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Reportagem
Culpa de quem?
Por Yurij Castelfranchi
10/03/2007

Primeiro, negar o problema: não existe aquecimento global; não há provas de que a temperatura do planeta esteja aumentando. Segundo, negar a responsabilidade: o aquecimento existe, mas pode ser um fenômeno natural; não há provas de que a atividade humana seja responsável. Terceiro: caso a solução tenha um custo, negar a existência da solução. Isto é, já que a temperatura aumentou, e vai crescer mesmo diminuindo a poluição, não faz sentido limitar o crescimento econômico. Melhor acelerar e juntar recursos para enfrentar as conseqüências do aquecimento.

Embora minoritárias, científica e politicamente, essas formas de encarar as mudanças climáticas tiveram grande impacto nas discussões da última década. E contribuíram para que, até agora, as ações globais para enfrentar o problema tenham funcionado muito pouco. Quem sabe a nova trilogia de relatórios dos cientistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), apesar de não conter capítulos inéditos da novela, pelo menos sirva para colocar um ponto final nesse penoso teatro da negação. Agora, quase todos (inclusive a corporação Exxon e o governo dos Estados Unidos, mas com a exceção, talvez, de uns editorialistas do Estado de S. Paulo) admitem que o problema não só é concreto e sério, como também que não há saídas a não ser construir uma ação planetária, rápida, para atenuar o aquecimento e seus efeitos. Resta, entretanto, o problema (político e científico) de estabelecer como fazer. E como dividir a conta, que vai ser cara.

O peso da culpa

A palavra “culpa” pode dar um bom título, mas não é um bom ponto de partida quando o objetivo é que todos os países do mundo se juntem em torno de uma mesa para decidir como encarar o problema. A busca de pecadores, crimes e castigos, gera negação e fuga. Por outro lado, a idéia de que a responsabilidade pelo dano ecológico é coletiva, do gênero humano, pode levar a não fazer nada. Por isso, nas negociações internacionais foi estabelecida a necessidade de encontrar metas específicas para cada país, e que cada um assuma responsabilidades e deveres diferentes. Uma forma de fazer isso é “pesar” a responsabilidade de países, empresas, pessoas. Por exemplo, em toneladas: quem emite mais gases estufa, mais deve intervir e pagar.

A culpa dos gases

O gás que mais contribui para o efeito estufa é o vapor d’água que, porém, não é diretamente produzido em grande quantidades pela atividade humana. Os três gases estufa que têm mais impacto sobre o aquecimento global ligado à atividade humana, são:

- O dióxido de carbono (ou gás carbônico, ou CO2), liberado na atmosfera durante queimadas ou pelo uso de qualquer combustível fóssil (petróleo, carvão etc.);

- O metano (ou CH4) gerado, por exemplo, no aparato digestivo de animais de gado ou em grandes arrozais; num intervalo de tempo de 100 anos, tem efeito 23 vezes maior que o CO2 em produzir aquecimento global (mas é presente na atmosfera em quantidade muito menor);

- O óxido nitroso (ou N2O, ou gás hilariante), que pode ser liberado por atividades agropecuárias, tais como o uso de fertilizantes; contribui para o aquecimento 296 vezes mais que o CO2, se examinado ao longo de 100 anos

Mas estimar a quantidade de gás emitida em cada país não é fácil. Muitas vezes, só se calcula a “culpa” baseada na produção do dióxido de carbono gerado pelo uso de combustível. Se formos por esse caminho, sabemos quem são os vilões: em 2002, os EUA (com 24% do total mundial), a União Européia (15%), a China (14,5%), a Federação Russa, a Índia e o Japão lideraram a lista dos poluidores (sendo que o Brasil se encontra também entre os primeiros 20). Mais justo, porém, é medir a responsabilidade não só pela emissão total, porque há países muito pequenos que, proporcionalmente, poluem muito. Se calculamos o gás carbônico emitido em média por cada habitante, aparecem no clube dos piores muitos países árabes produtores de petróleo. E, entre as nações de grandes dimensões, Austrália e Canadá. Esses dados, porém, refletem só uma parte da realidade. Porque não levam em conta, por exemplo, os gases produzidos pelas mudanças no uso dos solos, como as imensas quantidades de CO2 geradas pelas queimadas, ou o metano e o óxido nitroso vindo da agricultura e pecuária. Além disso, alguns se perguntam se a responsabilidade de cada país se mede realmente pela quantidade de gases estufa que está emitindo. Para outros, mais justo seria buscar medir os gases poluentes equivalentes aos produtos que um país consome. Para outros, importante é medir o trajeto histórico de cada país.

A proposta brasileira


Há uma proposta, formulada pela delegação brasileira já na época das primeiras negociações para o Protocolo de Quioto, que sugere que não se olhe quanto gás é emitido agora, mas a responsabilidade histórica de cada país, isto é, que se tente estimar quanto do aumento de temperatura do planeta se deve a tudo que cada país fez até hoje. A proposta foi discutida por cientistas do mundo inteiro e levada em conta pela Convenção sobre Mudanças Climáticas da ONU (UNFCCC). No Brasil, pesquisadores da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da UFRJ, no Rio de Janeiro, entre outros, a analisaram em vários artigos científicos. A idéia é pôr em ato, da forma mais justa o princípio, já em vigor em tratados internacionais, de que “quem polui, paga”. Mas como calcular a porcentagem de danos que cabe a cada país, levando em conta todo seu histórico de produção de todos os gases que contribuem para o aquecimento?

“Calcular as responsabilidades históricas é complicado, porque não conhecemos com precisão todos os dados e porque é preciso fazer várias escolhas de caráter político”, explica Jan Fuglestvedt, climatologista do Centro para Pesquisa Internacional de Clima e Meio ambiente Cicero sediado em Oslo (Noruega). A porcentagem de responsabilidade que cabe a cada país, explica o pesquisador, depende, por exemplo, de que gases incluímos no cálculo, e vindo de quais fontes (Indústria e transporte? Agropecuária?). Também depende de qual indicador se escolhe para medir a mudança climática (aumento de temperatura ou do nível dos mares, por exemplo). Enfim, os resultados mudam muito se queremos medir a porcentagem que cabe a cada um para o aumento de temperatura atual (para o qual contribuem muito as emissões feitas no passado), ou da temperatura, digamos, em 2050 (para a qual contribui muito a emissão em anos recentes). “Nós fizemos os cálculos de uma forma bastante sofisticada”, explica o pesquisador. Foram utilizados modelos climáticos simulados no computador, inserindo um leque de tempo para incluir as contribuições em épocas passadas e inserindo não somente o consumo de combustíveis fósseis, mas também os gases estufa vindos da agricultura, deflorestação e pecuária. O grupo norueguês chegou a resultados bastante polêmicos: os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – os chamados desenvolvidos, os únicos que, de acordo com o tratado de Quioto, estão obrigados a reduzir suas emissões até 2012 –, na verdade contribuem para menos da metade do aumento da temperatura global. A América Latina, por exemplo, ficaria responsável por uma parcela de aquecimento global comparável à da rica e industrializada Europa Ocidental (13%). “O fator principal por trás dessa diferença”, comenta Fuglestvedt, “é a inclusão das emissões de CO2 vindo da deflorestação e as de metano, que, por exemplo, são muito elevadas nos arrozais na Ásia”.

Mas, mesmo que se chegue a um consenso sobre tais resultados, falta decidir se toda poluição tem o mesmo peso, em termos de responsabilidade: uma tonelada de gás carbônico gerada para produzir um bem de luxo, ou por uma viagem de avião para as férias, vale tanto quanto uma tonelada produzida pelo transporte público, ou por pessoas de uma aldeia africana que usam lenha onde só existe esse tipo de fogão? E, mesmo encontrando uma medida consensual da responsabilidade de cada um, resta um problema político delicado: como traduzir as responsabilidades em preços a pagar? De que maneira tais preços servirão para estabilizar, finalmente, a temperatura do planeta?


Como dividir a conta (e diminuir o aquecimento)

A forma mais óbvia de diminuir a emissão de gases estufa seria proibir que sejam produzidos acima de um determinado limite. Porém, em tempos de globalização, desregulamentações e neoliberalismo, quase ninguém acredita que mercado e desenvolvimento sustentável possam caminhar juntos por meio de leis e proibições. Muitos imaginam que uma forma simples de ver em ação o princípio “quem polui, paga”, é colocar uma taxa sobre a emissão de dióxido de carbono, a chamada carbon tax. Quem optar por queimar combustíveis fósseis (ou florestas), que pague por isso. O dinheiro recolhido pode ser usado para pesquisas sobre fontes alternativas de energia ou para apoiar projetos de desenvolvimento sustentável. Os bens cuja produção se baseia em tecnologias pouco limpas acabam ficando mais caros, incentivando as empresas a buscar formas alternativas de produção. Muitos especialistas, porém, acham que a maneira mais eficiente de chegar a uma diminuição das emissões é deixar que o próprio mercado se encarregue disso. O sistema se chama cap and trade (ou seja, “fazer cotas e comerciar”, ou “limitar e negociar”), e faz parte das regras do Protocolo de Quioto, como também dos mecanismos aplicados em alguns estados dos EUA (embora o governo federal até hoje se recuse a ratificar o Protocolo). Primeiro, se estabelece uma quantia máxima de emissão de gases para o país. Depois, se divide tal quantia em cotas de direito de poluir. Em seguida, se colocam tais cotas no mercado: as indústrias que preferem ou precisam poluir mais, deverão comprar cotas das empresas que, tendo uma produção mais limpa, não utilizam suas cotas, obtendo assim um benefício econômico. O dinheiro recolhido com a venda das cotas pode ser utilizado, de acordo com o Protocolo de Quioto, para financiar projetos de desenvolvimento sustentável em países em desenvolvimento (os chamados “Não Anexo I”), que ainda não têm obrigação de reduzir suas emissões: é o chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Parece genial. Mas envolve várias questões (veja a entrevista nesta edição). Se o custo das cotas não for bastante alto, por exemplo, ficando mais fácil comprar do que parar de poluir, o aquecimento global não diminuirá. Além disso, o princípio “quem polui, paga” parece justo, mas alguns afirmam que sua conseqüência é injusta: os que mais poluíram até hoje, e que podem pagar mais, continuam tendo direito de poluir mais, o queestá diretamente relacionado com o desenvolvimento econômico.

“Mas existe uma alternativa”, explica Aubrey Meyer, ativista inglês, fundador do Global Commons Institute e autor de uma proposta que foi bastante discutida recentemente. “Sendo que a atmosfera é um bem comum da humanidade”, comenta, “devemos considerar o direito de poluir como direito humano fundamental, portanto garantido a todos em igual medida”. A receita de Meyer se chama “Contração e Convergência”, e tem três ingredientes. Primeiro, avaliar quanto deve diminuir a emissão de gases estufa, para que, gradualmente, a temperatura do planeta pare de aumentar e se estabilize. Dividir então o total de gases que podem ser liberados na atmosfera em todos os países, em partes iguais proporcionalmente à população, porque, diz Meyer, “defender direitos desiguais é fútil”. O objetivo é que, ao longo de algumas décadas, as emissões de diferentes países se aproximem, até chegar ao mesmo nível médio por pessoa e, ao mesmo tempo, fiquem se contraindo até chegar a um nível aceitável para os ecossistemas. Inicialmente, os países ricos não terão como poluir somente o que lhes caberia, e comprarão cotas daqueles países pobres que estão usando menos do que lhes compete. Aos poucos, a emissão (e a economia) dos países pobres aumentaria, imagina Meyer, enquanto os que mais poluem diminuiriam sua poluição, para chegar, também aos poucos, ao objetivo de que cada pessoa no mundo tenha direito à mesma emissão. “Tanto o mecanismo de Quioto quanto a proposta brasileira”, continua Meyer, “não encaram um desafio central: como estabilizar a concentração de gases estufa na atmosfera, como suspender o aumento da temperatura antes de chegarmos a uma mudança climática desgovernada”. Quioto prescreve um corte nas emissões (em 2012 deverão ser 5,2% a menos do que eram em 1990), que é, para Meyer, “decidido arbitrariamente, isto é, não ligado a uma estimativa científica de quanto é necessário diminuir a poluição”. Além disso, continua, os EUA se recusam a implementar o Protocolo, e no resto do mundo se alcançaram apenas resultados mínimos: “com os jogadores principais fora do campo, Quioto tem efeito pequeno demais, e tardio demais”.

A idéia da convergência e do direito à mesma emissão para cada pessoa foi adotada e ampliada por algumas ONGs ambientalistas (como a irlandesa Feasta), e chamada de cap and share (limita e compartilha). O princípio é o mesmo, mas a idéia é que cada cidadão do mundo (e não cada governo) receba uma carteira com sua cota de direitos de poluir e, no final de cada ano, receba o dinheiro correspondente, caso tenha emitido gases estufa abaixo dessa cota.

A negociação sobre como medir responsabilidades e como dividir os custos, dá para ver, não será fácil. A conta a pagar, caso os governos do planeta decidam buscar resultados mais concretos do que os do Protocolo de Quioto, pode ser muito alta para a economia mundial. O problema é que, enquanto os anos passam em negociações políticas e propostas técnicas, os custos dos danos ligados ao aumento da temperatura só crescem. Como todas as contas que protelamos em pagar, esta também vem com juros. E o pior: não sabemos qual será a taxa.