valores éticos e sociais.

Em muitos países com uma tradição liberal muito mais sólida que o Brasil, como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália, Suécia, Itália e muitos outros, a publicidade direcionada a crianças já é regulada há muito tempo, sem traumas para o mercado e com muitas vantagens para os espectadores.

A tendência internacional atual é a da regulamentação (e mesmo a proibição) de publicidades ligadas ao problema da obesidade. O risco dessa mudança de foco – da subjetividade para a obesidade – é o da perda de uma série de conquistas aparentes quanto aos efeitos na formação da personalidade das crianças, que é a criação de um ser eminentemente consumista.

Um dos pontos mais importante em algumas regulamentações é o que se preocupa com o "nag factor"; trata-se daquele efeito gerado pela publicidades de levar a criança a insistir muito com os pais para que comprem um determinado produto, e se o pai não quiser ou não puder mesmo atender ao pedido, passa a ser um vilão. A figura do herói fica condicionada à compra do produto; e se o pai de um coleguinha comprar, aí fica mais grave ainda. Mas o pior de tudo, principalmente entre adolescentes, é que tal influência poder levar à violência, como o roubo de um tênis ou uma bicicleta.

Outro exemplo anti-ético grave é quanto ao uso de efeitos especiais para mostrar que o produto normalmente brinquedo faz algo que na verdade só existe na ficção até uma certa idade as crianças não conseguem distinguir entre ficção e realidade (ainda mais se exibida na televisão). E sobre esse aspecto da realidade-ficção, é muito preocupante também o fato de uma apresentadora de programa ou personagem fazer um comercial ou um testemunhal de um produto ou serviço, pois a maioria das crianças não tem claro que programa é uma coisa e intervalo comercial é outra. O contrato de confiança que é estabelecido entre o emissor e o receptor faz com que o espectador acredite naquela pessoa ou personagem como se legitimada pelo meio, e não o é; durante o intervalo ou no testemunhal o ator/apresentador ou personagem está ali como um mascate, simplesmente vendendo um produto, e recebendo um alto cachê para isso.

No caso brasileiro, quem primeiro se apresentou como defensor da não regulamentação foi o Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária (Conar). Uma entidade que reúne grandes anunciantes, proprietários de grandes agências de publicidade e representantes de empresas de TV, rádio, jornal, revista e outdoor. O principal discurso foi a retórica da defesa da liberdade de expressão comercial (?) e de que qualquer tentativa de regulação do setor é ato de censura.

No entanto, o que deve ficar claro, primeiramente, é que a televisão é um bem público, que funciona a partir de uma concessão pública. O empresariado do setor faz questão de esconder esse detalhe e tratar daquele espaço como terra de ninguém (ou só deles). O caso é que a TV é terra de todos. Segundo, a liberdade de expressão não pertence aos donos dos veículos como fizeram acreditar os proprietários de jornais do final do século XIX ao desvirtuarem o texto da primeira emenda da Constituição americana, se arvorando como "a voz do povo"; o conceito de liberdade de expressão pertence à sociedade em geral. Terceiro, censura é o ato de proibir algo sem direito a recurso, sequer debate. E por último, esse discurso de que "o controle remoto" é a melhor arma do telespectador contra a má qualidade ou os efeitos nocivos dos programas ou da publicidade é enganoso, principalmente diante da estandardização das grades de programação, onde há pouquíssimas opções de algo diferente. O controle social é a melhor saída, contanto que seja feito efetivamente com a participação da sociedade.

Há ainda a alegação de redução no faturamento das emissoras e crise na indústria de produtos para crianças e adolescentes. Mas poucos observam que o espaço destinado à programação infantil nas emissoras é muito mal aproveitado, o valor dos anúncios durante tais programas é muito pequeno, por isso não será uma perda tão grande caso a proposta seja a de não haver publicidade durante os programas infantis.

Outro ponto é que o peso da publicidade de produtos infantis no bolo publicitário é quase irrelevante, o grosso é varejo, indústria automobilística, construtoras e governos; na lista divulgada pelo Ibope sobre os investimentos publicitários no primeiro semestre de 2006, o primeiro setor de produtos destinado a crianças e adolescentes que aparece é o de refrigerantes, representando apenas 1,3% das verbas gastas em TV, rádio, jornal, revista, outdoor e TV por assinatura; sendo que o setor de brinquedos e acessórios não representa sequer 0,2% do mercado anunciante.

E mais, publicitários e veículos sabem muito bem redirecionar sua “criatividade” e espaço para continuarem a ganhar dinheiro, vide o caso da publicidade de cigarro, que representava sim um peso importante nas verbas; ninguém foi à falência por causa disso, pouco menos os fabricantes.

O problema é que em uma realidade mais voltada para a corporocracia do que para a democracia existe aquela máxima de que “em time que está ganhando não se mexe". A questão é que o time que está perdendo é o da sociedade, sempre se adequando às lógicas do lucro máximo a qualquer preço. Neste caso específico, o preço é a formação de indivíduos, não apenas futuros consumidores, mas futuros cidadãos.


Edgard Rebouças é jornalista, doutor em comunicação social, professor de ética na publicidade e na televisão da Universidade Federal de Pernambuco, coordenador do Núcleo de Pesquisa de Políticas e Estratégias de Comunicações da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e membro da secretaria-executiva da campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.