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Habitação: eu planejo, tu planejas... NÓS planejamos
Por Marcelo Lopes de Souza
10/06/2007

Segundo estimativa da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional (composto pelo total de domicílios inadequados, rústicos, improvisados ou que abrigam mais de uma família) alcançava, no Brasil, em 2000, cerca de 7,2 milhões de domicílios, ou pouco mais de 16% do total de domicílios no país. E essa é, muito provavelmente, uma estimativa conservadora. Coloque-se, agora, a questão: quem deve planejar as soluções para o problema habitacional brasileiro (ou de qualquer outro país)? Somente o aparelho de Estado?

Há termos que, de antemão, despertam simpatia ou antipatia, dependendo do ambiente. Planejamento tem sido, entre os pesquisadores urbanos de formação e índole mais críticas, um tema, por assim dizer, “maldito”, a tal ponto que a própria palavra desperta antipatia em algumas pessoas. É como se o planejamento fosse, intrinsecamente, um saber conservador...

Admito de muitíssimo bom grado que esse tipo de preconceito se apóia sobre uma base largamente real. Afinal, para o que tem servido o planejamento promovido pelo Estado nas sociedades capitalistas, quase sempre, senão para perpetuar ou até mesmo para agravar as condições de dominação? Quem ignora que, nos EUA, convencionalmente visto como um país plenamente “democrático”, o planejamento serviu e continua a servir, muitas vezes, para facilitar processos de segregação residencial? Seria até tedioso listar exemplos de serventia do planejamento urbano a objetivos antipopulares, seja em países centrais, seja em países periféricos e semiperiféricos.

É evidente que, no que se refere ao planejamento promovido pelo Estado, dificilmente poderia ser diferente. A tendência lógica é a de que esse planejamento sirva, direta ou indiretamente, à dominação, à heteronomia, à segregação. Afinal de contas, essa é a tendência essencial do próprio Estado capitalista.

Tendência não significa, porém, inevitabilidade absoluta e determinística. Acompanhando Nicos Poulantzas, pode-se dizer que o Estado é a condensação de uma relação de forças, e não um monolito sem fissuras, isto é, uma realidade sem contradições. Existe, portanto, a possibilidade de que, conjunturalmente, enquanto governo, forças políticas razoavelmente comprometidas com uma agenda de mudança social assumam o controle do Estado, alavancando alguns avanços não desprezíveis. Isso em nada muda o caráter estrutural do Estado como uma instituição heterônoma, opressora; além do mais, tais conjunturas consistentemente favoráveis tendem a ser raras e frágeis, e mais prováveis em escala local que em escalas supralocais. No entanto, se generalizarmos abusivamente, no estilo “qualquer planejamento e qualquer governo, nos marcos do Estado capitalista, é, necessariamente, conservador”, cometeremos dois equívocos, de sérias implicações políticas: um, empírico; outro, teórico-estratégico.

O empírico: nós esqueceríamos, por exemplo, daqueles “advocacy planners” mais críticos, que na segunda metade dos anos 60 e primeira metade da década seguinte, davam apoio a populações de guetos em cidades dos EUA, atuando como “advogados” de seus interesses, diante de ameaças como a erradicação forçada do gueto (equivalente americano das remoções de favelas que, entre os anos 60 e 70, foram comuns no Brasil); nós esqueceríamos, além disso, de vários outros exemplos de tentativas de fazer com que conhecimentos técnicos sobre o planejamento e a gestão das cidades sejam socializados e postos a serviço de uma agenda comprometida com a justiça social – como ilustra, no Brasil, especialmente nos anos 80, a mobilização em torno da reforma urbana, em cujo âmbito as preocupações com o problema habitacional sempre ocuparam lugar de destaque.

Quanto ao equívoco teórico-estratégico, ele reside no seguinte: nós subestimaríamos as possibilidades de pontes entre o estratégico e o tático, o estrutural e o conjuntural, o longo prazo e o curto e o médio prazo. O tático, o curto prazo e o conjuntural não precisam, sempre, servir apenas para estabilizar o status quo – lembremos da possibilidade de acúmulo de forças e experiências, dos efeitos multiplicadores, da memória das lutas, da construção lenta de uma experiência de organização e de uma consciência de direitos que ajudem a preparar para um salto de qualidade.

Será, então, que a “moral da história” é que o aparelho de Estado deve ser o depositário de todas as esperanças, bastando torcer por uma conjuntura política favorável? Decididamente, não. De um ponto de vista “político-pedagógico”, mais importante que isso são aquelas situações, muito mais radicais, em que a sociedade civil conduz, ela própria, experiências de planejamento e gestão urbanos alternativas: planejamento, por exemplo, da ocupação de prédios e terrenos ociosos (“abandonados”, mantidos como reserva de valor etc.), considerando a localização “estratégica” e a situação fundiária desses imóveis, problemas “logísticos” (abastecimento etc.) e outras questões. (Apenas para se ter uma idéia, e a título de contraste com o dado anteriormente fornecido sobre o tamanho do déficit habitacional: o número de domicílios urbanos vagos no Brasil era, em 2000, segundo o IBGE, de 4,6 milhões).

Não se trata meramente de “autoconstrução” – ou seja, do expediente cotidianamente usado pela população pobre brasileira há mais de um século, nas favelas e periferias, para enfrentar o problema da moradia. A referência, aqui, não é a um processo de ocupação de terrenos ou compra de lotes e construção de moradias precárias que, ao não ser conscientemente voltado para exercer uma pressão sobre o Estado e um protesto, não desafia diretamente o sistema. A referência, aqui, é à possibilidade de organizações de movimentos sociais atuarem, elas próprias, como agentes de planejamento e gestão, desse modo (re)colocando a questão da moradia (e da reforma urbana) na ordem do dia, com grande visibilidade política.

Aliás, essa possibilidade, em parte, já é uma realidade. Uma organização como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ou outra organização do movimento dos sem-teto, planejando ocupações (explorando brechas da lei para afrontar a propriedade privada), planejando e gerindo a produção de um espaço alternativo – refuncionalizando um terreno ou um prédio –, definindo estratégias de territorialização, estabelecendo redes de apoio mútuo e buscando auxílio logístico e político em várias escalas, está, efetivamente, elaborando um (contra)planejamento, um planejamento insurgente na prática, e desenvolvendo experiências de gestão alternativa (de um acampamento, de um prédio abandonado e refuncionalizado etc.). É óbvio que, nessas situações, não estamos falando de “planejamento urbano” em sentido usual – coisas como o estabelecimento de um zoneamento ou a aplicação formal de um tributo, que são prerrogativas legais do Estado. Entretanto, o exemplo dado não corresponde a uma reação puramente “espontânea”; trata-se de algo organizado, programática e estrategicamente lastreado, que possui rebatimentos e relevância do ponto de vista territorial, para além da mera denúncia ou da simples crítica discursiva do status quo.

A despeito de suas muitas dificuldades, os movimentos sociais não podem se furtar a elaborar as suas próprias estratégias e tentar pô-las em prática apesar do Estado e contra o Estado – e, quando valer a pena, em parceria com o Estado, mas em situação de vigilância contra quaisquer tentativas de cooptação. A ação direta das organizações desse movimento (e de outros) pode e deve, muitas vezes, ser conjugada com a luta institucional – por exemplo, aproveitando a eventual existência de instâncias e canais participativos, desde que esses canais e instâncias sejam acionados por uma sociedade civil vigilante e mobilizada e explorados eficiente e inteligentemente por movimentos sociais. As perguntas que, no meu entendimento, fazem esse tipo de debate tornar-se realmente produtivo, do ângulo da colheita de subsídios para a ação transformadora, são as seguintes:

  • Os avanços conjunturais que podem, dependendo das circunstâncias, ser observados em matéria de instâncias participativas e avanços legais ou institucionais, têm um potencial de acúmulo? (Se não tiverem, sua relevância pode ser menor do que alguns gostariam de imaginar, e podem, no limite, contribuir antes para cooptar que para colaborar para novos avanços no futuro.)

  • Esses avanços táticos estão conectados ou têm potencial para serem conectados a um “horizonte utópico”? (Se não for o caso, os meios podem virar fins, e os fins “findarem”, em meio a uma cooptação dos movimentos sociais e a uma “domesticação” das forças políticas progressistas.)

  • Os canais institucionais servem para organizar a sociedade e expandir a consciência de direitos, ou, pela sua dinâmica, servem apenas para cooptar e legitimar o status quo heterônomo?

  • Como os avanços legais foram produzidos? Houve mobilizações e pressões populares que empurraram nessa direção, ou foi uma iniciativa de elites pretensamente esclarecidas? (Deve-se desconfiar de “avanços” que não sejam fruto de pressão popular. Podem, às vezes, até ser avanços de fato, tomados isoladamente; entretanto, se não foram fruto de demanda e pressão das bases, qual a esperança de que haja, mais tarde, mobilização e pressão popular para que sejam efetivamente implementados e aprimorados? Sem uma pressão decidida, constante e organizada dos movimentos sociais, leis formais, mesmo quando razoavelmente progressistas, viram letra morta, assim como canais participativos oficiais podem tornar-se meros instrumentos de cooptação.)

  • Quais são, afinal, as “brechas da lei”? E como explorá-las?

  • Como os próprios movimentos sociais pensam e planejam organizações espaciais alternativas, e como eles gerem os seus espaços?

Note-se que as condições de êxito mencionadas ao expor esses pontos (garantir e aproveitar um “potencial de acúmulo”, explorar eventuais “brechas legais”, não deixar-se cooptar etc. etc.) têm a ver, acima de tudo, com a própria dinâmica da sociedade civil, em particular dos movimentos sociais. Isso pode fazer toda a diferença entre uma conjuntura favorável e outra desfavorável, entre uma abertura grande ou pequena dos governos locais para a “participação popular”, entre a cooptação e a resistência por parte dos ativismos, e por aí vai.

Mesmo quando certos canais participativos formais (instituídos pelo Estado) e determinados marcos legais merecerem ser, por seu potencial, prudente e criticamente valorizados (não fazê-lo seria puro e simples obscurantismo, embora fantasiado de radicalismo esclarecido), não é no Estado que devem ser buscadas as respostas ou depositadas as esperanças mais importantes, mas nos movimentos sociais. Acresce que, no tocante à questão habitacional, instâncias participativas locais – como os poucos casos realmente consistentes de orçamento participativo, a exemplo do de Porto Alegre (pelo menos até o começo da década) – terão sempre uma capacidade muito limitada para enfrentar o problema. No caso da questão habitacional, evidentemente que é fundamental que se criem as condições político-econômicas para que o Estado brasileiro aumente seus investimentos no setor (o que, no âmbito do Plano de Aceleração do Crescimento/PAC do governo federal, ainda é basicamente uma promessa, e ainda por cima bastante insuficiente). Além disso, o movimento dos sem-teto e suas organizações são, ainda, débeis no Brasil, e há vários problemas a serem superados. Não obstante, os movimentos sociais deverão, não somente exigindo investimentos e outras ações por parte do Estado, mas também desenvolvendo, eles próprios, soluções e alternativas  –  de curto, médio e longo prazo  –, buscar exercer um papel verdadeiramente protagônico.

 

Marcelo Lopes de Souza é professor da UFRJ, onde coordena o Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD), e pesquisador do CNPq. É autor, entre outros livros, de Mudar a cidade e A prisão e a ágora, ambos publicados pela editora Bertrand Brasil. E-mail: mlopesdesouza@terra.com.br