REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
A cidade e os livros - Carlos Vogt
Reportagens
Déficit habitacional exige medidas urgentes
Luiza Bragion
A complexa medida da qualidade da habitação
Rodrigo Cunha
A demonização da habitação informal
André Gardini
Mercado imobiliário vive bom momento
Patrícia Mariuzzo
Ocupar as políticas e acelerar a democracia
Susana Dias
Morar na rua é trabalhar e resistir à repressão
Carolina Cantarino
Artigos
Habitação: eu planejo, tu planejas... NÓS planejamos
Marcelo Lopes de Souza
A rua e a cidade
Doralice Sátyro Maia
A habitação nas cidades inacabadas
Luiz César de Queiroz Ribeiro
Habitar o não-lugar
Cristiane Dias
Squats, locais de resistência
Florence Bouillon
O fim do sonho norte-americano
Sudhir Alladi Venkatesh
Resenha
Em trânsito
Por Sabine Righetti
Entrevista
Mike Davis
Entrevistado por Tradução: Marta Kanashiro
Poema
Forma e substância
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
O fim do sonho norte-americano
Por Sudhir Alladi Venkatesh
10/06/2007

O estado de bem-estar social norte-americano teve sua base amputada. O progressismo, nascido logo após a I Guerra Mundial, criara a renda mínima, o auxílio à habitação e à alimentação para famílias carentes e um sistema de proteção social para aposentados e deficientes. Durante os últimos trinta anos, muitas dessas verbas foram eliminadas ou substancialmente reduzidas. O auxílio social agora só é concedido por um prazo de cinco anos; os bônus de alimentação já não permitem comprar tanto quanto antes; a assistência judiciária foi decapitada.

Nos últimos tempos, a “habitação popular” – expressão pela qual se subentende os imóveis administrados pelas autoridades públicas e os auxílios-moradia – vem passando por uma profunda reviravolta. Iniciado no governo de Ronald Reagan e concluído sob as presidências de William Clinton e George W. Bush, este remanejamento da política pública de auxílio à moradia suscita poucas reações políticas. Por todo o país, as cidades procedem à demolição de amplos conjuntos de torres e imóveis habitacionais que antes abrigavam centenas milhares de famílias pobres. A quase totalidade destes terrenos são vendidos, em seguida, a incorporadoras privadas que ali constroem moradias oferecidas a preços de mercado aos norte-americanos das camadas média e alta (subvencionadas, portanto, pelos contribuintes).

“Cidades de chocolate, subúrbios de baunilha”

Para justificar esta política, invoca-se a necessidade de limpar os bairros insalubres, onde famílias carentes vivem isoladas do resto da cidade. Demolindo os conjuntos habitacionais populares, obriga-se os pobres a mudarem para bairros novos, onde as pessoas “trabalham e respeitam a lei”. Um imperativo acompanha esse moralismo: devido à desindustrialização, as cidades norte-americanas perderam uma grande fonte de renda. À procura de recursos, reabilitam os antigos bairros pobres para famílias ricas que, teoricamente, trarão dinheiro para a cidade, em vez de custos. Mas para onde vão os pobres que foram expulsos?

O programa federal de habitação é executado pelo Departamento de Habitação e Urbanismo (Department of Housing and Urban Development, HUD), que os presidentes Reagan, Clinton e Bush tentaram desmantelar, reduzindo o pessoal, interrompendo a construção de novas moradias populares e diminuindo o auxílio às pessoas. Durante o século XX, o desenvolvimento urbano norte-americano seguiu, principalmente, um esquema de separação clássica: os pobres moravam na cidade intra muros, isto é, nos bairros vizinhos do centro da cidade, enquanto as classes média e alta preferiam os subúrbios. Estas trabalhavam e se distraíam nas cidades graças às redes de transporte implantadas com recursos públicos. Quase todos estes “suburbanos” são brancos. Vítimas de discriminação em matéria de auxílio financeiro e empréstimos, os negros e latinos não podem sair do centro1 . É assim que se explica a expressão “cidades de chocolate, subúrbios de baunilha”.

A teoria do “vidro quebrado”

Nos últimos dez anos, essa situação mudou de modo espetacular. Como as cidades já não podem viver da indústria, as prefeituras privilegiam a “economia da informação” e procuram atrair os “colarinhos brancos”. Os prefeitos de Nova York, Chicago, Baltimore, Cleveland e São Francisco esboçam uma nova filosofia urbana: transformar os amplos espaços antes ocupados pelas fábricas em zonas residenciais dotadas de parques, bares, lofts2 e condomínios, destinadas aos novos ricos. Programa-se, portanto, a conversão dos cortiços e bairros devastados, onde moravam os negros e latinos pobres, em bairros aburguesados que acolherão os novos salvadores, brancos, da cidade.

As primeiras salvas dessa guerra de classes e de raças são dadas com a cobertura de estratégias de “lei e ordem”. Em todo o país, as cidades recorreram a decretos “anti-gangue”, a medidas “anti-vagabundagem” e a toque de recolher. É preciso impedir a “classe criminosa” – os jovens pertencentes às minorias – de ficar nas esquinas, nos parques e nos centros comerciais. Em nome da teoria do “vidro quebrado” – segundo a qual se reduz a grande violência criminal reprimindo a pequena delinqüência e os comportamentos incivis, que seriam os sinais anunciadores da desordem social, os prefeitos de Nova York e Chicago, Rudolph Giuliani e Richard M. Daley, fecharam abrigos para os sem-teto e albergues para os pobres, eliminaram lojas de vídeo para “adultos” e cinemas pornográficos, reprimiram moradores de rua e prostitutas e pediram penas severas contra vândalos e ladrões. Em todo o país, as autoridades municipais aplaudiram a “filosofia de Bratton”, nome do ex-chefe de polícia de Nova York, autor desta política, que oferece hoje serviços de consultoria a seus colegas da África do Sul, da Venezuela e da Europa3.

Trabalhar para pagar aluguel

Algumas famílias negras e latinas pertencem à nova burguesia que se instala nos antigos conjuntos populares reabilitados, mas ela é majoritariamente composta por brancos, mais ricos e que apresentam melhores garantias financeiras. Pobres ou não, os negros e latinos têm quase sempre de continuar morando onde a pobreza é grande e os serviços municipais medíocres. Os negros norte-americanos vivem em bairros onde a renda média representa de 50 a 55% da renda dos brancos. A diferença até se aprofundou a partir de 1990. A situação nada tem de melhor no caso dos latinos4 .

As minorias que conseguem morar num bairro “bom” nem por isso escapam dos problemas de seus colegas mais pobres no que se refere à paridade da alocação dos recursos públicos – o aluno negro ou latino médio, por exemplo, freqüenta uma escola onde mais de 65% dos alunos são pobres, enquanto essa taxa é de apenas 31% quando se trata de um aluno branco.

Esta renovação urbana implica uma escassez de habitações baratas para alugar. Afeta as famílias de trabalhadores de todas as etnias. Segundo um relatório do HUD, “uma família contando com um trabalhador em tempo integral que ganhe um salário mínimo, não pode se permitir alugar um apartamento de dois quartos pelo preço imposto em qualquer lugar dos Estados Unidos5 ”. Quase 20% das famílias destinam a metade de sua renda mensal ao aluguel, quando essa despesa não deveria representar mais de um terço. O problema decorre, em parte, do setor imobiliário privado.

Os bairros do “primeiro círculo”

Na década de 90, por exemplo, 1,4 milhão de apartamentos em pequenos prédios – que abrigavam de duas a quatro famílias, tradicionalmente operárias – foram destruídos ou reabilitados para famílias mais ricas. Muitas famílias operárias figuram nas listas de espera, de dois anos, por um auxílio-moradia – mais de 40 mil em Chicago e em Nova York. O Estado também contribui para reduzir a oferta de moradias baratas para alugar. Não somente procede à demolição de milhares de habitações, como destina os recursos públicos à “reabilitação” de moradias. Todo mês, por exemplo, 2 mil apartamentos deste tipo são “postos no mercado” pelas incorporadoras, com um aluguel acrescido de 45%, em média.

Para onde vão aqueles que o “aburguesamento” e as mudanças econômicas expulsam de seus lares? Alguns vão para outros bairros do centro, onde reinam a pobreza e a marginalidade, e onde as moradias baratas para alugar estão acabando. Mas outros vão para os subúrbios, que antes abrigavam brancos e algumas minorias privilegiadas. Agora, vêm sendo povoados por minorias operárias e pobres: a presença dos negros ali aumentou em quase 40% e a dos latinos, em 72% desde 19906 .

Mas os negros e os latinos que deixam as cidades não vão para os bairros nobres dos subúrbios. Instalam-se nos bairros do “primeiro círculo”, amplas áreas que abrigam lares pobres e operários. Os brancos endinheirados dos subúrbios ficam entre eles, enquanto os negros e latinos vivem juntos, e ao lado dos novos imigrantes asiáticos. Isolados, num local em que falta o dinheiro e a moradia está caindo aos pedaços, não têm acesso aos bairros onde as escolas, a polícia e os serviços sociais recebem maior apoio financeiro.

Administrações incompetentes e corruptas

Brancos e ricos no centro, minorias e pobres na periferia! Uma das principais causas deste fenômeno é a demolição das antigas concentrações de habitações populares. No começo da década de 90, os dirigentes do HUD obrigaram os organismos locais a constatar o estado de “séria degradação” em que se encontravam as moradias baratas que eles administravam. Explicou-se que a habitação popular era em parte responsável pela miséria das minorias norte-americanas, que as famílias que vivem nas habitações populares tinham perdido a ética do trabalho e se acomodado numa cultura de crime e dependência.

Washington tinha motivos para se preocupar. Em 1990, sete das zonas mais pobres do país eram conjuntos habitacionais populares, três dos quais na cidade de Chicago. Freqüentemente, os bairros onde ficam as habitações populares, degradados, tornaram-se o centro de atividades de bandos de delinqüentes. Quase sempre eram habitados por negros. Mas foi um erro responsabilizá-los pela segregação, pela criminalidade e pela pobreza reinantes. Na década de 80, o presidente Reagan reduziu em 87% o orçamento para a habitação popular, o que não permitiu continuar com a manutenção. A presença policial era insignificante (em Chicago, o chefe de polícia declarou que os conjuntos populares eram muito perigosos para que a polícia se aventurasse a ir lá) e as administrações locais responsáveis pela habitação popular, incompetentes e corruptas.

Um tipo inédito de pobreza urbana

Em 1992, uma lei (“Hope VI”) obrigou todos os serviços locais responsáveis pela habitação popular a determinar se ficava mais barato demolir os prédios e dar auxílio-moradia às famílias para tentarem conseguir pelo mercado privado, ou restaurar e cuidar dos prédios. A lei era suficientemente vaga para permitir que as incorporadoras e aos responsáveis pela habitação privada procedessem à destruição rápida das habitações populares sem se preocuparem demais com a segurança ou o bem-estar das famílias pobres que ali viviam. A legislação não especificava que medidas deveriam ser tomadas para que as famílias fossem realojadas rapidamente. Anunciava apenas que era preciso derrubar os prédios e incentivar as pessoas a “suprirem suas necessidades”. Ou seja, os serviços de habitação popular, que já não eram capazes de consertar um banheiro ou impedir os ratos de infestar os prédios, deveriam, a partir de então, desalojar fisicamente os pobres do gueto e fazer deles, na mesma hora, cidadãos independentes e responsáveis.

Os 4,5 bilhões de dólares de verbas federais investidos até aqui serviram para demolir mais de 50 mil habitações populares. O Estado admite que o programa foi mais eficaz para derrubar prédios do que para construir novos, para realojar os pobres. Em Chicago, 80% das famílias que desocupam as habitações populares vão para zonas deserdadas, habitadas por minorias vítimas de segregação residencial, para o centro das cidades e para a periferia delas7 . De 10 a 12% ficam sem abrigo8 . Esta política contribui para a formação de um tipo inédito de pobreza urbana. Guetos verticais substituíram os guetos horizontais de antigamente. Quanto às famílias pobres que moravam dentro das cidades, foram empurradas para a periferia.

(Trad.: Maria Elisabeth de Almeida)

1 - Ler, de Serge Halimi, “L’université de Chicago, un petit coin de paradis bien protégé” e, de Douglas Massey, “Regards sur l’apartheid américain”, Le Monde diplomatique, abril de 1994 e fevereiro de 1995, respectivamente.
2 - N.T.: Antigos galpões de fábricas transformados em moradias.
3 - Cf. Loïc Wacquant, “Ce vent punitif qui vient d’Amérique” e “Sur quelques contes sécuritaires venus d’Amérique”, Le Monde diplomatique, abril de 1999 e maio de 2002, respectivamente. A citada “filosofia de Bratton” também é conhecida, na mídia, por “tolerância zero”.
4 - Ler “Separate and Unequal: Neighborhood Gap for Blacks and Hispanics in Metropolitan Amarica,” publicado pelo Lewis Mumford Center for Comparative Urban and Regional Research, Universidade de Albany, 2002.
5 - “Who Needs Affordable Housing?”, Housing and Urban Development, Washington, D.C., 2000.
6 - Ler, de John R. Logan, The New Ethnic Enclaves in America’s Suburbs, ed. Lewis Mumford Center for Comparative and Urban Regional Research, 2002.
7 - Ler, de Paul Fisher, Section 8 and the Public Housing Revolution: Where Will Families Go? , 1999.
8 - Ler, de Sudhir Alladi Venkatesh, Robert Taylor Relocation Study, 2001.

Texto publicado originalmente em http://diplo.uol.com.br/2003-11,a794