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Reportagem
A demonização da habitação informal
Por André Gardini
10/06/2007

Os dados sobre a ilegalidade da ocupação urbana no Brasil não são precisos. Os mitos que envolvem as questões da informalidade procuram explicar a ocupação de terras, públicas ou privadas, como uma ação das classes sociais economicamente desfavorecidas quando, no entanto, irregularidade não é privilégio de pobre. Há, no Brasil, alguns casos onde é possível identificar verdadeiras cidades "formais" construídas ilegalmente, sob a forma de condomínios fechados.

Ao mesmo tempo, existem as cidades "informais" construídas ilegalmente. Nesse caso, a narrativa tradicional estigmatiza os habitantes dessas áreas. Mas, uma análise rigorosa sobre o tema, mostra que há muita complexidade na informalidade. O cotidiano das pessoas que habitam as cidades informais mostra uma riqueza nessas áreas que vai muito além daquilo que vemos como paisagem. Ou seja, há uma rede social muito forte, guiada por laços de solidariedade e regulada por um diálogo próprio com a lei.

Nas grandes capitais como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, estima-se que entre 20 e 22% da população viva em favelas. Em Campinas, cidade núcleo da Região Metropolitana de mesmo nome, o percentual é próximo ao das grandes capitais. Segundo Betânia Alfonsin, professora da área de Direito Público da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Puc-RS), que teve seu trabalho citado no artigo de Monteiro e Holz, não seria exagero afirmar que cerca de 30 a 50% das famílias em territórios urbanos brasileiros, em média, moram irregularmente. No Recife, esse índice se aproxima de 70% dos domicílios urbanos.

O começo deste novo século, porém, parece contar uma nova história da política urbanística brasileira. O ano de 2001 é considerado um marco para as regularizações. O Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/01 e a Medida Provisória nº 2.220/01 – estabeleceram instrumentos jurídicos e urbanísticos fundamentais para reduzir o quadro de exclusão sócio-territorial crescente no país. Posteriormente, em 2003, por meio do Ministério das Cidades, formulou-se pela primeira vez uma Política Nacional de Regularização Fundiária de áreas urbanas. Essa política se concretizou com o programa Papel Passado, coordenado pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos (SNPU). De acordo com o site da SNPU, o objetivo do programa é acabar com os assentamentos informais. Até o início de 2006, o conjunto de ações de apoio direto desenvolvido pelo Papel Passado permitiu iniciar o processo de regularização fundiária em 644 assentamentos, localizados em 147 municípios.

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Sedes dos municípios apoiados pelo programa Papel Passado
Fonte: MCidades

A contribuição jurídica para a ilegalidade

Parte do crescimento da informalidade no Brasil pode ser contada pelo êxodo rural e pelo planejamento urbano equivocado, ou pela ausência dele. No entanto, a informalidade tem uma relação muito próxima com a formalidade. Para Betânia Alfonsin, seria muito simplista explicar a informalidade apenas pelos fatores econômicos, sociais ou históricos. “A informalidade tem razões jurídicas e o direito contribuiu muito para o seu surgimento”, afirma.

A aprovação da Medida Provisória 2.220 de 2001 regulamentou a concessão de uso especial para fins de moradia para os ocupantes em terras públicas da União. No entanto, com essa medida, surgia um novo desafio, pois essa MP não incluía as áreas pertencentes a Marinha, onde atualmente está a maior parte das ocupações informais. Essa regulamentação só foi possível no início de 2007 com a aprovação da Medida Provisória 335 (a antiga 292, que expirou antes de ser votada), voltada para a regularização fundiária em terras da União no país. Segundo o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a MP 335 veio preencher a lacuna na legislação brasileira para permitir que a população de baixa renda tenha acesso à terra e ao crédito, só possíveis com a regularização fundiária.

De acordo com Alfonsin, dois pontos importantes ajudam a explicar o surgimento da informalidade urbana. “Por um lado, o direito privado foi, por muito tempo, um direito absoluto, exclusivo e perpétuo. Permitia que se acumulasse um bem que não se reproduz, como é a terra urbana. Acumular terra vazia que poderia ser cidade e esperar ela se valorizar às custas do investimento público sem qualquer sanção do poder público”. A outra questão é a do direito público com uma legislação urbanística muito elitista. “Por exemplo, na Lei Federal de parcelamento do solo, existe um padrão mínimo para parcelamento, onde o tamanho mínimo do lote é de 125 m2, mas não existe limitação com respeito ao lote máximo, o que contribui para surgir no Brasil, latifúndios do tamanho de países europeus”.

A ilegalidade não é privilégio dos pobres

“Atualmente as taxas de crescimento da ilegalidade estão aumentando. São mais altas do que as taxas de urbanização, mas são também mais altas do que as taxas de pobreza. Quer dizer que a pobreza vai diminuindo, mas a informalidade vai aumentando. Isso mostra que explicar a informalidade fazendo menção à pobreza é correto até certo ponto, a pobreza não explica tudo”, afirma Edésio Fernandes, especialista em urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

De acordo com Fernandes, no Brasil, há ocupações em áreas privadas e em áreas públicas, formadas por pessoas de classes sociais altas, que se constituem em verdadeiras cidades formais, porém construídas ilegalmente. “Tem uma série de ocupações, feitas em terras públicas por pessoas da classe média e por ricos. Têm casas em Maceió de juízes e desembargadores em terras públicas”, revela e continua, “Brasília é um exemplo. Os chamados condomínios de Brasília, que de condomínio não tem nada, são loteamentos irregulares de terra pública da União”. Segundo ele, até hoje não existe uma regulamentação jurídica para condomínios fechados. “Tecnicamente, os condomínios pelo Brasil afora são ilegais. Não se pode fechar o sistema viário, ele é de uso comum do povo. Enquanto não houver uma regulamentação adequada desse novo produto do mercado imobiliário, permanece a ilegalidade”. Fernandes alerta ainda que não é possível regularizar as situações de habitação informal dos ricos com os mesmos critérios que se aplicariam para as favelas. “Nem do ponto de vista jurídico, muito menos utilizando critérios urbanísticos. São desafios ainda não enfrentados”.

Fernandes destaca que existe uma diferença básica entre a ocupação dos ricos e a ocupação dos pobres. Para ele, as cidades informais construídas ilegalmente são marcadas pela criação de normas próprias, que são cada vez mais sofisticadas, que regem as relações civis e as relações comerciais. “As pessoas criam suas regras, mas não de maneira gratuita. Há um diálogo com a lei. Não é um processo irregular. A informalidade é altamente regulada”. Essa normatização nas áreas de ocupação informal, segundo Fernandes, revela quem pode comprar, quem pode vender, quem pode construir um segundo ou um terceiro piso, quem pode pisar na terra do barraco de um vizinho para chegar ao outro lado. “É uma adaptação jurídica para as realidades e as necessidades locais”, afirma. Betânia Alfonsin, concorda e, citando um estudo do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, conta que ele escreveu sobre o “direito de laje” que existe nas favelas do Rio de Janeiro. “Santos estudou essas relações como um exemplo de pluralismo jurídico. Ele não está no código civil, legalmente não existe, mas dentro das favelas ele existe. 'Eu vendo a laje do meu barraco e você faz sua casa em cima da minha'”.

Cidades produzidas informalmente são muito caras, pois são cidades fragmentadas. Essa é uma outra questão que precisa ser mais bem explicada. “Para prestar serviços públicos, colocar infra-estrutura, implantar programas de regularização do solo e geração de renda, em média, se gasta dez vezes mais do que se gastaria com um programa preventivo de produção de habitação de interesse social”, acrescenta Fernandes.

Urbanização fragmentada

Rocinha no Rio de Janeiro, Parque Oziel e Monte Cristo em Campinas, Brasília Teimosa no Recife, são exemplos da história da evolução das ocupações no meio urbano no Brasil. O capital, agente responsável por melhorias nas condições urbanísticas, é seletivo e perverso. Seu método é claro e conhecido: ele só olha para aquelas áreas onde o lucro será garantido. Nesse processo, certas regiões são eleitas como “atraentes” aos investimentos interno e externo. Já outras, não têm a mesma sorte e permanecem esquecidas (ou à deriva como no caso das palafitas dos estados do norte e, também, em Recife). Tal processo contribui para o adensamento de áreas já urbanizadas.

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O destaque na imagem mostra o Parque Oziel e o Monte Cristo, áreas de ocupação na região sul de Campinas, entre a rodovia Santos Dumont (a esquerda) e Anhanguera (acima).
Fonte: Google Earth

A cidade informal segue estigmatizada, envolta em mitos, sem um conjunto de políticas urbanas necessárias para mudar o atual quadro e fazer valer a cidadania territorial de seus habitantes, negando, assim, a possibilidade de torná-los verdadeiros cidadãos brasileiros. A ocupação ilegal de terras no Brasil conta um capítulo da história da formação territorial desse país. “Mas, ainda está por vir o capítulo da história jurídica brasileira que fará sair do papel o instrumento, previsto no Estatuto da Cidade, da função social da habitação”, acredita Betânia Alfonsin.