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Artigo
Um mundo totalmente digital?
Por Victor Scardigli

10/02/2007

A globalização impõe o totalmente técnico como cultura do cotidiano. Só que um universo assim racionalizado e informatizado pode não só acarretar sofrimento para os indivíduos, mas também constituir uma nova fonte de vulnerabilidade para a sociedade.

A tecnicização da aviação comercial está particularmente avançada, em especial sob a forma de grande automação do vôo. Ela proporciona uma grande eficiência econômica: crescimento do desempenho e regularidade do tráfego. Responde também a uma onipresente preocupação de segurança, mas uma segurança pensada, em primeiro lugar, como "erro zero" dos seres humanos e dos materiais – em termos físico-matemáticos e regulamentares – e que, às vezes, leva ao inverso do objetivo buscado.

Uma das novas vulnerabilidades tem origem na hipercomplexidade dos sistemas informáticos: mesmo entre seus construtores, quase mais ninguém domina a soma de informações contidas nas centenas de calculadoras embarcadas num avião de carreira. Cresce o descompasso entre os conhecimentos do piloto e o número quase ilimitado de cenários que podem, dessa forma, se apresentar, sendo alguns deles inimagináveis num avião clássico, pouco automatizado. Antigamente, era a experiência que permitia ao piloto enfrentar o imprevisto, a partir dos incidentes que conhecera durante sua carreira e do saber prático transmitido pela comunidade de pilotos. Ora, a formação das tripulações privilegia, atualmente, as situações virtuais e a simulação. A isto se acrescenta a noção de "transparência para o usuário": o operador não precisa saber o que se passa na máquina, dizem-nos alguns idealizadores. Em nome da facilidade de utilização, cria-se assim, para o piloto, a impossibilidade de ter acesso ao coração do autômato e, portanto, de dominar o destino.

Uma "presença no mundo" virtual

Segunda situação radicalmente nova: a pilotagem do vôo por um híbrido de homem e máquina. O sistema informatizado de gestão do vôo combina ordens da tripulação e a pré-programação do centro de estudos. A vivência de tal situação é tranqüila quando o autômato traz ajuda e socorro ao piloto; porém, se torna conflituosa, e mesmo angustiante, em caso de ações intempestivas ou contraditórias do sistema, porque os pilotos, então, atribuem ao autômato intenções ou um projeto de ação que às vezes não chegam a prever, a compreender, nem a bloquear, se necessário. Constatamos isso analisando, com um piloto de treinamento, alguns quase-acidentes ocorridos após uma "reversão de modo cruzado": uma tripulação, que queria aterrissar, via seu avião retomar brutalmente a altitude e não conseguia mais controlá-lo, enquanto o piloto automático aplicava outra lógica, definida em centro de estudos, e que, autoritariamente, fazia o aparelho voltar a subir em caso de velocidade excessiva na descida. Desde então, esse dispositivo foi suprimido1.

Olhando-se do ângulo do autômato, é o engenheiro que intervém. Seu programa foi pensado no chão, onde reinam as leis das ciências matemáticas e físicas, longe da experiência real do piloto: como o cockpit continua sendo um espaço de contingência e de imprevisto, o vôo fica por um tempo onde nada é exatamente conforme aos conhecimentos escolares. A "presença no mundo" do idealizador permanece virtual, livresca: ele só pode preparar o futuro de seu autômato escrevendo algoritmos, testando comportamentos de uma maquete de avião num simulador ou num corredor de vento. No laboratório, ele pode até suspender e reverter o curso do tempo. No ar, o comandante de bordo não poderá parar para refletir nem recomeçar uma ação errônea...

Desconfiança aumenta vulnerabilidade

Quando os aviões fortemente automatizados foram postos em serviço, os pilotos ficaram preocupados, diante de sistemas que dominavam mal e, ao mesmo tempo, ávidos de progresso na integração dos dados do vôo, ou na representação visual da aeronave e de seu ambiente2.

Aparentemente, a informatização enriquecia a diversidade do trabalho e lhe trazia um acréscimo de eficiência. Mas, em longo prazo, cada geração de aviões ou de dispositivos novos veio se inserir numa mesma lógica: tudo pode e deve ser racionalizado, quantificado e digitalizado, sendo o operador humano obrigado a se comportar como um supercomputador, intercambiável com a máquina, o que traz para ele a desqualificação e a desvalorização. Pilotar exigia uma formação científica associada a uma extrema habilidade nas manobras aéreas; agora, o ofício se aproxima do trabalho burocrático no computador. O piloto era o único mestre a bordo, como o capitão de um navio na tempestade; agora, autômatos e redes de telecomunicação o ligam a outros centros de decisão que permanecem no solo.

O turismo de massa e a queda das tarifas se traduzem por uma forte pressão sobre as condições de trabalho e sobre o nível de recrutamento. Nas linhas de "bate e volta", a tripulação se afoba, beirando os limites da segurança, para respeitar os horários e as escalas. Em certas companhias de transporte a preços baixos, ela terá que fazer tudo: do carregamento das bagagens à limpeza. Acrescenta-se a isso um sentimento de espoliação: os centros de estudos alimentaram-se no capital de observações acumuladas durante os vôos comerciais para constituírem, progressivamente, uma ciência do vôo. O engenheiro extraiu a perícia empírica dos pilotos, cujos conhecimentos, agora, são integrados aos autômatos. O antropólogo Marcel Mauss já havia destacado: a técnica só será eficaz se reinar a confiança. Ora, no que se refere à aeronáutica, o equilíbrio dos privilégios e contra-privilégios entre inventores e usuários do progresso foi rompido. A desconfiança aumenta a vulnerabilidade cotidiana. Principalmente porque os idealizadores do totalmente-digital também são seres humanos e cometem erros que podem levar a acidentes.

Os perigos da digitalização total

Nos aviões clássicos, a pilotagem se caracterizava por sua corporeidade: comprometia todo o corpo na ação sobre os comandos, todos os sentidos na atividade de vigília. Dirigia-se à totalidade da pessoa. E essa maneira de pilotar era apenas a superfície emersa de uma verdadeira cultura, em sentido antropológico: os pilotos de carreira formavam uma quase comunidade etnológica, com suas hierarquias sociais (ligadas ao número de horas de vôo, ao prestígio dos aparelhos e das linhas); com seus locais de socialização e seus rituais de iniciação; com seus modos de transmissão oral das experiências do trabalho em linha, das aventuras vividas, dos incidentes e das soluções inventadas. Hoje, aos olhos da racionalidade técnica, o saber dos antigos não tem valor e uma longa experiência dos cockpits clássicos pode até entravar a aprendizagem da novidade.

O exemplo da aeronáutica permite prever o papel que assumirá uma digitalização que se estenda a todos os âmbitos de nossa vida cotidiana. Num universo em que nada poderia escapar à medida e ao número, os domínios que ignoram a quantificação – a consciência, os valores – deixam de ter direito à existência. Não só a digitalização facilita a tomada de poder dos engenheiros sobre o saber de outros cidadãos, como também, e principalmente, nega qualquer possibilidade de existência de uma outra compreensão do mundo, de um outro projeto de sociedade. O que separa os engenheiros projetistas e os operadores chamados para aplicar suas invenções? Certamente, uma divergência de interesses: eles entram em conflito para saber quem deve definir a sociedade de amanhã, quem deve dirigir suas transformações. Mas, em primeiro lugar, duas experiências do real, duas culturas quase incomunicáveis.

Uma rede de vigilância informática

Para os engenheiros dos centros de estudos, a totalidade do universo físico e humano pode e deve ser explicada por leis físico-matemáticas. Um processo de decomposição da realidade em elementos simples permitiria a construção de uma sociedade menos vulnerável: por exemplo, para a aviação, a realização de um vôo sem perigo.

Ora, tudo se revela interdependente; ao decompor, e, portanto, ao introduzir descontinuidades, criam-se às vezes outros riscos. O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 é revelador dos perigos corridos por causa do procedimento cartesiano clássico. Ele descompôs os domínios de ameaça, mas em dois universos distintos, um civil e um militar. Os construtores aéreos desenvolveram pesquisas visando melhorar a segurança, mas apenas para os passageiros e tripulantes: de fato, tornou-se raro um desvio de avião acabar mal. Paralelamente, o exército havia desenvolvido sistemas de defesa antimísseis. Mas as duas providências não se encontraram. Nunca se cogitou, seriamente, que um avião civil de passageiros pudesse se transformar em míssil de destruição em massa3.

A segurança se inspira na organização taylorista do trabalho em usina. A organização do céu segue o modelo experimentado – de linhas e intervalos horários - que os engenheiros de comunicação implantaram há dois séculos. No desenrolar de cada vôo pululam imprevistos que fogem desse sonho de perfeição: bastou um pedaço de ferro esquecido na pista para derrubar um Concorde... Pensa-se dominar o "fator humano" – quer dizer, o piloto, designado como a fonte maior de acidentes – colocando-lhe as amarras dos regulamentos e envolvendo-o com uma rede de ajudas e vigilâncias informáticas. Como Argos, ele é revestido de uma pele coberta de sensores cada vez mais numerosos, de sondas e outros alarmes; desse modo, como o príncipe de cem olhos do mito grego, ele deveria ver tudo. Mas, às vezes, o resultado é o inverso: o excesso de segurança pode embotar seu espírito crítico. É o que indicam também as observações sobre a segurança rodoviária: dirigir carros torna-se tão confortável e tranqüilo, que a vigilância do motorista é embotada. E Argos, adormecido, pode ser atingido.

A mercantilização do cotidiano

De modo mais amplo, para nosso futuro cotidiano, os discursos de acompanhamento do progresso continuam sendo enunciados truncados, que negam conflitos entre visões do mundo e entre interesses. A perfeição técnica é apenas um belo conto infantil, porque a carapaça de invulnerabilidade com que pretende nos envolver está esburacada por imperfeições. Não se trata, aqui, de contestar a competência e a seriedade dos idealizadores nem a qualidade de suas criações. Esforços consideráveis são mesmo empreendidos periodicamente pelos centros de estudo para integrar o ponto de vista dos destinatários do desenvolvimento técnico. Mas ainda estamos muito longe do que seria desejável: a "co-invenção" de cada aplicação técnica importante por seus futuros usuários.

O totalmente-digital reforça a dinâmica dominante: mercantilização do cotidiano, divisão social e desigualdades planetárias que se aprofundam de forma extrema. Um abismo cultural se cava entre os idealizadores da modernidade e as populações. A caminho da felicidade tecno-mercadológica como única cultura mundial, perdemos nossas raízes culturais. Convocados a nos comportar como máquinas perfeitas, dialogando com outros autômatos, não sabemos mais o que é próprio do homem. Estamos ameaçados em nossa própria humanidade!

Victor Scardigli é antropólogo, diretor de Pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.

Tradução: Fábio de Castro

Este artigo foi originalmente publicado no Le Monde Diplmatique, em outubro de 2002.

1 Ler, de Victor Scardigli, Marina Maestrutti e Jean-François Poltorak, Comment naissent les avions. Ethnologie des pilotes d’essai, ed. L’Harmattan, Paris, 2000.
2 Ler, de Caroline Moricot, Des avions et des ailes. Socio-anthropologie des pilotes de ligne face à l’automatisation des avions, ed. Septentrion, Paris, 1997.
3 Foi preciso o atentado contra o World Trade Center para que aflorasse um outro perigo, cuidadosamente escondido, ainda que mencionado num estudo sobres riscos, e que permaneceu confidencial: os centros nucleares são estudados para resistirem aos tremores de terra, mas não aos ataques aéreos. Enquanto se dá uma atenção extrema ao "fator humano de acidente nuclear" - isto é, às falhas dos operadores que fiscalizam o processo de geração de eletricidade –, nada é previsto contra um pequeno avião que, por acidente ou voluntariamente, se choque, por exemplo, contra o centro de tratamento de La Hague, o que provocaria uma contaminação do planeta equivalente a sessenta vezes a de Chernobil…