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Editorial
A casa alsaciana
Por Carlos Vogt
10/05/2007

Ainda bem que você não está mais aqui para cobrar meu silêncio. Nada devo se ninguém insiste. Não fosse a independência dessa história, tudo estaria em ordem. Sem conflitos com o passado, pouquíssimo de vida, nenhum futuro impossível.

Rodopiamos no dia-a-dia.
Mudamos para outro país e desacreditamos do ódio banal em nossa convivência. Euforia do novo a garantir as malas prontas para a desilusão. Difícil perceber.
Estranho que estejamos decidindo agora esse afastamento tecnicamente planejado. Estudo, trabalho, opções políticas são argumentos insofismáveis quando a gente não se suporta. Só a procurei para ouvir a confirmação: não dava, não estava segura do que fazer, não tinha interesse. Meu trabalho, seu ponto de vista, suas angústias, minhas posições, tudo era incompatível. Não há filosofia que agüente noites seguidas sem dormir. Eu roncava muito e ela vivia tomando sonífero.

Ficamos juntos sete anos. Dizem que este é um número crítico para casais jovens. Sabia que era um número de azar ou de sorte. O fato é que foi duro o momento de ajustar as contas. Pior ter que procurar satisfações para dar aos conhecidos. Aos meus pais, aos meus avós, em especial ao meu avô. Timidez incontrolável, antiga como esse pobre heroísmo de Ulisses interiorano. Cada explicação, um caco de orgulho caído.
Tenho vergonha por não ter dado certo comigo o modelo de minha velha casa alsaciana. Sim, porque meus avós, quando a construíram no meio da poeira vermelha da terra e da ignorância de caboclos maliciosos, trancaram no seu interior a austeridade e o pudor próprios de sua raça. Ali vivemos felizes e isolados do contágio com aquela gente que só atendíamos por necessidade comercial. Meus avós, depois meus pais, tinham uma loja de secos e molhados. Pensaram que eu merecia coisa melhor do que a amizade dos filhos dos colonos italianos que cuidavam das grandes plantações de café, pertencentes a dois ou três fazendeiros. Estes eram boa gente, mas não moravam ali na cidade. Viviam nas fazendas ou num centro maior onde os filhos pudessem ter vida social mais condizente com suas posses.
Quando fui estudar fora, levei comigo as esperanças do estado de exceção de minha casa. Sempre fui sério e cumpridor. Logo depois de me formar, fui lecionar numa escola de comércio noturna. Conheci você na Lapa e passado um mês nos casamos. Não deu certo desde o começo. Jamais compreendeu a pureza de minhas intenções. Eu a via com um jeito dissimulado de mulher à toa. Graças a Deus não tivemos filhos. Ninguém a quem deixar o legado..., etc. Você conhece o resto.

- Então é definitivo?
- Por favor, não comece a pôr questões que me obriguem a respostas que você espera ouvir.
- Mas...
- Eu sei onde você quer chegar. Conheço o seu jeito. Começa humilde e termina me convencendo que até minha respiração é um equívoco. Estou cheia de suas razões, cansada de sua retórica, saturada de seu tédio de fazendeiro sem terras.
- Mas!...
- Aí está a única coisa positiva que você consegue dizer.
- Eu não disse nada!
- Você não disse nada? Não diga! Finalmente você não disse nada. Você chega a ser engraçado quando não quer.
- Posso falar? Vim aqui pra conversar e não para ser espezinhado. Aliás...
- Não, você não vai falar. Não aqui na minha frente. Sei de cor o seu discurso. O que revela e os propósitos que esconde. Não, você não veio conversar comigo. Você se deixou trazer pela certeza do “sacrifício de uma viagem tão longa”. Pelo “considere as coisas que tenho para resolver no Brasil”. Pelo “bem agora que o dinheiro está curto”. Pela ladainha de motivos que disfarçam a vaidade ofendida do macho despachado. Você não tem nada a dizer que eu não possa adivinhar. O original em você é repetição. Veio até aqui para ser narrado por um texto que virou clichê.

Nunca fui procurá-la por medo de ouvir coisas assim. Fico imaginando você cheia de estruturalismos agressivos e independências sofisticadas. Alguns colegas de serviço acham-me muito abatido e me aconselham a procurar um médico. Sinto que pretendem insinuar a necessidade de um psiquiatra. Alguém chegou a dizer outro dia que preciso me libertar do fantasma de nossa relação. Não sei se devo. É o que me resta. Tenho muitos desejos de encontrá-la. Quero me explicar. Mas tenho medo. Por isso tenho pensado insistentemente em voltar para a casa de meus avós. Lá não mora mais ninguém. Meus pais, aposentados, mudaram-se para São Vicente. Meus avós há tempos retiraram-se da vida. A casa continua fechada e povoada de recordações. Não suporto que me digam o que fazer. Algumas pessoas se dão o direito a uma intimidade que não consinto. Nunca foram meus amigos. Hoje são estranhos. Esparramam-se em atenções e mesuras. Irrito-me facilmente. Tenho ganas de xingá-los da forma mais chula. Penso e engasgo no palavrão. Falta-me coragem; sobram-me maneiras e educação constrangedoras. Emito apenas alguns resmungos, suficientes, contudo, para encher-me a boca de nós e bichos esquisitos. Minha resistência é pouca. Vive acuada nesse corpo imenso. Nele, a delicadeza é quase uma farsa. Sem dúvida, uma afronta para os devotos da aparência. Tudo o que eu quero é que deixem em paz meu casamento, minha separação. Cuidem de suas vidas, permitam-me ser discreto sem estorvos.

Não tenho passado muito bem longe de você. Estou há três meses na casa alsaciana. Habituo-me à solidão, mas sofro com as reprimendas de meu avô que no último mês tem vindo visitar-me duas vezes por semana. Às terças e aos sábados. Na semana passada ele apareceu também na quinta-feira. Estou apreensivo porque acho que ele virá hoje outra vez. O meu receio é que ele resolva ficar e eu tenha de cuidar de sua velhice eterna. Sei que hoje é domingo, pois tive vontade de ir à missa de manhã. Não fui porque perdi o hábito de me expor à curiosidade acanhada da cidade. Além disso tenho fortes indícios de que meu avô está para chegar. Aprendi a antecipar sua presença através da manifestação de alguns sintomas que agora já considero sistemáticos. Começa pelo enjôo. Como este. Evolui para uma dor intensa, mas difusa. Asfixio, perco a respiração e vomito. Aí ele aparece com sua voz pausada e profissional. Não tem mais sotaque. Explicou-me outro dia que sempre preferiu o alemão ao francês. Passeia os olhos pelo quarto. Senta-se na cama onde dormiu com minha avó por quase sessenta anos. Permanece longamente em posições fixas, às vezes incômodas. Tem um ar distanciado antes de falar. Olho para ele aterrado, cheio de admiração. Fascina-me seu ar de juiz de província, a convicção de seu queixo sentencioso. Não mexo um dedo. Imóvel, enquanto dura este namoro impiedoso, aguardo, impotente, o início da história que ele vai contar.

* Publicado originalmente em Contos paulistanos, Porto Alegre, ed. Mercado Aberto, 1988, p. 32-36.