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Artigo
Ciência e determinismo
Por Daniel Durante Pereira Alves
10/07/2007

A mesa de meu escritório tem 80 centímetros de altura. Isto é um fato real. Vamos agora inventar uma estória usando esse fato real. Imaginemos que ao esticar a mão para apanhar uma borracha, eu esbarro no grampeador, empurrando-o para fora da mesa. Como estamos imaginando, nossa estória pode continuar de muitas e interessantes maneiras: o grampeador pode transformar-se em um pára-quedas e cair suavemente, ou pode ficar flutuando à minha frente, ou ainda pode enfurecer-se com meu descuido e atacar-me com seus grampos afiados. Ele pode até cair no chão, demorando 0,4 segundos no percurso. Se você estivesse em um show de perguntas e respostas da TV e fosse perguntado sobre qual dessas alternativas ocorreria na realidade, qual você escolheria?

Eu sei, antes da ocorrência do fato, que tanto o grampeador, quanto uma moeda ou qualquer coisa não muito leve que cair de minha mesa de 80 cm de altura levará 0,4 segundos para chegar ao solo. Nada cairá em menos tempo e apenas folhas de papel ou coisas grandes e leves cairão em mais tempo. Uma velha equação da cinemática nos ajuda a separar a ficção da realidade, indicando qual é a única continuação verossímil para nossa estória. Qualquer coisa não muito leve que caia de uma altura h não muito grande em metros vai demorar figura1 segundos para chegar ao solo. As outras alternativas de nossa estória podem até render boas bilheterias no cinema, mas não correspondem à realidade. Não há como mudarmos isso. O tempo de queda dos objetos não depende de nossa vontade. Se por acaso eu não puder mais conviver com a idéia de que tudo que cai de minha mesa demora 0,4 segundos para atingir o solo, tenho apenas duas opções: ou mudo a altura de minha mesa, ou instalo meu escritório na Lua, onde as coisas demoram figura2 segundos para cairem de uma altura de h metros. Os objetos levariam 0,98 segundos para caírem de minha mesa, com a monótona desvantagem de que as folhas de papel e demais coisas grandes e leves também levariam os mesmos 0,98 segundos para a cair.

Há muitos outros fatos que podemos conhecer antecipadamente com essa segurança e precisão. Sei, por exemplo, que no dia 1o de agosto de 2008 haverá um eclipse total do Sol, mas não será visível do Brasil. O próximo eclipse total em nossas terras só ocorrerá em 2045. Esse tipo de conhecimento seguro, preciso, que nos torna capazes de separar a ficção da realidade e prever o futuro é, de acordo com o filósofo Karl Popper, o grande legado da ciência natural e a principal característica que define e distingue o conhecimento científico.

Mas se a ciência nos torna capazes de prever o futuro, então o futuro já está determinado hoje, e tal determinação nos retira o poder de atuar, interferir e decidir sobre os fatos. Se sei hoje que haverá um eclipse total do Sol em 2045, então este evento futuro já está determinado hoje e não há nada que possamos fazer quanto a isso. Se a previsão de uma certa cartomante de que eu jamais me tornarei milionário for verdadeira, então eu não tenho poder algum para mudar essa situação. Faça o que eu fizer. O determinismo, segundo essa abordagem, seria um subproduto inevitável da ciência, e a nossa liberdade de atuação estaria cada vez mais limitada, quanto mais a ciência avançasse. A descrição científica de um fenômeno representaria uma sentença de sua inevitabilidade e de nossa impossibilidade de modificar a situação descrita.

Mas um momento! Há dois problemas com essa linha de raciocínio que vincula a ciência ao determinismo paralisante. O primeiro deles, mais simples, já tem sido bastante discutido, desde que o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, ressaltou que o conhecimento das leis gerais e universais que regem os fenômenos naturais, ao invés de retirar-nos poder de atuação, ao contrário, constitui-se em instrumento de poder, controle e dominação sobre a natureza. A maneira mais eficiente de eu evitar que os objetos que por ventura caiam de minha mesa demorem esses irritantes 0,4 segundos para atingir o solo é conhecer a equação figura3 e assegurar-me de que a altura da mesa não seja de 80 centímetros. Para controlarmos e dominarmos a natureza, não devemos desafiar suas leis, mas segui-las com inteligência. A espantosa capacidade de ingerência nos fenômenos naturais que a tecnologia dos nossos dias nos proporciona é uma prova irrefutável do sucesso dessa estratégia. O telefone celular, a bomba atômica, o coquetel anti-Aids, a soja transgênica, o avião e todos os produtos tecnológicos com os quais atuamos, modificamos e controlamos diversos aspectos da natureza não desafiam suas leis. Ao contrário, as seguem. E sua construção só foi possível porque ampliamos muito o conhecimento das inexoráveis leis da natureza.

A informação de uma cartomante nos paralisa, porque ela nos dá acesso apenas aos resultados e não às suas regras de previsão. A cartomante ou não nos diz o que determina nosso futuro ou, se diz, atribui essa determinação a elementos completamente fora de nosso alcance, tais como uma certa carta de baralho, uma predisposição divina, ou uma relação mística entre configurações astronômicas e padrões de comportamento. As previsões da ciência, ao contrário, não são paralisantes porque elas explicitam em detalhes as regras de determinação do futuro e estas regras envolvem fatores naturais manipuláveis. Se queremos modificar o tempo de queda de determinado objeto, mudemos a sua altura. É claro que nem todos os elementos presentes nas leis de previsão científicas são manipuláveis. Não há muito que possamos fazer para evitar o eclipse total do Sol em 2045. Mas os elementos manipuláveis presentes nas informações científicas são suficientes para nos dar essa espantosa capacidade de controlar e modificar a natureza, distanciando-nos bastante da aparente paralisia determinista.

O outro problema ligado à vinculação da ciência ao determinismo é um pouco mais sutil. O aspecto sistemático e organizado do conhecimento científico costuma exigir das teorias mais do que meras regras de descrições dos fenômenos. A equação cinemática figura4 descreve a queda livre, apontando como, sob determinadas circunstâncias, o tempo de queda dos objetos varia com relação a altura da queda. Mas muitas vezes os cientistas vão além da descrição sobre o “como” dos fenômenos e perguntam: por quê? A teoria descritiva do movimento dada pela cinemática não é capaz de explicar este porquê. Quem explica porque, na queda livre, o tempo varia com relação a altura como descrito na equação acima é a mecânica que, para explicar a cinemática, postula duas novas entidades: massa e força.

A mecânica não se limita a descrever de modo preciso os fenômenos que observamos. Ela atribui causas a esses fenômenos e trata de coisas que não podemos observar. Você já “viu” uma força? Eu nunca “vi”. Todas as informações empíricas que temos sobre as forças são indiretas. São, de fato, conseqüência das forças e não as forças propriamente ditas. Sei que quando pulo, volto ao chão. Sinto o movimento, a aceleração inicial, me sinto quase parado quando a subida termina e a queda se inicia, sinto o impacto da queda com o solo,... mas a força de gravidade eu não sinto nem vejo. A força de gravidade é algo que explica esses fenômenos, mas esses fenômenos perceptivos não são a força de gravidade.

Talvez um exemplo da astronomia ajude a esclarecer. Disse antes que em 2045 haverá um eclipse do Sol. Pois bem, esta previsão é baseada em uma concepção astronômica que descreve os movimentos da Terra, do Sol e da Lua de acordo com a teoria heliocêntrica de Copérnico. O Sol é o centro do sistema solar, é orbitado pela Terra que por sua vez é orbitada pela Lua. Quando a Lua fica diretamente no caminho entre o Sol e a Terra, esta faz uma sombra na Terra, durante o dia, e esta sombra representa o eclipse total do Sol. Conseguimos prever o eclipse do Sol de 2045 porque Kepler e outros astrônomos aperfeiçoaram as teorias de Copérnico e forneceram dados precisos sobre posições, velocidades e percurso das órbitas da Lua, da Terra e demais planetas.

Mas você já deve ter ouvido falar na antiga astronomia geocêntrica de Ptolomeu, que descrevia o cosmos de uma maneira radicalmente diferente. A Terra era estacionária e o centro do universo. Sol, Lua, demais planetas e estrelas orbitavam a Terra. Para Ptolomeu havia várias esferas celestes, uma para a Lua, outra para o Sol, uma para as estrelas fixas e para cada planeta. Essas esferas ligavam-se à Terra por finas engrenagens. Todos os movimentos eram descritos como complicadas composições de movimentos circulares. Pois bem, acontece que com essa cosmologia quase mitológica para os nossos padrões contemporâneos, também conseguimos prever o eclipse do Sol que ocorrerá em 2045! Ptolomeu, em seu famoso livro Almagesto, apresenta dados e descrições detalhadas desse sistema antigo de astronomia. E o sistema funciona para calcularmos a posição aparente dos planetas, da Lua, prever eclipses da Lua e do Sol e para praticamente todas as informações astronômicas que conseguimos coletar com instrumentos simples. Ora, como é possível que uma teoria tão equivocada, segundo os nossos parâmetros contemporâneos tenha tamanho sucesso preditivo? Como podem duas teorias tão radicalmente diferentes (a ptolomaica e a copernicana) concordarem na descrição aparente de tantos fenômenos?

Para responder a essas perguntas precisamos perceber que as teorias astronômicas, tanto a de Ptolomeu, quanto a Copérnico, não são meramente descritivas. São também explicativas. Ambas vão além dos fenômenos que podemos observar e perceber e incluem elementos que explicam esses fenômenos. Se nos concentrarmos apenas no que podemos observar e perceber, poderíamos fazer um mapa celeste e descrevermos os movimentos da Lua, Sol, planetas e estrelas. Se esquecermos os significados dos termos, tanto dos usados nos cálculos geocêntricos quanto dos heliocêntricos, e nos concentrarmos unicamente na posição dos astros no mapa celeste, dadas pelas duas teorias astronômicas, veremos que a única divergência entre elas é que, em cada uma delas, usamos contas diferentes para chegarmos aos mesmos resultados. Elas concordam com a posição dos planetas e estrelas no mapa e prevêem com a mesma acuidade suas posições futuras.

Reparem que a única informação empírica que temos dos fenômenos astronômicos é o posicionamento e contínuo deslocamento dos astros no mapa celeste. Ptolomeu acrescentou a esses fenômenos engrenagens, esferas celestes e epicíclos que não vemos, mas que explicam e dão estrutura ao que vemos. Copérnico, por seu turno, também acrescentou estruturas não perceptivas aos fenômenos celestes. Afinal de contas algum de vocês já experimentou a sensação do movimento de rotação da Terra? Eu me sinto bem parado agora, enquanto estou sentado em casa escrevendo este texto. Não temos acesso a nenhuma informação empírica ou experiência fenomênica perceptível que comprove o movimento de rotação da Terra.

É claro que não estou defendendo o geocentrismo. Temos hoje um caminhão de razões para preferirmos a astronomia heliocêntrica à geocêntrica, mas não é inconcebível que possamos ter uma astronomia geocêntrica que seja compatível com as demais ciências físicas. O único problema é que uma mudança tão profunda e central em nossas estruturas de entendimento exigiria tantas outras mudanças de concepções, tantas alterações em outras teorias já aceitas, que simplesmente não vale a pena. Melhor concentrar esforços em descobrir novos aspectos da realidade do que gastar tanto trabalho e energia numa mudança desse tipo. Essas mudanças radicais só costumam ocorrer em poucos momentos da história da ciência e constituem o que o filósofo Thomas Khun chamou de Revoluções Científicas. Vale lembrar que a revolução copernicana (a substituição contrária, do geocentrismo pelo heliocentrismo) foi um processo lento e muitas vezes violento, que levou mais de 150 anos para se consolidar.

De qualquer forma, nenhuma revolução científica, por mais radical que seja, nos fará esquecer as coisas que já sabemos, ou fará parar de funcionar as coisas que já funcionam. Da mesma forma que não perdemos a capacidade de prever o eclipse total do Sol que ocorrerá em 2045 quando trocamos o geocentrismo pelo heliocentrismo, nenhuma revolução científica fará os aviões caírem, ou os celulares pararem de funcionar, ou o coquetel anti-Aids perder seus efeitos, ou o meu grampeador levar menos de 0,4 segundos para cair de minha escrivaninha ao chão. As revoluções científicas não interferem na característica mais fundamental das teorias científicas: a sua capacidade preditiva.

A ciência parece então possuir dois tipos de conteúdo, um que é cumulativo e imune às revoluções científicas, que vou chamar de descritivo, mas que também poderia ser nomeado preditivo, ou empírico ou, como prefere meu aluno Arthur V. Lopes, a quem atribuo esta classificação, fenomênico. Em física, a cinemática e a termodinâmica são exemplos de teorias cujo conteúdo é quase que exclusivamente descritivo. O outro tipo de conteúdo, a que chamarei de explicativo, é aquele que explica e dá estrutura ao conteúdo descritivo da ciência. É este o tipo de conteúdo que é substituído nas revoluções científicas, que é incerto e contingente, é teórico ou, como prefere Arthur, hipotético. Ele corresponde às idéias mais abstratas das quais não temos experiência fenomênica e que organizam racionalmente as descrições científicas. As teorias científicas definidoras de paradigmas, na nomenclatura de Thomas Khun, são exemplos claros de teorias que apresentam alto grau de conteúdo explicativo, tais como a Mecância de Newton, as Astronomias de Ptolomeu e Copérnico, ou a Teoria da Evolução de Darwin.

Esses dois tipos de conteúdo são partes essenciais do conhecimento científico. Sempre que em alguma área ou disciplina um dos tipos prevalece sobre o outro, os cientistas sentem um incômodo, ou porque precisam explicar melhor os fenômenos que descrevem, quando falta conteúdo explicativo e sobra descritivo, ou porque precisam verificar se suas idéias correspondem aos fatos, quando falta conteúdo descritivo e sobra explicativo.

Bem, e o determinismo? Por que defendo que essa distinção pode ajudar a nos prevenir de uma postura determinista com relação a ciência? Se por um lado a capacidade preditiva da ciência representa uma aproximação com o determinismo, embora não o paralisante, conforme já vimos, por outro lado, devemos lembrar que o termo determinismo costuma ser relacionado ao princípio segundo o qual um conhecimento suficientemente detalhado do presente, nos daria capacidade para prever qualquer acontecimento do futuro e reconstituir qualquer acontecimento passado. Ora, conforme dissemos, o conteúdo explicativo é essencial à atividade científica. Mas o conteúdo explicativo é contingente, corrigível, não verificável, passível de substituição, como nas revoluções científicas. Mais ainda, mesmo que nenhuma revolução científica seja capaz de destruir o que já sabemos, deixando intacto o conteúdo descritivo da ciência, as revoluções científicas podem (e em geral o fazem) propiciar um grande aumento no conteúdo descritivo das teorias científicas. Por exemplo, já havia descrições cinemáticas bastante precisas antes de Newton propor sua Mecânica, mas não havia nenhuma cinemática lunar, simplesmente porque não havia nenhum movimento por lá para ser descrito. Nossa equação de queda livre lunar figura5 só se tornou possível como conseqüência do conteúdo explicativo proporcionado pela Mecânica de Newton. A Revolução Copernicana, a Teoria da Evolução, a Relatividade, a Mecânica Quântica, todas as revoluções científicas trouxeram possibilidades novas e ampliaram muito o conteúdo explicativo da ciência.

Como não temos razão nenhuma para crer que nossas teorias exprimem conteúdos explicativos definitivos, uma vez que esses conteúdos não são nem testáveis; como uma mudança paradigmática é sempre possível, não temos jamais razão para crer que possamos vir a ter esse conhecimento suficientemente detalhado do presente que nos daria acesso a todo o futuro e todo o passado. A ciência possui sim um aspecto cumulativo, sem dúvida prevê o futuro e nos ajuda a distinguir a realidade da ficção, mas ela jamais nos levará à paralisia do determinismo.

Daniel Durante Pereira Alves é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.