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Resenhas
Em trânsito
Documentário mostra situações cotidianas dos habitantes de São Paulo nos caminhos que percorrem diariamente, da periferia rumo à zona nobre da cidade
Por Sabine Righetti
10/06/2007

Uma mulher magra, de aparência sofrida, vestida (coincidentemente ou não) de blusa verde e saia amarela deixa o seu barraco na periferia de São Paulo, enquanto o dia ainda amanhece, e caminha. São 11 quilômetros em aproximadamente duas horas até chegar ao trabalho, onde atua como empregada doméstica. Na volta, o mesmo percurso a pé, o mesmo tempo, os mesmos quilômetros. Ela não tem recursos para usar o transporte coletivo e, obrigada a morar nas longínquas margens da cidade, optou por fazer o caminho andando. Ela é uma das personagens reais do documentário Em trânsito que, com o foco em situações cotidianas do trânsito e do transporte coletivo na cidade, aborda em 96 minutos questões como relações humanas, diferenças sociais e problemas de habitação na capital paulistana.

A região metropolitana de São Paulo, quinta maior concentração humana do planeta, reúne aproximadamente 17 milhões de habitantes que circulam diariamente entre mais de 1.500 quilômetros quadrados, por meio de diferentes meios de transporte. De casa para o trabalho e vice-versa, as pessoas costumam gastar horas nos trajetos. No meio de tanta gente, tantos rumos e tantas histórias, o documentário foi capaz de pinçar quinze personagens que traçam um perfil do paulistano – ou daquele que vive em São Paulo.

Esse é caso da mulher de verde e amarelo, que aparece no documentário caminhando em tomadas rápidas (flashes). Ela representa milhares de habitantes da cidade que vão trabalhar a pé, saindo das periferias rumo à região nobre e central. A crítica social aqui é pesada. E os fatos pesam por si: a mulher-personagem-real morreu de pneumonia dez dias antes do término das gravações.

Junto com ela, outros personagens retratam, no documentário, o habitante da periferia da cidade, que pena para ir e voltar do trabalho entre ônibus, vans, trens e metrôs. Isso sem falar nas longas caminhadas que fazem até chegar ao ponto de ônibus ou estações de metrô e de trem, já que boa parte das linhas metropolitanas não atinge o interior dos bairros periféricos. Eles vivem em barracos com poucos cômodos, improvisados, sem documentação, em meio a uma violência muitas vezes explícita. “É preciso ter a cabeça boa para não se revoltar”, diz um rapper morador de Capão Redondo, que trabalha no Jardim Ângela (também na periferia da capital).

Do outro lado da cidade, um personagem mora na nobre zona sul. Usa carro para se locomover e anda armado para se defender. Já teve quatro carros roubados, justifica. O dele é um dentre 5 milhões de automóveis que trafegam pela cidade diariamente. Outra personagem, habitante da mesma região e igualmente motorizada, já não concebe sua vida sem seu carro. Ela ainda optou por morar perto do trabalho para poder almoçar em casa, com os filhos.

A cidade que domina

O dia a dia no trânsito e no transporte coletivo dos moradores da Grande São Paulo se articula com outras dimensões de suas vidas e chega a dominá-los. Muitas vezes, o paulistano se vê obrigado a mudar de casa e de bairro, caso troque de emprego. Trata-se de uma alternativa para evitar horas e horas no trânsito.

Os que preferem morar longe do trabalho, mas perto de regiões mais arborizadas, e os que moram na periferia por falta de opção, revelam no documentário o que fazem nas longas horas de tráfego. Lêem, pensam, falam ao celular, olham a “paisagem”. O trânsito pode aproximar pessoas: a mãe aproveita o momento com a filha no carro para conversarem, os vizinhos de cadeira no transporte coletivo se conhecem. Em alguns casos, o papo rende até casamento, como aconteceu com uma personagem que conheceu seu atual marido num ônibus. Hoje, o marido vai trabalhar de bicicleta, em um trajeto de 1 hora, para economizar o salário de gari.

O mesmo trânsito que aproxima, pode também distanciar as pessoas. Um motorista de ônibus lamenta o quanto tem se afastado da família devido ao tempo que perde para ir e vir do trabalho – isso além das aproximadamente 10 horas diárias que passa trabalhando no trânsito, na frota paulistana.

Como o motorista, outros personagens também fazem do trânsito o seu trabalho. É o caso de um pastor, habitante da periferia, que aproveita a concentração humana dos vagões do metrô para pregar a palavra de Deus. Por falar em Deus, ele é lembrado por quase todos os personagens do documentário: “todo mundo fala que Deus existe, tomara que esse homem exista mesmo. Mas aqui no transporte ele não está”, comenta o mesmo motorista de ônibus que reclama sobre a distância da família.

Se viver na periferia torna uma pessoa mais vulnerável à violência, conduzir um ônibus em linhas de bairro periféricos aumenta ainda mais essa vulnerabilidade. Isso porque nessas linhas os carros são mais velhos, as pistas piores e os atentados contra os motoristas (por exemplo aqueles que negam uma carona) são comuns. Já os bairros nobres da cidade, além de reunir as melhores habitações, também concentram os veículos e pistas em melhores condições.

Em trânsito tem pontos fortes, como a riqueza dos personagens e histórias. Há até um clima de suspense, como na filmagem do percurso diário feito por um dos 200 mil motoboys da cidade, com tomadas entre carros, em alta velocidade. O modo como uma segunda câmera foi usada no documentário, fazendo tomadas da própria produção e da equipe, também convence. Mas talvez faltem alguns recursos vindos do cinema. Uma trilha sonora? Pode ser, mas a direção optou pelo duro som da cidade.

Em trânsito foi filmado em 2003, sob a direção de Henri Arraes Gervaiseau, coordenador do Núcleo de Audiovisual do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). O Centro trabalha em parceria com Fundação Seade, Universidade de São Paulo (USP), Sesc (SP), com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e recebe apoio da Fapesp por meio do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid). O documentário faz parte de um trabalho de experimentação do CEM para difundir os resultados de suas pesquisas. Junto com Em trânsito, as produções documentaristas A moda do Centro, sobre os circuitos étnicos em torno da indústria têxtil do bairro paulistano do Bom Retiro, e 5 mulheres de Paraisopólis, uma perspectiva feminina sobre a vida na favela de Paraisópolis (SP), são igualmente imperdíveis.

Em trânsito
Direção: Henri Arraes Gervaiseau
Brasil, 2005