REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Segurança contra quem? - Carlos Vogt
Reportagens
Lei sobre crimes de informática voltará ao debate
Rodrigo Cunha
Não morda a isca!
Flávia Gouveia
A liberdade vigiada do Orkut
Cauê Nunes
Códigos a(r)mados, códigos desa(r)mados
Yurij Castelfranchi
Governos e mercado impulsionam censura na Internet
Germana Barata
Artigos
Certificação e identidade digital: ICP-Brasil
Renato Martini
A robotização do controle
Diego Saravia
DRM: Defectis Repleta Machina
Alexandre Oliva e Fernanda G. Weiden
Ferramentas de segurança alinhadas à realidade brasileira
Luiz Fernando Rust da Costa Carmo
Hackers, monopólios e instituições panópticas
Sergio Amadeu da Silveira
Resenha
Reconhecimento de padrões
Marta Kanashiro
Entrevista
Pedro Rezende
Entrevistado por por Rafael Evangelista
Poema
Guerra solidária
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Resenhas
Reconhecimento de padrões
Nesta trama, o objetivo é quebrar um sistema de segurança na Internet, para descobrir o autor de um filme que está sendo publicado em fragmentos na rede.
Marta Kanashiro
07/12/2006

A sensação predominante trazida por Cayce Pollard, a personagem principal de “Reconhecimento de padrões” (2003), de William Gibson, é a de “jet lag”, aquele desconforto físico após longas horas de vôo, ocasionado pela diferença de fuso horário entre os países. Deslocando-se de Nova York, para Londres, Tóquio e Moscou, CayceP., como a personagem é conhecida num fórum de discussão da Internet, descreve a sensação como a alma desligada do corpo: “a teoria de jet lag de Damien – diz a personagem no livro – está correta: que sua alma mortal ficou a léguas de distância e está sendo rebobinada por algum cordão umbilical fantasma seguindo a trilha já desaparecida do avião que a levou até ali, a centenas de milhares de pés de altura sobre o Atlântico. Almas não conseguem se mover assim tão rápido, são deixadas para trás e precisam ser aguardadas, no desembarque, como bagagens que se perderam”. Para sobreviver a essa sensação arrastada de “atraso da alma” a personagem acaba por estabelecer um “Horário Padrão Cayce Pollard”, que lhe sinaliza os horários de comer ou dormir. Mas o “jet lag” ainda está lá, Cayce se arrasta e nos arrasta com ela, com Gibson, que apesar de trazer essa sensação, imprime um ritmo intenso e acelerado à estória.

É inevitável que o livro provoque inúmeras perguntas e conexões de uma forma tão rápida e profunda que ao finalizar suas 409 páginas, a sensação se transforma em desejo de mais daquilo que começou a perturbar o leitor. E na tentativa de liberar-se da perturbação, resta jogá-la adiante e, ao fim do livro, há um misto de insônia e a vontade de presentear os amigos com essa Caixa de Pandora.

Estar perdido no tempo e no espaço como algo caracterizado pelo deslocamento acelerado de corpos e informações é o movimento caótico principal do livro de Gibson que, diferente de outras ficções deste autor, passa-se no presente. Mas junto com esse movimento, há um outro, mais lento, que se passa num outro patamar, arqueológico talvez, que repensa a História e elege como fio condutor as guerras. O autor consegue ser sutil e cínico, em passagens muito rápidas e aparentemente sem grandes significados. E é por sua sutileza que o livro pode ser lido apenas em suas aventuras, com pitadas de romance e espionagem, como Sherlock Homes ou James Bond, que ele mesmo cita.

Mas Gibson pode e vai muito além disso. Em um trecho do livro, sinaliza porque não se pode tratar do futuro, afinal “não temos futuro, porque o nosso presente é volátil demais. Temos apenas gestão de riscos. O desenrolar das probabilidades provocadas por um determinado momento. Reconhecimento de padrões”. Temas como globalização, mercado, consumo e Internet são constantes, e é a própria caracterização não futurista, mas contemporânea, que faz explodir as noções de tempo e espaço, situando uma mudança contemporânea, uma ausência de referenciais. Situar esse presente, citar pessoas e fatos reais misturados à ficção, descrever máquinas existentes em nossa história, nos jogam pra dentro da obra, instigando a pensarmo-nos nesse presente não ficcional, nesse ponto da História.

Apesar de tentar permanentemente driblar a distância entre corpo e alma, de se sentir perturbada nesse mundo e nos deslocamentos, os atributos de Cayce Pollard não são afetados por isso. Eles ficam mais claros quando ela explica que sua mãe lhe deu esse nome em homenagem a Edgar Cayce, um clarividente norte-americano que viveu entre 1877 e 1945. A atitude materna é considerada uma excentricidade pela personagem, mas há de fato nela algo como um dom intuitivo, que é classificado como uma certa “anomalia” ou uma “patologia controlada”, por meio da qual ela sabe dizer com absoluta certeza se um determinado logotipo irá funcionar para o marketing de algum produto.

E é por isso que o que CayceP. sabe fazer melhor é, como ela mesma define, “reconhecer padrões de comportamento de grupo ao redor de uma classe particular de objetos”, ou seja, ela é uma cool hunter ou caçadora de tendências. Essa não é a primeira vez que William Gibson mostra como características consideradas anômalas podem ser produtivas quando bem canalizadas, ou como fazem parte de um determinado contexto. Além de ser interessante notar as outras anomalias citadas neste livro (apofenia, paranóia e pânico), em outra obra deste autor( “Idoru” -1996),  o personagem Layne tem um “déficit de atenção”, “um talento instintivo” que o ajuda a reconhecer padrões ou localizar dados cruciais no emaranhado de informações na Internet. Eis o investimento sobre apreender tendências e reconhecer padrões, movimentos potenciais. E para identificar a si e outros personagens, Cayce diz “procure no Google por Cayce Pollard e você encontrará...”. Eis os mecanismos de busca definindo identidades, apontando os fluxos de informação na Internet, que nos tornamos.

Mas diferente de Layne, Cayce tem uma contraposição à sua habilidade ou anomalia, uma alergia a logotipos e marcas, que a obriga a arrancar todas as etiquetas de suas roupas, e deixá-las ao estilo da jornalista Naomi Klein, sem logo, ou ao avesso da rendição de Drummond (em Eu, etiqueta), ou melhor, como a própria Cayce prefere, deixá-las como CPUs (Cayce Pollard Units). E Gibson não poderia brincar melhor com os termos, afinal Central Proccessing Unit (CPU) é uma parte de qualquer arquitetura dos computadores, inventada por um matemático que participou do Projeto Manhattan para produção da bomba atômica, John Von Neumann. CPU é onde os dados numéricos são processados, por onde passa e é operado todo o fluxo de informação.

Seja o horário padrão Cayce Pollard ou as unidades Cayce Pollard, ambos também fazem parte da tentativa de sobreviver e adaptar-se na atualidade. E essas são apenas duas das inúmeras sutilezas que se desdobram infinitamente nessa grande obra de Gibson.

A trama central do livro trata de um filme que está sendo exibido em pequenos fragmentos na Internet. Nem mesmo a verdadeira legião de fãs, que inclui CayceP., sabe quem é o criador e onde ele está sendo produzido, ou mesmo de que período trata e qual sua direção narrativa. No F: F: F (Fetiche: Fórum: Filme) dividem-se Completistas e Progressistas, aqueles que acreditam respectivamente, que o filme está completo mas é exibido em trechos na Internet, ou que o filme está inacabado e sendo realizado aos poucos. Eles também dividem-se entre os que acham que o criador é um “Kubrick de garagem”, isto é, um gênio produzindo o filme de forma enclausurada e com poucos recursos ou parte do “Armário de Spielberg”, alguém possivelmente de Hollywood, que tem mais do que os recursos necessários para a produção do filme e resolveu produzi-lo e exibi-lo de forma diferente da convencional.

Independente dessas divergências, todos os fãs cotejaram, quebraram e remontaram infinitamente o filme, num procedimento marcadamente contemporâneo de tratar informações, sem chegar a nenhuma conclusão. Até o momento que um desses fãs, Parkaboy (como é conhecido no F:F:F) encontra uma marca d’água encriptada em um dos trechos do filme feita com esteganografia, uma forma de ocultar informações espalhando-as no meio de outras informações, e comunica o achado a CayceP. como uma pista para rastrear o criador do filme. Aliás parece ser exatamente isso que Gibson faz, ele espalha no texto sutis informações que são pistas para o leitor fazer outras conexões. Paralelamente à descoberta de Parkaboy, Cayce é contratada para encontrar o criador do filme, pelo mesmo homem (de nome significativo: Bigend) que a paga para atuar como cool hunter. O interesse dele é na estratégia de publicidade embutida nesse filme, o qual as pessoas adoram sem nem saber se é um produto acabado.

Enfim, está montada a trama: quebrar um sistema de segurança de informações na Internet. Cayce passa a perseguir os dados ocultos nesses fragmentos de filme e vai interagir com personagens que vão de espiões industriais, ex-espiões da CIA, colecionadores de Curtas e Timex 1000, artistas e a máfia russa, esbarrando, é claro, em sistemas como o Echelon.

Apesar da importância da trama, as conexões mais geniais de Gibson estão nas histórias paralelas, e fazem parte da crítica mordaz de seu livro. Elas questionam a História, seus significados, o presente, passado e futuro, vão da Segunda Guerra, aos campos de concentração, e à Guerra Fria, para, por exemplo, fazer um brinde ao pai de Cayce, ex-agente de segurança da CIA: “Se não fosse por homens como o seu pai, do lado da democracia e do mercado livre, onde estaríamos hoje? Não aqui, com certeza. Tampouco este estabelecimento (muito revelador por sinal) serviria aos propósitos que serve hoje, ajudando o progresso da arte ao mesmo tempo em que melhora as vidas e os futuros dos menos afortunados”.

O pai de Cayce, que ela tanto procura, desapareceu em 11 de setembro de 2001, provavelmente morto no World Trade Center. O fato dela não ter fotos ou imagens dele, e trabalhando as que tem no computador conseguir no máximo algo próximo de uma imagem que as pessoas confundem com “um William Burroughs mais novo” (autor que cunhou o termo sociedade de controle) abre possibilidades para inúmeras discussões. No entanto, o autor resume-se a dizer em uma entrevista, que as mudanças que essa data provocou no mundo é o grande tema de seu livro. Mas como foi dito não é só um assunto que traz conexões importantes. Um exemplo é a citação bastante interessante das Curtas, instrumento que tem o formato de uma granada, mas que serve para executar cálculos de forma mecânica e foi inventado por Curt Herzstark, na década de 1940, período em que era prisioneiro no campo de concentração de Buchenwald. “O título dele – diz um trecho – era escravo do serviço de informações. Eles queriam que a calculadora fosse entregue ao Führer no fim da guerra”. Enfim, pode-se perguntar a partir disso: há um cálculo que sobreviveu ao campo de concentração? Como nós ainda nos conectamos com esses resquícios? E ressoa ainda por detrás disso esse “escravo do serviço de informações”...

Contenho-me agora para não continuar aqui tentando jogar adiante, para o leitor, as perturbações provocadas pelo livro, e também não adiantar muitas das pequenas informações que Gibson espalha no texto. Mas é inevitável apontar pelo menos mais um elo trazido por Damien, um produtor de videoclipes e comerciais que hospeda Cayce em Londres.

Enquanto ela está utilizando seu apartamento, ele está enviando notícias por e-mail dos “pântanos depois de Stalingrado”, aonde está coletando imagens para um filme. Eles estão filmando pessoas escavando o pântano e encontrando os ossos e artefatos submersos de combates da Segunda Guerra Mundial, são pessoas em busca de objetos que possam ser lucrativos. Em meio a lama do pântano, ossos e corpos apodrecidos, há um ar fétido de algo recalcado em nossa História ou Memória, algo sendo reatualizado e lucrativo nos dias de hoje? E qual a relação disso com os dados e o formato que Cayce encontra nas marcas d’água? Enfim, há algo além da alma deixada pra traz, onírico, inconsciente, recalcado, “como bagagens que se perderam”, que faz dessa reconhecedora de padrões, em pleno período de gestão de riscos, também uma arqueóloga, “que não sabe se chora pelo século passado, ou pelo que acabou de se iniciar”.